No outro dia Macunaíma amanheceu com muita tosse e uma febrinha sem parada. Maanape desconfiou e foi fazer um cozimento de broto de abacate, imaginando que o herói estava hético. Em vez era impaludismo, e a tosse viera só por causa da laringite que toda a gente carrega de São Paulo. Agora Macunaíma passava as horas deitado de borco na proa da igarité e nunca mais que havia de sarar. Quando a princesa não podia mais e vinha pra brincarem, o herói até uma vez recusou suspirando: — Ara... que preguiça... No outro dia atingiram as cabeceiras dum rio e escutaram perto o ruidejar do Uraricoera. Era ali. Um passarinho serigaita trepado na munguba, enxergando o farrancho gritou logo: — Sinhá dona do porto, dá caminho pra mim passar! Macunaíma agradeceu feliz. De pé ele assuntava a paisagem passando. Veio vindo o forte São Joaquim erguido pelo mano do grande Marquês. Macunaíma deu um té-logo pro cabo e pro soldado que só possuíam um naco esfarrapado de culote e o boné na cabeça e viviam guardando as saúvas dos canhões. Afinal ficou tudo conhecidíssimo. Se enxergou o cerro manso que fora mãe um dia, no lugar chamado Pai da Tocandeira, se enxergou o pauê trapacento malhado de vitórias-régias escondendo os puraquês e os pitiús e pra diante do bebedouro da anta se viu o roçado velho agora uma tigüera e a maloca velha agora uma tapera. Macunaíma chorou. Abicaram e entraram na tapera. Vinha a bôca-da-noite. Maanape com Jiguê resolveram fazer uma facheada pra pegarem algum peixe e a princesa foi ver si topava com algum arezi pra comerem. O herói ficou descansando. Estava assim quando sentiu no ombro um peso de mão. Virou a cara e olhou. Junto dele estava um velho de barba. O velho falou: — Quem és tu, nobre estrangeiro? — Não sou estranho não, conhecido. Sou Macunaíma o herói e vim parar de novo na terra dos meus. Você quem é? O velho afastou os mosquitos com amargura e secundou:
— Sou João Ramalho. Então João Ramalho enfiou dois dedos na boca e assoviou. Apareceram a mulher dele as quinze famílias de escadinha. E lá partiram de mudança buscando pagos novos sem ninguém. No outro dia bem cedinho foram todos trabucar. A princesa foi no roçado Maanape foi no mato e Jiguê foi no rio. Macunaíma se desculpou, subiu na montaria e deu uma chegadinha até a boca do rio Negro pra buscar a consciência deixada na ilha de Marapatá. Jacaré achou? nem ele. Então o herói pegou na consciência dum hispanoamericano, botou na cabeça e se deu bem da mesma forma. Passava uma piracema de jaraquis. Macunaíma agarrou pescando e distraído distraído quando viu estava em Óbidos, a montaria cheinha de peixes frescos. Mas o herói foi obrigado a atirar tudo fora porque em Óbidos "quem come j ar aqui fica aqui" falam e ele tinha que voltar pro Uraricoera. Voltou e como era ainda o pino do dia deitou na sombra da ingazeira catou os carrapatos e dormiu. Tarde chegando todos voltaram pra tapera só Macunaíma não. Os outros saíram pra esperar. Jiguê se acocorou botando a orelha no chão pra ver si escutava o passinho do herói, nada. Maanape trepou no grelo duma inajá pra ver si enxergava o brilho dos brincos do herói, nada. Então saíram por mato e capoeira gritando: — Macunaíma, nosso mano!... Nada. Jiguê chegou debaixo da ingazeira e gritou: — Nosso mano! — Que foi! — Você, aposto que já estava dormindo! — Dormindo nada, então! Estava mas era negaceando um inambu- guaçu. Você fez bulha, nhambu escapoliu! Voltaram. E assim todos os dias. Os manos andavam muito desconfiados. Macunaíma percebeu e disfarçou bem: — Eu caço porém não acho nada não. Jiguê nem caça nem pesca, passa o dia dormindo. Jiguê teve raiva porque peixe andava rareando e caça inda mais. Foi na praia do rio pra ver si pescava alguma coisa e topou com o feiticeiro Tzaló que tem uma perna só. O catimbozeiro possuía uma cabaça encantada feita com a metade duma casca de gerimum.
Mergulhou a cabaça no rio, encheu de água até o meio e despejou na praia. Caiu um despropósito de peixe. Jiguê reparou bem como que o feiticeiro fazia. Tzaló largou da cabaça por aí e principiou matando peixe com um porrete. Então Jiguê roubou a cabaça do feiticeiro Tzaló que tem uma perna só. Mais pra diante fez que-nem tinha reparado e veio muito peixe, veio pirandira veio pacu veio cascudo veio bagre jundiá tucunaré, todos esses peixes e Jiguê voltou carregado pra tapera depois de esconder a cabaça na raiz do cipó. Todos ficaram sarapantados com aquele mundo de peixe e comeram bem. Macunaíma desconfiou. No outro dia esperou com o olho esquerdo dormindo que Jiguê fosse pescar, saiu atrás. Descobriu tudo. Quando o mano foi-se embora Macunaíma largou da gaiola com os legornes no chão pegou na cabaça escondida e fez que-nem o mano. Isso vieram muitos peixes, veio acará veio piracanjuba veio aviú guri-juba, piramutaba mandi surubim, todos esses peixes. Macunaíma atirou a cabaça por aí, na pressa de matar todos os peixes, cabaça caiu numa lapa e juque! mergulhou no rio. Passava a pirandira chamada Padzá. Imaginou que era abobra e engoliu a cabaça que virou na beixiga de Padzá. Então Macunaíma enfiou a gaiola no braço voltou pra tapera e contou o sucedido. Jiguê teve raiva. — Cunhada princesa, eu que pesco, seu companheiro fica dormindo em baixo da ingazeira e inda atrapalha os outros! — Mentira! — Então o que você fez hoje? — Cacei viado. — Quê-dele ele! — Comi, uai! Fui andando por um caminho, vai, topei rasto dum... catingueiro não era não mas era mateiro. Me agachei e fui no rasto. Olhando olhando, sabe, dei uma cabeçada numa coisa mole, que engraçado! sabem o que era! pois a bunda do viado, gente! (Macunaíma deu uma grande gargalhada). Viado perguntou pra mim: — Que está fazendo aí, parente!, — Te campeando! secundei. E vai, matei o catingueiro que comi com tripa e tudo. Vinha trazendo um naco pra vocês, vai, escorreguei atravessando o ipu, dei um tombo, naco foi parar longe e tanajura sujou nele.