então, com esse único ato, Lincoln mudou o curso da HistóriaAmericana. Ele era uma das figuras mais desprezadas da políticaem sua época, mesmo assim preservou a União e é considerado omaior presidente que nosso país já teve. E que possivelmente jamaisteremos.Meu rosto enrubesceu... Acabáramos de começar nossa aula sobre aGuerra Civil Americana, e essa era a matéria que eu mais gostava deensinar. Mas meus alunos do último ano do Ensino Médio estavam à beirado coma de uma tarde de sexta-feira. Tommy Michener, meu melhor alunona maior parte dos dias, olhava perdidamente para Kerry Blake, que seespreguiçava com a intenção de, ao mesmo tempo, atormentar Tommy como que ele não poderia ter e convidar Hunter Graystone IV a pegar o queoferecia. Enquanto isso, Emma Kirk, uma menina bonita e de bom coração,fora amaldiçoada por ser uma aluna externa, não morar na escola, e porisso acabara excluída do grupo dos "legais". Ela olhava para a própria mesa.Emma tinha uma paixonite por Tommy e conhecia muito bem a obsessãodele por Kerry... pobre menina.— E então, quem poderia me dizer os pontos de vista opostos? Alguém?Do outro lado, veio o som de uma risada. Todos olhamos. Kiki Gomez,uma professora de Inglês, dava aula ao ar livre, já que o dia estavaagradável, o clima ameno. Os alunos dela não pareciam entorpecidos eexaustos. Maldição! Eu também deveria ter levado meus alunos lá parafora.— Vou lhes dar uma pista — continuei, olhando para os rostos semexpressão. — Direitos dos Estados versus Controle Federal. União versusSecessão. Liberdade para governar independentemente versus Liberdadepara todas as pessoas. Com escravos ou sem escravos. Lembraram-se?Naquele momento, bateu o sinal de fim da aula e meus preguiçososalunos voltaram subitamente à vida e correram para a porta. Tentei nãoencarar aquilo como pessoal. Meus alunos do último ano normalmenteeram mais aplicados, mas era sexta-feira. Os garotos tiveram provas noinício da semana e haveria um baile naquela noite. Eu compreendia.A Academia Manning era o tipo de escola que refletia o que era a NovaInglaterra. Prédios majestosos de tijolos cobertos pela indispensável hera,magnólias e arbustos muito verdes, campos de futebol e de lacrosse da corde esmeraldas e a promessa de que, pelo preço de uma pequena casa, nósconseguiríamos que seus filhos fossem para a faculdade que escolhessem:Princeton, Harvard, Stanford, Georgetown. A escola, que fora fundada nosanos 1880, era como um pequeno mundo autossuficiente. Muitosprofessores moravam no campus, mas os que não moravam, como eu,costumavam se comportar como os alunos às sextas-feiras, ansiosos paraque terminasse a última aula do dia para que pudéssemos ir para casa.Exceto por essa sexta-feira. Eu teria ficado muito satisfeita de ficar naescola naquele dia, tomando conta dos alunos no baile ou supervisionandoo jogo de lacrosse. Droga! Eu faria até a limpeza dos banheiros seprecisasse. Qualquer coisa seria melhor do que os meus planos atuais.— Oi, Grace! — disse Kiki, entrando em minha sala.— Oi, Kiki. Sua aula parecia divertida, lá fora.— Estávamos lendo O Senhor das Moscas — ela me contou.— É claro! Agora entendo por que estavam rindo. Nada como a mortede porquinhos para animar o dia...Kiki riu orgulhosa.— Então, Grace, conseguiu alguém para acompanhá-la?Fiz uma careta.— Não. Não consegui. Isso não vai ser bonito de ver.— Oh, droga... — ela falou. — Sinto muito.— Bem, não é o fim do mundo — murmurei, tentando ser corajosa.— Tem certeza disso? — Assim como eu, Kiki era solteira. E ninguémsabia melhor do que uma mulher solteira na casa dos trinta anos o infernoque era ir a um casamento sem um acompanhante. Em poucas horas, minhaprima Kitty, que uma vez cortara minha franja até a raiz dos cabelosquando eu estava dormindo na casa dela, iria se casar. Pela terceira vez. Emum vestido no estilo do da Princesa Diana.— Veja, é o Eric! — anunciou Kiki, animada, apontando para a janela àminha direita. — Oh, obrigada, Senhor!Eric era o rapaz que lavava as janelas da Academia Manning a cadaprimavera e a cada outono. Embora ainda estivéssemos no início de abril, atarde estava quente e agradável e Eric estava sem camisa. Ele sorriu paranós, muito consciente da própria beleza, e começou a limpar as janelas.— Convide-o! — sugeriu Kiki, enquanto o observávamos com grandeprazer.— Ele é casado — falei, sem tirar os olhos dele. Aquela troca de olharesprovocativos com Eric era o ato mais íntimo que eu tivera com um homemjá há algum tempo.— Bem casado? — perguntou Kiki, não se importando nem um poucoem destruir um ou dois lares para conseguir um homem.— Sim. Ele adora a esposa.— Odeio isso — ela resmungou.— Eu sei. É injusto.A perfeição de homem que era Eric piscou para nós, soprou um beijo epassou o rodo para frente e para trás na janela, os ombros musculosos, secontraindo lindamente, barriga tanquinho se destacando, o sol cintilandoem seu cabelo.— Preciso ir — falei, sem mover um músculo. — Preciso trocar deroupa e me arrumar. — A ideia fez meu estômago se revirar. — Kiki, vocêtem certeza de que não conhece ninguém que eu possa levar? Ninguém? Eurealmente não queria ir sozinha.— Não conheço, Grace. — Ela suspirou. — Talvez você devesse tercontratado alguém, como naquele filme com a Debra Messing.— Essa é uma cidade pequena. Um gigolô provavelmente chamaria aatenção. E isso, provavelmente, não seria nada bom para a minhareputação. "Professora da Manning contrata garoto de programa. Os paisestão preocupados." Esse tipo de coisa, entende?— E quanto a Julian? — ela perguntou, se referindo ao meu amigo maisantigo, que costumava sair comigo e com Kiki em nossas noites de meninas.— Minha família o conhece. Ele não convenceria.— Como namorado, ou como heterossexual?— Ambos, eu acho — respondi.— Isso é péssimo. Ele é um excelente dançarino.— É mesmo. — Olhei para o relógio e o medo que me perseguiradurante toda a semana, me dominou de vez. O problema não era só irsozinha ao casamento da prima Kitty. Também seria apenas a terceira vezque eu veria Andrew desde que havíamos terminado, e sem dúvida apresença de um acompanhante me ajudaria muito.Bem, por mais que eu desejasse simplesmente ficar em casa e ler E oVento Levou ou assistir a um filme, tinha que ir. Além do mais, eu vinhaficando muito em casa nos últimos tempos. Meu pai, meu melhor amigogay, e meu cão, embora fossem ótimas companhias, provavelmente nãodeveriam ser os únicos homens em minha vida. E sempre havia a chancemicroscópica de que eu conhecesse alguém no próprio casamento.— Talvez Eric vá — falou Kiki, indo até a janela e abrindo-a. — Ninguémprecisa saber que ele é casado.— Kiki, não — protestei.Ela não ouviu.— Eric, Grace precisa ir a um casamento esta noite. Seu ex-noivo vaiestar lá e ela não tem um acompanhante. Você poderia ir com ela? E fingirque a adora e coisa e tal?— Obrigada de qualquer modo, mas não — eu disse, sentindo meurosto muito vermelho.— Seu ex, é? — comentou Eric, enquanto secava a janela.— Sim. Talvez seja melhor eu cortar meus pulsos agora. — Sorrio paradeixar claro que não estou falando sério.— Tem certeza de que não pode ir com ela? — perguntou Kiki.— Minha esposa provavelmente não gostaria muito da ideia —respondeu Eric. — Sinto muito, Grace. Boa sorte.— Obrigada — eu respondo. — Parece pior do que é na realidade.— Ela não é corajosa? — perguntou Kiki. Eric concordou e passou paraa próxima janela, enquanto Kiki se debruçava tanto para olhá-lo que quasecaiu. Ela trouxe o corpo para dentro da sala de novo e suspirou. — Entãovocê vai sozinha — disse, no mesmo tom que um médico teria usado paradizer "Sinto muito, seu estado é terminal".— Bem, eu tentei, Kiki — lembrei a ela. — Johnny, que entrega minhaspizzas está saindo com uma moça que gosta de pizza de anchova com alho,você acredita? Brandon, da casa de repouso disse que preferia se enforcar aservir de acompanhante para um casamento. E acabo de descobrir que ocara bonitinho da farmácia tem apenas dezessete anos e, embora elehouvesse dito que ficaria feliz em ir comigo, Betty, a farmacêutica, é suamãe e mencionou algo sobre assediadores e sobre uma lei a esse respeito,Mann Act ou alguma coisa assim. Depois disso, passei a ir em outrafarmácia.— Ops — falou Kiki.— Não foi nada demais. Terminei sem opções. Portanto irei sozinha,serei nobre e corajosa, passarei o tempo todo procurando por alguém paraatacar e terminarei deixando a festa com um garçom. Se eu der sorte —Sorri. Corajosamente.Kiki riu.— Ser solteira é uma droga — ela anunciou. — E, meu Deus, ser solteiraem um casamento... — Minha amiga estremeceu.— Obrigada pela força — eu disse.Quatro horas depois, eu estava no inferno.A combinação familiar e nauseante de esperança e desespero fazia meuestômago se revolver. Havia pensado sinceramente que estava bem melhorultimamente. Sim, meu noivo havia me abandonado há quinze meses, maseu não estava deitada em posição fetal, chupando o dedo. Continuara atrabalhar, a dar aulas... E muito bem, na minha opinião. Saía com amigos.Está certo que a maior parte das minhas saídas era para dançar comsenhores bem mais velhos ou para encenar as batalhas da Guerra Civil, maseu saía. E, sim, hipoteticamente, eu adoraria encontrar um homem quefosse uma mistura da personalidade de Atticus Finch com a de Tim Gunn ecom a aparência de George Clooney.Portanto, aqui estou eu, em outro casamento. O quarto casamento nafamília desde O Abandono, o quarto em que eu ia desacompanhada,tentando heroicamente irradiar felicidade, para que meus parentesparassem de sentir pena de mim e de tentar arrumar encontros para mimcom primos distantes e esquisitos. Ao mesmo tempo, eu tentavaaperfeiçoar O Olhar, que transmitia um divertimento irônico, um certocontentamento interior e o mais absoluto conforto. Um olhar do tipo Oi!Estou muito bem por estar solteira em outro casamento e não estoudesesperada para encontrar um homem. Mas, se por um acaso, você forheterossexual, tiver menos de 45 anos, for atraente, tiver uma boa situaçãofinanceira e for moralmente correto, apareça! Quando eu dominasse OOlhar, planejava dividir um átomo, já que ambas as coisas exigiam o mesmonível de talento.Mas quem sabe? Talvez hoje meus olhos encontrassem alguém, umhomem que também estivesse solteiro e com esperança de encontraralguém e que não fosse patético. Vamos dizer, um cirurgião pediátrico,apenas para não desperdiçar a fantasia. E kabum! Nós saberíamos namesma hora.Infelizmente, na melhor das hipóteses, meu cabelo estava me fazendoparecer, uma bela cigana selvagem, mas era mais provável que eu estivesseparecendo a Gilda Radner. Eu deveria ter lembrado de chamar um exorcistapara ver se conseguia que ele arrancasse os demônios dos meus cabelos,conhecidos por quebrar pentes e por comer escovas de cabelo.Hummm... Lá estava um cara bem interessante. Com cara de nerd,esguio, de óculos, definitivamente o meu tipo. Então, ele percebeu que eu oencarava e imediatamente deixou claro que sua mão estava presa à outramão, que estava presa a um braço, que por sua vez pertencia a uma mulher.Ele olhou encantado para ela, deu um beijo em seus lábios e olhou nervosoem minha direção. Está certo, está certo, não precisa entrar em pânico,rapaz, eu pensei. Mensagem recebida.De fato, todos os homens com menos de quarenta anos pareciam estaracompanhados. Havia vários octogenários presentes, um deles, inclusive,estava sorrindo para mim. Hummm... Oitenta anos era velho demais?Talvez eu devesse ficar com um homem mais velho. Talvez estivessedesperdiçando meu tempo com homens que ainda tinham as próstatasfuncionando e os joelhos originais de fábrica. Talvez houvesse alguma coisainteressante em um velho rico e safado. O senhor ergueu as sobrancelhasgrossas, mas sua intenção de que eu fosse sua garotinha terminou derepente quando a esposa do homem apareceu, o cutucou com força e mefuzilou com um olhar da mais pura desaprovação.— Não se preocupe, Grace. Logo será sua vez — falou de repente umatia com voz de buzina.— Nunca se sabe, tia Mavis — respondi com um sorriso doce. Era aoitava vez naquela noite que eu ouvia alguma coisa parecida, e estavacomeçando a considerar a hipótese de tatuar em minha testa: Não estoupreocupada, logo será a minha vez.— É difícil vê-los juntos? — grasnou Mavis novamente.— Não. De jeito nenhum — menti, ainda sorrindo. — Fico muito felizpor estarem namorando. — Sem dúvida feliz era um exagero, mas, aindaassim, o que mais eu poderia dizer? Era complicado.— Você é corajosa — declarou Mavis. — É uma mulher corajosa, GraceEmerson. — Então ela se afastou em busca de mais alguém paraatormentar.— Muito bem, pode falar — exigiu minha irmã, Margaret, sentando-seem minha mesa. — Está procurando por algum instrumento bem afiadopara cortar os pulsos? Pensando em aspirar um pouco de monóxido decarbono?— Ah, veja só quanta doçura. Sua preocupação de irmã traz lágrimasaos meus olhos.Margaret sorriu.— É mesmo? Conte tudo para a sua irmã mais velha.Dei um longo gole no meu Gim-tônica.— Estou ficando um pouco cansada de ouvir as pessoas dizendo oquanto sou corajosa, como se eu fosse uma fuzileira naval que pulou emcima de uma granada. Ser solteira não é a pior coisa do mundo.— Eu vivo desejando ser solteira — respondeu Margs quando viu omarido se aproximar.— Oi, Stuart — falei com carinho. — Não vi você na escola hoje. —Stuart era o psicólogo escolar da Manning e, na verdade, fora ele quem meavisara que havia uma vaga no Departamento de História, seis anos atrás.Ele seguia o estereótipo... camisas modelo oxford, por baixo de coletesquadriculados, mocassins franjados e a barba característica. Um homemtranquilo e gentil. Ele e Margaret haviam se conhecido na faculdade eStuart era o servo devoto da esposa desde então.— Como está indo, Grace? — ele perguntou, me entregando um novocopo de Gim-tônica, o drinque que era a minha marca pessoal.— Estou ótima, Stuart — respondi.— Olá, Margaret! Olá, Stuart! — cumprimentou minha tia Reggie, dapista de dança. Então, ela me viu e congelou. — Oh, olá, Grace, como vocêestá bonita. E mantenha a cabeça erguida, querida. Logo, logo estarádançando em seu próprio casamento.— Meu Deus, obrigada, tia Reggie — respondi, dando um olharsignificativo na direção da minha irmã. Reggie me deu um sorriso triste e seafastou para fofocar.— Ainda acho isso esquisito — falou Margs. — Como Andrew e Nataliepuderam sequer... Meu Jesus Santíssimo! Não consigo entender o queaconteceu. Aliás, onde eles estão?— Grace, como você está? É só fachada, ou você está realmente bem? —Agora foi mamãe quem se aproximou da nossa mesa. Papai, empurrando aprópria mãe, já muito idosa, em uma cadeira de rodas, vinha logo atrás.— Ela está bem, Nancy! — ele rugiu. — Olhe para ela! Não lhe parecebem? Deixe-a em paz. Não fale sobre isso.— Cale-se, Jim. Conheço minhas filhas e sei que essa aqui está magoada.Uma boa mãe sabe disso. — Ela o fuzilou com um olhar cheio designificados.— Se você é uma boa mãe, eu sou um ótimo pai — devolveu papai.— Estou bem, mamãe. Papai está certo. Estou magnífica. Ei, Kitty nãoestá fantástica?— Quase tão bonita quanto em seu primeiro casamento — falouMargaret.— Você viu Andrew? — perguntou mamãe. — É difícil, querida?— Estou bem — repeti. — De verdade, estou ótima.Mémé, minha avó de 93 anos de idade, sacudiu o gelo do drinque emseu copo.— Se Grace não consegue prender um homem... no amor e na guerravale tudo.— Ela está viva! — disse Margaret.Mémé ignorou-a, e continuou me encarando com uma expressãodepreciativa em seus olhos aquosos.— Nunca tive problemas para conseguir um homem. Os homens meamavam. Você sabe que eu era uma beldade na minha época.— E ainda é — eu falei. — Olhe só para a senhora! Como consegue,Mémé? Não parece nem um dia mais velha do que 110 anos.— Por favor, Grace — murmurou meu pai, com a voz fraca. — Nãocoloque lenha na fogueira.— Ria se quiser, Grace. Ao menos meu noivo nunca me jogou fora. —Mémé virou de uma só vez o resto do seu Manhattan e estendeu o copopara papai, que o pegou obedientemente.— Você não precisa de um homem — disse mamãe, com firmeza. —Nenhuma mulher precisa. — Ela deu um olhar significativo para o meu pai.— O que quer dizer com isso? — devolveu papai.— Quero dizer o que estou dizendo — retrucou mamãe, levantando avoz.Papai revirou os olhos.— Stuart, vamos pegar outra rodada de bebidas, filho. Grace, passei emsua casa hoje e você realmente precisa de janelas novas. Margaret, bomtrabalho no caso Bleeker, querida. — Isso era o mais próximo que papaicostumava chegar de uma conversa, meio que organizando as coisasenquanto aproveitava para ignorar a minha mãe (e a dele). — E, Grace, nãose esqueça da encenação da Batalha de Bull Run no próximo fim de semana.Somos confederados.Papai e eu pertencíamos a "Brother Against Brother", o maior grupo deencenação da Guerra Civil Americana em três estados. Não é difícil nosreconhecer... somos os excêntricos que se fantasiam para os desfiles ebatalhas encenadas em campos e parques, atirando uns nos outros comarmas de mentira e despencando no chão em uma deliciosa agonia. Apesarde Connecticut não ter visto muito da ação da Guerra Civil(lamentavelmente), nós fanáticos do "Brother Against Brother" ignoramosesse fato inconveniente. Nossa programação começa no início daprimavera, quando encenamos algumas poucas batalhas locais, e entãopassamos a nos apresentar nos lugares onde a ação aconteceu de verdade,por todo o Sul, nos juntando a outros grupos de encenação para satisfazer ànossa paixão. É surpreendente quantos desses grupos existem.— Seu pai e essas batalhas idiotas — resmungou mamãe, ajeitando agola de Mémé, que aparentemente caíra em sono profundo... ou morrera.Mas não, seu peito ainda subia e descia. — Bem, eu não irei, é claro. Precisome concentrar na minha arte. Você virá à minha exposição essa semana,não é?Margaret e eu trocamos olhares cúmplices e deixamos escapar sons nãocomprometedores. A arte da mamãe era um assunto que era preferível quedeixássemos de lado.— Grace! — rosnou Mémé, voltando subitamente à vida. — Vá para lá!Kitty vai jogar o buquê! Vá! Vá! — Ela girou a cadeira e começou aempurrá-la contra as minhas canelas com a mesma crueldade de umRamsés atacando os escravos hebreus.— Mémé! Por favor! Você está me machucando! — Afastei minhaspernas do caminho, mas isso não a deteve.— Vá! Você precisa de toda a ajuda que puder conseguir!Mamãe revirou os olhos.— Deixe-a em paz, Eleanor. Não vê que ela já está sofrendo o bastante?Grace, querida, você não precisa ir se isso for deixá-la triste. Todos vãoentender.— Estou ótima — falei em voz alta, passando a mão pelo meu cabelorebelde que, escapara da prisão dos grampos. — Eu irei. — Maldição! Se eunão fosse seria pior. Pobre Grace, olhe só para ela, largada ali como umgambá morto na estrada, não consegue nem levantar da cadeira. Além domais, a cadeira de Mémé estava começando a deixar marcas no meuvestido.Enfim, fui para a pista de dança com a mesma animação de Ana Bolenacaminhando para a execução. Tentei me misturar com o resto das mulherese me posicionei no fundo, onde com certeza não teria chance de pegar obuquê. A música que tocava era "Cat scratch fever" — tão pouco elegante,que não pude reprimir um sorriso.Então vi Andrew. Ele estava olhando direto para mim, culpado como opecado. Sua namorada não estava à vista. Meu coração se apertou no peito.É claro que eu sabia que ele estava na festa. Foi minha a ideia de queviesse. Mas vê-lo, saber que ele estava aparecendo em público com outramulher pela primeira vez como um casal, fez minhas mãos suarem e meuestômago se revirar. Afinal, Andrew Carson era o homem com quem euimaginara que casaria. O homem que fora meu noivo até três semanasantes da data marcada para o nosso casamento. O homem que me deixaraporque se apaixonara por outra pessoa.Dois anos atrás, no segundo casamento da prima Kitty, Andrew foracomigo. Estávamos juntos há algum tempo e quando o buquê fora jogado,eu tentara pegá-lo com certa animação, fingindo estar embaraçada, massentindo-me satisfeita e orgulhosa por estar com um namorado firme. Nãopeguei o buquê e, quando deixei a pista de dança, Andrew passou os braçospelos meus ombros.— Acho que você poderia ter se esforçado um pouco mais — eledissera. Lembro da agitação que essas palavras causaram em mim.Agora Andrew estava ali com sua namorada nova. Natalie, de cabeloslouros, lisos e longos. Natalie de pernas que pareciam se estenderinterminavelmente. Natalie, a arquiteta.Natalie, minha muito amada irmã mais nova, que compreensivelmenteestava se mantendo afastada nesse casamento.Kitty jogou o buquê. A irmã dela, minha prima Anne, o pegou, o que,sem dúvida, fora planejado e ensaiado. O momento de tortura passara. Masnão. Kitty me viu, levantou as saias do vestido e correu em minha direção.— Logo será sua vez, Grace — ela disse em voz alta. — Está seaguentando bem?— Claro — eu disse. — É como outro déjà vu, Kitty! Outra primavera,outro de seus casamentos.— Pobrezinha. — Ela apertou o meu braço com força, destilandosimpatia, relanceou o olhar para a minha franja (sim, ela havia crescido nosquinze anos que haviam se passado desde que ela a cortara), e voltou paraperto do noivo e dos três filhos de seus dois primeiros casamentos.Trinta e três minutos mais tarde, decidi que já fora corajosa o bastante. Afesta de Kitty estava a pleno vapor e apesar de a música estar ótima e demeus pés estarem coçando para entrar na pista e mostrar àquelas pessoascomo realmente se dançava uma rumba, achei melhor ir embora para casa.Se houvesse um homem solteiro, de boa aparência, financeiramente seguroe emocionalmente estável ali, ele devia estar se escondendo embaixo damesa. Daria apenas uma passada rápida no banheiro e iria para casa.Abri a porta, dei uma olhada rápida e horrorizada no espelho — nemmesmo eu sabia que meu cabelo poderia ficar tão arrepiado, quase nahorizontal — e já estava entrando em um reservado quando ouvi umbarulhinho. Era um som tão triste... Dei uma olhada sob a porta. Sapatosbonitos. De tiras, saltos altos, de couro azul, de grife.— Ahn... está tudo bem? — perguntei, franzindo o cenho. Aquelessapatos me pareciam familiares.— Grace? — A voz era baixinha. Não admira que os sapatos tenham meparecido familiares. Minha irmã mais nova e eu havíamos comprado aquelepar juntas, no inverno passado.— Nat? Querida, você está bem?Ouvi o farfalhar de tecidos, então minha irmã abriu a porta. Ela tentousorrir, mas os olhos azul-claros brilhavam com lágrimas prateadas. Percebique seu rímel não havia escorrido. Ela parecia trágica e bela, como Ilsadizendo adeus a Rick no aeroporto de Casablanca.— Qual o problema, Nat? — perguntei.— Oh, não é nada... — Sua boca tremia. — Está tudo bem.Fiz uma pausa.— Tem alguma coisa a ver com Andrew?Sua fachada cedeu.— Hmmm... bem... Acho que não vai funcionar... entre mim e ele — elafalou, a voz trêmula, denunciando seu nervosismo. Natalie mordeu o lábio eolhou para baixo.— Por quê? — perguntei. O alívio e a preocupação guerreavam em meucoração. Sem dúvida não me mataria se o relacionamento entre Nat eAndrew não desse certo, mas minha irmã não costumava sermelodramática. Na verdade, a última vez em que a vira chorar fora quandoeu partira para a faculdade, doze anos antes.— Hmmm... é só um pensamento ruim — ela sussurrou. — Mas estátudo bem.— O que aconteceu? — perguntei. Senti uma súbita vontade deestrangular Andrew apertando meu estômago. — O que ele fez?— Nada — ela se apressou a me assegurar. — É só... hmmm...— O quê? — perguntei novamente, com mais determinação. Ela nãoolhava para mim. Ah, maldição! — É por minha causa, Nat?Ela não respondeu.Eu suspirei.— Nattie. Por favor, me responda.Os olhos dela se encontraram brevemente com os meus, mas logovoltaram a olhar para o tapete.— Você ainda não o esqueceu, não é? — sussurrou Natalie. — Mesmoque tenha dito que já esqueceu... Vi a expressão no seu rosto, na hora emque Kitty jogou o buquê, e... oh, Grace, me desculpe. Eu jamais deveria tertentado...— Natalie — interrompi —, já esqueci Andrew. De verdade. Prometo avocê.O olhar que ela me lançou era tão culpado e infeliz, tão carregado deangústia que as próximas palavras saíram de minha boca sem que eu medesse conta.— Nat, a verdade é que estou saindo com uma pessoa.Ops. Eu realmente não planejara dizer nada, mas acabou funcionandocomo um feitiço. Natalie levantou os olhos para mim, e mais duas lágrimasdesceram pelo rosto rosado como uma pétala de rosa, a esperançailuminando seu rosto, os olhos se arregalando.— Está mesmo? — ela perguntou.— Sim — menti, pegando um lenço de papel para limpar o rosto dela. —Há poucas semanas.A expressão trágica no rosto de Natalie começava a ceder.— Por que não o trouxe essa noite? — ela perguntou.— Oh, você sabe. Casamentos. Todos ficariam agitados se eu aparecessecom alguém.— Você não me contou — me acusou Natalie, uma pequena rugafranzindo sua testa.— Bem, não queria contar nada até saber se valeria a pena mencionar.— Sorri novamente, já começando a me apegar a ideia, como nos velhostempos, e dessa vez Nat retribuiu o sorriso.— Qual é o nome dele? — ela perguntou.Parei por um segundo para pensar.— Wyatt — respondi, lembrando da minha fantasia no dia em queprecisara trocar o pneu. — Ele é médico.
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A Arte de Inventar o Amor
Romance'Grace dominava como ninguém a arte de inventar o namorado perfeito...' Não que isso a deixasse desconfortável. A>inal, existem aqueles que se deleitam em olhar vitrines de grifes que não cabem no bolso... Outros, se realizam colecionando fotos d...