A PIOLHENTA DO JIGUÊ
No outro dia por causa da machucadura Macunaíma amanheceu com uma grosseira pelo corpo todo. Foram ver e era a erisipa, doença comprida. Os manos trataram dele bem e traziam diariamente pra casa todos esses remédios pra erisipela que os vizinhos e conhecidos, todos esses Brasileiros aconselhavam. O herói passou uma semana de cama. De-noite sonhava sempre com embarcações e a dona da pensão quando vinha de-manhã por amor de saber como ia o herói dizia sempre que embarcação significava na certa viagem por mar. Depois saía deixando sobre a cama do enfermo o Estado de São Paulo. E o Estado de São Paulo era um jornal. Então Macunaíma gastava o dia lendo todos esses anúncios de remédios pra erisipa. E eram muitos anúncios! No fim da semana o herói estava descascando bem e foi na cidade buscar sarna pra se cocar. Andou banzando banzando, e muito fatigado por causa da fraqueza parou no parque do Anhangabaú. Chegara bem debaixo do monumento a Carlos Gomes que fora um músico muito célebre e agora era uma estrelinha do céu. O ruído da fonte murmurejando na tardinha dava pro herói a visagem das águas do mar. Macunaíma sentou no parapeito da fonte e assuntou os baguais marinhos de bronze chorando água. E lá na escureza da gruta por detrás da tropilha presenciou uma luz. Fixou mais e distinguiu uma embarcação muito linda que vinha boiando sobre as águas. "É uma vigilenga" murmurou. Porém a nau vinha chegando cada vez maior. É um gaiola" murmurou. Mas o gaiola vinha chegando tão granto tão! que o herói deu um salto sarapantado e gritou na bôca-da-noite ecoada "É um vaticano!" O navio já vinha bem visível por detrás dos baguais de bronze. Tinha o corte da velocidade no casco de prata e os mastros inclinados pra trás estavam cheios de bandeiras que o vento da correria imprensava entre as lâminas de ar. O grito chamara os choferes da esplanada e todos curioseavam o gesto parado do herói e seguiam o risco do olhar dele batendo na fonte escura.
— Quê foi, herói? — Olha lá!... Olha o vaticano macota que vem vindo sobre as águas imensas do mar! — Aonde! — Por detrás do cavalo de estibordo! Então todos viram por detrás do cavalo de estibordo o navio chegando. Já estava bem perto e ia passar entre o cavalo e a parede de pedra, já estava na boca da gruta. E era um navio guaçu. — Não é vaticano não! é o transatlântico fazendo viagem por mar! gritou um chofer japonês que já fizera muita viagem por mar. E era um transatlântico enorme. Vinha iluminado, relampeava todo de ouro e prata embandeirado e festeiro. Os óculos das cabinas eram colares no casco e nos cinco deques empoleirados corria música entre a gentana dançando mexida no cururu. A choferada comentava: — É do Lóide! — Não, é da Hamburgo! — Vá saindo! tou percebendo! então! É il piróscafo Conte Verde em vez! E era o piróscafo Conte Verde sim. E era a Mãe D'água que vinha bancando piróscafo pra atentar o herói. — Gente! adeus, gente! Vou pra Europa que é milhor! Vou em busca de Venceslau Pietro Pietra que é o gigante Piaimã comedor de gente! que o herói discursava. E toda a choferada abraçava Macunaíma se despedindo. O vapor estava ali e Macunaíma já pulara no cais da fonte pra subir a escadinha do piróscafo Conte Verde. Todos os tripulantes na frente da música acenavam chamando Macunaíma e eram marujos forçudos, eram Argentinos finíssimos e eram tantas donas lindíssimas pra gente brincar até enjoar com os balangos das ondas. — Desce a escadinha, capitão! que o herói exclamou. Então o capitão tirou o cocar e executou uma letra no ar. E todos, os marujos os Argentinos finíssimos e as cunhas lindíssimas pra Macunaíma brincar, todos esses tripulantes soltaram vaias macotas caçoando do herói enquanto o navio manobrando sem parar dava a popa pra terra e flechava de novo pro fundo da gruta. E todos aqueles tripulantes viraram doentes com erisipa sempre caçoando do herói. E
quando o piróscafo atravessou o estreito entre a parede da gruta e o bagual de bombordo a chaminèzona guspiu uma fumaçada de pernilongos, de borrachudos mosquitos-pólvora mutucas marimbondos cabas potós môsca-de-ura, todos esses mosquitos afugentando os motoristas. O herói sentado no rebordo da fonte penava todo mordido e com mais erisipa, mais, todo erisipelado. Sentiu frio e veio febre. Então espantou com um gesto os mosquitos e caminhou pra pensão. No outro dia Jiguê entrou em casa com uma cunhatã, fez ela engolir três bagos de chumbo pra não ter filhos e os dois dormiram na rede. Jiguê tinha se amulherado. Ele era muito valente. Passava o dia limpando a espingarda e afiando a lamparina. A companheira de Jiguê todas as manhãs ia comprar macaxeira prós quatro comerem e se chamava Suzi. Porém Macunaíma que era o namorado da companheira de Jiguê, todos os dias comprava uma lagosta pra ela, punha no fundo do jamachi e por cima esparramava a macaxeira pra ninguém não maliciar. Suzi era bem feiticeira. Quando chegava em casa deixava a cesta na saleta e ia dormir pra sonhar. Sonhando ela falava pra Jiguê: — Jiguê, meu companheiro Jiguê, estou sonhando que tem lagosta por debaixo da macaxeira. Jiguê ia ver e tinha. Todos os dias era assim e Jiguê tendo amanhecido com dor-de-cotovelo desconfiou. Macunaíma percebeu a dor do mano e fez uma mandinga pra ver si passava. Pegou numa cuia e de-noite deixou-a no terraço, rezando manso: