Optei pela vida noturna para acomodar minhas necessidades da época e por alguns anos deu certo. A transição durou apenas algumas semanas e durante quase quatro anos, fiz da lua meu sol e passei a sonhar exposta ao barulho, dormindo no clarão do dia. Me habituei tanto com aquele ritmo, que fazia tudo no automático. O intervalo para o 'almoço' na madrugada durava uma hora e, sempre que era preciso abastecer a geladeira e a despensa lá de casa, aproveitava esse horário para fazer minhas compras, embora fosse a hora menos adequada. Nesse horário os corredores da loja ficavam tomados por caixas de mercadorias que os estoquistas repunham nas prateleiras. Mas preferia usar meu bom humor para driblar aqueles obstáculos e exercitar minha paciência, a ter que fazê-lo depois do expediente.
Pois bem, foi num desses dias que eu conheci Juan. Carrinho vazio, lista na mão, comecei minhas compras pelos itens maiores e mais pesados, na seção de produtos para limpeza. Depois entrei no corredor dos descartáveis para comprar guardanapos e papel toalha. No fim daquele corredor ficava a prateleira do papel higiênico, esse era um dos itens que eu não podia esquecer de jeito nenhum, naquele dia especificamente. Acomodei os rolos de papel toalha e o pacote de guardanapos no carrinho, e segui na direção do papel higiênico. Juan estava de costas para mim. Percebi que ele havia acabado de abrir uma caixa enorme do produto e se preparava para acomodá-lo na prateleira, totalmente vazia.
Me chamou a atenção a maneira que ele se vestia. Usava uma calça preta bem passada combinando com os sapatos, super lustrosos, na mesma cor. Por cima da camisa, imaculadamente branca, a veste azul, muito bem cuidada. Não fosse esse detalhe, eu o teria confundido com um cliente ou até mesmo com o gerente, pois os outros estoquistas usavam tênis, jeans e camiseta.
Quando me aproximei, ele se voltou para mim com um sorriso discreto, o qual realçou o bigode e a barba, muito bem cuidados. Colocou em minhas mãos a mercadoria que eu buscava, e, com uma voz agradável, me cumprimentou como se já me conhecesse: "Como estás?" Me senti inteiramente presa e desprotegida dentro daquele par de olhos negros olhando diretamente nos meus. "Bien," respondi num total desconforto, "gracias," e agradeci, desviando meu olhar do dele para colocar o produto no carrinho de compras. Em seguida, muito encabulada, apressei em me afastar de sua presença.
Trabalhei o resto do expediente com a concentração e o sossego abalados pela imagem daquele porto-riquenho bem apessoado impregnada na mente.
Mais tarde, de volta em casa, me peguei diante do espelho analisando minha figura desalinhada. Soltei meu cabelo do rabo de cavalo e percebi a necessidade de uma ida ao cabeleireiro para um corte e para uma hidratação. Meu rosto sem maquiagem acentuava algumas rugas que apareceram, e que eu nem tinha percebido até então. Minhas mãos já não eram mais tão macias como antes, e minhas unhas careciam do cuidado de uma boa manicure. Corei ao lembrar de que algumas horas atrás um homem havia me olhado, me dispensado atenção, sido gentil para comigo.
Aquele gesto tão genuíno me tocou fundo na alma. Um cumprimento tão simples e tão verdadeiro me fez entender que eu estava morrendo lentamente e que era necessário reagir. Onde estava escondida a minha alegria? Por onde andavam os meus desejos? E os meus sonhos, que fim levaram? Já não me lembrava mais.
Vi Juan quase todos os dias depois daquela madrugada. Desde então, ele fazia questão de passar no meu caixa nos intervalos do seu turno para pagar uma garrafinha de água gelada ou uma barrinha de chocolate. Trabalhávamos em horários diferentes. Meu turno começava e terminava antes do dele. Mas aconteceu de algumas vezes Juan chegar mais cedo, e me encontrar na área designada aos fumantes, do lado de fora da loja. Foi nessas poucas vezes que tivemos oportunidade de conversar, misturando os idiomas inglês e espanhol, ele não falava português, e rir das nossas pronúncias atrapalhadas. Me contou que a esposa e os filhos ficavam mais tempo em Porto Rico do que na Flórida, e que ele tinha dois empregos, o da loja era o segundo e faltava poucos anos para ele se aposentar por tempo de serviço do primeiro. Não cheguei a saber qual era o outro emprego, nem a necessidade que ele tinha para trabalhar tanto.
Quanto a mim, não tinha nada de interessante para contar. E mesmo se tivesse, eu não teria tido tempo. Eu havia solicitado a minha transferência para uma loja mais próxima de casa e logo fui transferida. Voltei a vida diurna e Juan ficou apenas na minha memória como uma lembrança bonita e motivadora a me despertar todos os dias para a vida.
Filomena, a amada.
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SEGREDOS DE CAIXA
Short StoryMeu nome é Filomena, a amada. Fui operadora de caixa por alguns anos. Nessa função tive a oportunidade de observar o comportamento humano em suas variações e experimentar diferentes emoções todos os dias. Os episódios são muitos, mas só conto aquele...