JANE

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Ontem eu sonhei com Jane, minha supervisora. Eram duas horas da madrugada, eu estava na entrada da loja recepcionando os clientes e dando-lhes a assistência necessária. Isso acontecia uma vez por semana. Nós, as caixas, estávamos incumbidas de cobrir as folgas do recepcionista, revezando a cada uma hora durante nosso turno. Eu detestava me plantar ali na porta, no cumprir da minha infindável vez, vigiando o entre e sai das pessoas, exibindo o sorriso forçado ao saudá-las, enfrentando o meu desconforto quando o alarme disparava e eu tinha que checar recibos e sacolas procurando por algum ítem não desativado. Alguns clientes entendiam o procedimento, outros armavam um escândalo. Não gostava de lidar com tais situações. Quando Jane se esquecia de mim e me deixava ali além da conta, eu ficava muito brava. Coitada, sempre foi muito paciente comigo. Em nenhum momento me ofendeu, nem agiu com grossura. Jane era mesmo bem-educada, bastante culta, muito fina.

No meu sonho, o piso branco que margeava as trinta e sete caixas registradoras se transformou em areia branca de uma praia deserta e calma. O verde azulado das águas do mar preencheu a imensidão da loja. Eu parada ali, simplesmente olhava Jane se distanciar de mim. Vestindo sua velha calça de brim marrom, seus passos vagarosos dentro dos surrados sapatos especiais, na mesma cor, a conduziam para o outro extremo. Seu corpo, que um dia já foi delgado, protegido pela deselegante veste vermelha, movendo para lá e para cá, me lembrava um pêndulo.

"Eu já fui bem pequena e formosa," ela disse certa vez. E eu acredito, porque Jane ainda é muito graciosa. Tem os olhos pequenos muito azuis, hoje quase sem brilho, mas repletos de ternura. Quando sorri, seus lábios finos revelam os dentes naturais não tão alvos, porém simétricos, realçando a graça do redondo de seu rosto claro e castigado por tantas rugas que apareceram precocemente.

Lia-se em sua veste vermelha aquela frase impressa em letras brancas que todos nós os outros funcionários também exibíamos em nossas vestes azuis: "Como posso ajudá-lo?" a qual seu cabelo longo, que há muito já ostentava a cor acinzentada dos dias de inverno, teimavam em camuflar.

Demoraria uma eternidade fazer aquele trajeto, mas bah! Jane já não tinha mais tanta pressa. Agia com uma tal paciência que as vezes me irritava e depois me deixava com a consciência pesada, pois ela me ensinava tanto, sempre relevando as minhas descomposturas.

Quantas vezes ela apareceu para trabalhar sufocando as dores e contendo o cansaço. Ainda assim, não reclamava, não se alterava. Por trás de sua aparência fragilizada, havia uma força inesgotável.

Ah, admirável e boa amiga Jane! Sempre fiel à voz de seu coração, universo de puro amor. Sim, em nome do amor ela mandou o namorado rico ir passear, assim ficou livre e casou-se com o moço pobre que a encendeou com o fogo da paixão. As lembranças dos momentos felizes ficaram espalhadas ao longo dos seus sessenta e oito anos, as quais ela ainda cata aqui e ali quando se faz possível, nos intervalos do ir e vir das sessões de quimioterapia do marido, na dedicação incondicional às netas gêmeas deficientes, nas dores de cabeça que o filho problema sempre lhe trás e no apoio constante que dá à filha e ao genro.

Como no meu sonho, Jane segue lentamente no caminhar por sua praia de areia fina e infinita. E com certeza assim será enquanto houver forças e seu amor existir.

Filomena, a amada.

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