Preguiça

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 O som do despertador podia ser ouvido no apartamento do décimo andar, um olho abriu e fechou-se novamente, o braço ergueu-se vagarosamente, tateando até encontrar a fonte de todo o barulho.

Ele abriu os olhos, mas não queria de fato levantar, rastejou até o banheiro esperando que a água fria lhe desse um pouco de ânimo. Aquela era a rotina diária daquele humano, demorar para levantar, chegar atrasado no emprego, procrastinar e não terminar nenhuma tarefa ao longo do expediente, voltar pra casa e ficar deitado sem fazer nada.

Qualquer outro ser humano que por ventura entrasse naquele apartamento, sentiria um grande desconforto. Baratas e ratos corriam pela casa, embalagens antigas de comida estavam empilhadas pelo chão, a pia lotada de louça suja, os armários vazios e cobertos de poeira, a cama sempre desorganizada, as latas de lixo transbordando e repletas de moscas e larvas e o banheiro era ainda pior.

Deitado na cama, observando o teto coberto pelo mofo, ele bocejava pensando que deveria de fato ir falar com o síndico, mas a simples ideia de ter que descer até o térreo o deixa cansado, tão cansado que acabava por adormecer e acordar no dia seguinte novamente com o barulho do tão irritante despertador e uma vez mais ele iniciava a rotina exaustiva.

Aquele dia, no entanto, estava fadado a ser diferente, ele estava na hora do almoço, enquanto se arrastava pelas ruas lotadas, reclamando mentalmente por ter que andar tanto para achar um restaurante vazio, se recostou próximo a uma parede para descansar, embora só tivesse caminhado por apenas dois minutos, ao olhar para o lado notou uma garota sentada na sarjeta com um bolo de panfletos espalhados no chão.

De alguma forma o humano se solidarizou pela pobre que a criatura que sofria do mesmo mal que ele, vagarosamente esticou a mão e pegou um panfleto, era um anúncio, precisavam de alguém para basicamente ficar o dia todo deitado.

Como eu disse, esse é um tipo muito peculiar, pois assim que viu a oportunidade de ter ganhos financeiros sem fazer nada, o corpo que parecia se vida, encheu-se de uma energia latente, que o fez levantar e só parar ao chegar no local que o panfleto indicava.

O jovem humano parou em uma rua praticamente deserta, o local indicado ficava em um prédio antigo, de parede cinza coberto por musgo e pichações, o caminho foi um pouco mais longo do que imaginava, no caminho ele passou por uma antiga mansão, e uma igreja. No mesmo prédio que estava, funcionava antes uma clínica de estética e antes dela um restaurante, o local era um pouco isolado então os comércios tinham a tendência de falir.

Se aquele humano fosse menos preguiçoso teria notado que a recepcionista era a mesma pessoa que estava sentada na calçada ao lado dele minutos antes, mas ele tinha preguiça de reparar em detalhes, se não tivesse, talvez, e apenas talvez, não entraria em um prédio escuro e úmido com uma desconhecida.

Eles seguiram por um corredor estreito e sufocante, embora as paredes estivessem cobertas de mofo e infiltrações, o local era quente como o inferno, pensou ele. Após o que lhe pareceu uma eternidade, eles chegaram ao fim do corredor, a estranha mulher abriu a porta que dava para um quarto, mais precisamente o quarto do humano, ele achou estranho, mas não questionou:

— O que eu preciso fazer nesse trabalho?

— Nada — a recepcionista disse — Você só precisa se deitar, e ficar aí até eu voltar.

Torno a repetir, se aquele humano não fosse tão preguiçoso, não acharia normal ter um trabalho que consistia em ficar deitado na própria cama, mas aquele humano tinha preguiça até mesmo de pensar. Ele deitou na cama bagunçada e com lençol sujo, olhou o chão onde os ratos e baratas disputavam espaço com a poeira e teia de aranha no canto dos móveis, notou um lustre pontiagudo que não existia antes, mas que também não afetava em nada sua vida.

Quanto tempo tinha passado? Aos olhos do humano, apenas algumas horas, mas ao olhar novamente para o teto constatou que o lustre estava praticamente sobre seu estômago, notou também que estava sem suas roupas e o quarto parecia ainda mais quente que o corredor, seu corpo parecia magro, pra dizer a verdade parecia que todo o líquido do corpo estava evaporando.

Ele tentou mover o corpo e para seu desespero percebeu que estava colado ao colchão, o lustre desceu um pouco mais para perto de seu estômago, em um canto, sentada em uma cadeira, estava a estranha mulher. Embora não conseguisse ver o rosto dela claramente, ele podia notar que ela tecia um tipo de bordado:

— Não acha interessante que, de repente, você esteja com vontade de fazer algo? — questionou a estranha mulher — Mas não adianta tentar se mover, quando mais você faz isso mais seu corpo vai sendo dissecado e o lustre desce.

Ele tentou novamente levantar-se e notou que agora até seus músculos pareciam desaparecer, era como se ele estivesse virando um tipo de múmia, ele podia sentir a ponta do lustre rente a pele do seu estômago.

A mulher abandonou o bordado sobre a cadeira e saiu do quarto. Os humanos são realmente curiosos, principalmente quando estão com medo. O medo parece cegá-los ao ponto de fazerem coisas estúpidas, no caso do humano amarrado à cama, novamente tentou soltar-se e o resultado não poderia ser outro senão o que já fora avisado anteriormente.

Um simples movimento e o lustre perfurou o estômago do humano. Por mais que o corpo aparentasse estar mumificado, os lençóis foram cobertos pelo líquido rubro e viscoso, o peso do lustre esmagou os ossos da costela deixando todo o torso esmagado. Apesar de tudo, o corpo ainda tinha vida, então quando o cheiro do sangue começou a atrair os roedores, era possível ouvir pequenos resmungos de dor. Uma morte lenta e torturante.

Do lado de fora, recostada contra porta, a estranha mulher terminava o bordado. Com o último arremate, ela pendurou a estranha tapeçaria na parede, na cena retrata um quarto com um corpo apodrecido e esmagado por um lustre gigante, repletos de ratos alimentando-se da carne, cada mínimo detalhe podia ser observado, incluindo uma estranha senhora sentada ao lado do corpo com um sorriso quase angelical. 

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