"Olá senhora, tudo bem?" Cumprimentei-a curvando os lábios para mostrar o sorriso de praxe. Ela me ignorou. "Encontrou todos os ítens que buscava para hoje?" prosseguí. Não que eu estivesse realmente empenhada no bem servir naquele momento, apenas cumpria meu 'interessante' trabalho.Talvez por não estar em um de seus melhores momentos, continuou ignorando-me. Em outros tempos aquela atitude seria para mim uma ofensa, mas ao longo dos anos passei a apreciar clientes surdos-mudos, especialmente nas minhas sagradas sextas-feiras, quando as horas, entre às 10 da noite e às 7 da manhã, se elastificavam espantosamente e a vontade de ir para casa castigava mais que nunca.
Agradecida, passei a registrar as mercadorias que ela compassadamente foi colocando na esteira. Aderí à sua falta de pressa, até porque estava nas primeiras horas do meu turno e o estabelecimento já se achava deserto. Ela e eu éramos as únicas almas viventes naquele canto da loja.
Depois de esvaziar o carrinho, ela se postou diante de mim. Estática. Braços cruzados. Pernas juntíssimas. Olhos grudados na mini tela retangular do computador, atenta ao desfile dos preços, para ter certeza de que os mesmos batiam com os da prateleira, pronta para mostrar brabeza se algum não coincidisse. Me divertia com esses clientes que agarravam ítens que um outro abandonou fora de lugar e criavam caso porque achavam que o preço estava errado. Nessas horas eu tinha a oportunidade de provar, polidamente, que o cliente nem sempre tem razão. Se estava de ovo virado então me divertia legal.
Mas por falar em ovo, a uma determinada altura, uma catinga de ovo chôco, de repente, me ofendeu as narinas. Minha primeira reação foi examinar rápidamente a esteira em busca do dito cujo que estava contaminando o ambiente. Depois dei uma olhada nas sacolas ainda no carrossel. O fedor estava insuportável, já me faltava ar. A mulher, continuou como uma estátua, "Será que ela além de surda-muda também lhe faltava olfato?"
Desesperada por um arzinho não poluído, fechei toda a área em círculo com meus olhos quase lacrimejantes, pois a cabeça já latejava. Nada. Ninguém à nossa volta. E a fedentina cada vez pior ao redor de mim. Erguí os olhos para a minha preciosa múmia cliente, aparentemente alheia ao meu desatino. Foi então que matei a charada:
'Ah, espere aí, você peidou, sua descarada. Tem vergonha não? Sabe o que é respeito? Educação? Pois me paga o que deve e vai depressa cuidar da cabeça porque o resto já apodreceu.'
Filomena, a amada.
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SEGREDOS DE CAIXA
Short StoryMeu nome é Filomena, a amada. Fui operadora de caixa por alguns anos. Nessa função tive a oportunidade de observar o comportamento humano em suas variações e experimentar diferentes emoções todos os dias. Os episódios são muitos, mas só conto aquele...