Os seres humanos, ah, essas pobres criaturas que nunca estão satisfeitas com o que tem. Você não vê um cachorro desejando ter outra raça, não vê um gato desejando um pelo mais brilhante, mas os seres humanos, ah eles sempre querem mais...
Já era quase três da madrugada, ela estava sentada no escuro de frente para o computador usando o braço para sustentar o peso da cabeça, os olhos ficam pesados lentamente e não demora muito para que a cabeça despenque de encontro à pequena mesa, a dor faz com ela perca o sono momentaneamente.
Apressada, ela empurra a cadeira pra trás e corre até a bolsa que está pendurada no cabideiro atrás da porta, abre a bolsa e procura desesperadamente pelo espelho de mão, verifica a pele alva e nota que a região da testa ficou vermelha e o pior de tudo: está com olheiras terríveis.
Furiosa, jogou o espelho sobre o colchão e voltou para o computador, mordeu o lábio inferior e colocou uma mecha teimosa dos longos cabelos escuros que teimavam em cair sobre a face.
Alguns humanos são apegados a sua imagem, não era o caso daquela em particular, o que a movia era algo muito mais forte, ela não estava buscando ficar mais bela para o seu ego. Ela tinha que ser mais bela do que sua nova colega de classe.
"Tudo desandou depois que aquela loira chegou, é óbvio que tudo nela é artificial, todos só querem ser amigos dela por causa daquela aparência. Não tinha como ela tirar nota máxima na prova e eu ter zerado a minha, o professor deve tê-la ajudado." Os pensamentos da humana ecoavam pelo universo e chegam aos meus ouvidos, ela tinha ouvido falar de um cirurgião plástico que fazia milagres, mas que só atendia pela internet e as três da madrugada.
Se aquela humana fosse um pouco mais inteligente saberia que milagres não existem, se ao menos parasse pra pensar veria que nenhum médico atende às três da madrugada, talvez se desperdiçasse tanta energia invejando o próximo poderia conseguir tudo que desejava. Se não fosse uma pecadora, jamais teria descoberto esse médico.
Na manhã seguinte ela estava radiante, não iria à aula, o consultório era perto e o médico disse que ela poderia voltar pra casa no mesmo dia. Era quase risível o modo crédulo como ela esperava um milagre.
O som do salto contra o asfalto podia ser ouvido por todos na rua, ela movia as pernas com a graciosidade de uma modelo na passarela, jogava os longos cabelos pra trás e agia como se estivesse desfilando para alguma grife famosa. O consultório ficava em um beco mal iluminado e sem nenhuma movimentação. Conforme adentrava mais a rua fria, ela sentia o coração disparar de emoção, não tardou para que ela encontrasse o prédio antigo, com paredes cobertas de pichações e janelas quebradas. Na calçada, empilhados aos montes, sacos de lixo preto dos quais vertiam um líquido vermelho.
Ela abriu a porta com um largo sorriso no rosto, não estranhou o fato da clínica estar vazia e muito menos o fato de que a recepcionista nem ao menos se moveu, ela disse com toda a sua empáfia:
— Tenho hora marcada com o Dr.
A recepcionista não se moveu, mas ela ouviu o som de passos se aproximando e logo apareceu — na porta que dava acesso ao corredor — um homem de traços orientais que usava roupas de cirurgião pretas e sem mangas, ele disse por trás da máscara:
— Venha por aqui, por favor.
Cruzar aquele corredor seguindo um médico sem referências era de uma insensatez absurda. Humanos e suas falhas. Ela seguia o médico com a felicidade de uma criança que vai ser levada à uma sorveteria, e tudo que eu via era o gado indo para o abatedouro.
O médico fez com que ela vestisse o avental hospitalar e se deitasse na maca, logo uma enfermeira entrou no centro cirúrgico, devido ao efeito da anestesia ela não conseguia mais mover o corpo, embora estivesse consciente do que acontecia ao seu redor.
— O procedimento padrão? — perguntou a mulher ao médico, ela pôde notar que ele fez que sim com a cabeça.
Então para o total desespero da humana a enfermeira virou-se removendo a touca que usava e a máscara de proteção, o rosto desfigurado por queimaduras, no lugar dos globos oculares, apenas sangue e alguns vermes se remexendo, a boca cheia de dentes se abriu sobre sua face imobilizada pelo pânico.
A última coisa que aquela humana viu foi uma enorme boca, cheia de dentes pontiagudos em várias camadas cobrir a sua face, então tudo ficou escuro, logo após ela acordou em quarto estranho, olhou na direção da porta onde um espelho refletia a cama, e sorriu maravilhada para a nova face e longos cabelos loiros.
Não sabia como, mas tinha se tornado aquela que era o fruto de toda a sua angústia, todos iriam amá-la, ela quis levanta-se e sair para exibir a nova aparência, mas não conseguiu, seu corpo estava amarrado à cama e logo um homem na casa dos cinquenta anos entrou no quarto, ele era loiro, lembrava um pouco o seu novo rosto e aparentava estar embriagado.
Ela assistiu horrorizada quando ele abriu o zíper da calça e subiu sobre seu corpo, tentou lutar e isso o enfureceu. Logo seu belo rosto era coberto por socos e seu pescoço era apertado dificultando sua respiração, ao mesmo tempo em que o corpo era invadido por fortes investidas.
Suas últimas horas foram de completa agonia e dor, então tudo ficou escuro novamente, mas desta vez, não houve um novo despertar. Ao longe, sirenes de polícia eram ouvidas e algumas pessoas se aglomeravam na rua, observando o homem sair algemado e o corpo desfigurado de uma jovem loira ser colocado em um saco preto.
Uma moça de cabelos negros observava a cena com um discreto sorriso, não sabia como, apenas tinha acordado em um corpo novo e era grata por isso, caso o contrário seria ela dentro daquele saco preto. Ao que parece a grama do vizinho nem sempre é mais verde.
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Sinner
HorrorUma linha tênue separa a virtude do pecado... Existe pecado maior que outro? Existiria algo ou alguém incapaz de pecar? Descubra através dos olhos desse misterioso narrador.