Capítulo Oito

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 Treze meses, duas semanas e quatro dias depois de Andrew tercancelado nosso casamento, eu achava que estava indo muito bem. Overão logo depois do rompimento fora bem difícil, sem a presença diáriados meus alunos, mas me dediquei inteiramente à minha casa e me torneiuma jardineira. Quando me sentia inquieta, costumava sair andando a esmopelo bosque estadual que ficava atrás da minha casa, seguindo quilômetrosacima ou abaixo do rio Farmington, sendo picada por mosquitos ouarranhada por galhos, com Angus trotando ao meu lado em sua coleiraenfeitada, a língua rosa provando a água do rio, o pelo branco sujo de lama.Passei o feriado de 4 de julho em Gettysburg — a Gettysburgverdadeira, na Pensilvânia —, com vários outros membros de grupos deencenação da Guerra Civil Americana, tentando esquecer a dor em meupeito ao menos pelos poucos dias em que estava envolvida na empolgaçãoda batalha. Quando voltei, Julian me colocou para trabalhar na Jitterbug's,dando aulas básicas de dança de salão. Mamãe e papai me convidavam comfrequência para a casa deles, mas como ficavam com medo de me aborreceracabavam sendo exageradamente educados um com o outro, e isso era tãotenso e esquisito que me pegava desejando que simplesmente voltassem aonormal e brigassem como sempre. Margaret e eu saímos em um passeio decarro pela costa do Maine, até chegarmos tão ao norte que o sol não sepunha antes das dez horas da noite. Passamos alguns dias ali, vendo osbarcos de pesca de lagosta oscilando no ancoradouro e não falando deAndrew.Graças a Deus eu tinha a casa. Pisos para lixar, rodapés para pintar,liquidações para checar, para que eu pudesse encher minha linda casinhacom coisas bonitas e bem escolhidas, que não tivessem nenhuma ligaçãocom Andrew. Uma coleção de imagens de São Nicolau que eu alinhariasobre o aparador da lareira na época do Natal. Duas maçanetas de latãocom uma gravação onde se lia Escola Pública, Cidade de Nova York. Fizcortinas, pintei paredes, instalei luminárias. Até tive um ou dois encontros.Bem, tive um encontro. E foi o bastante para me mostrar que eu ainda nãoqueria me envolver com ninguém.As aulas começaram e nunca amei tanto meus alunos. Eles podiam terseus defeitinhos, seus mimos e terríveis vícios de linguagem, como tipo e táligado ou cara. Mas eram tão fascinantes, tão cheios de potencial... e tinhamo futuro todo pela frente. Mergulhei na escola, como sempre fazia,procurando entre os tantos acomodados por um ou dois que tivessem umacentelha, um brilho que me mostrasse alguém que gostasse tanto de sabersobre o passado tanto quanto eu havia gostado quando era garota, alguémque conseguisse sentir o quanto a História era importante para o presente.O Natal veio e foi, o Ano-Novo também. No Dia dos Namorados, Julianapareceu na minha casa armado com um arsenal de filmes de ação, comidatailandesa e sorvete, e rimos até nossos estômagos doerem, ambos fingindoignorar o fato de que aquele deveria ser meu primeiro aniversário decasamento e que Julian não tinha um encontro há oito anos.E meu coração foi cicatrizando. De verdade. O tempo fez seu trabalho eAndrew passou a ser uma dor embotada. Na maioria das vezes, eu sópensava nele quando estava deitada na cama, sozinha. Eu o haviaesquecido? Dizia a mim mesma que sim.Então, algumas semanas antes do casamento de Kitty, a Prima QueCortava Cabelos, Natalie e eu saímos para jantar. Eu nunca contei a ela averdadeira razão por que Andrew e eu havíamos terminado. Na verdade,Andrew nunca dissera as palavras em voz alta. Não precisava.Natalie havia escolhido o lugar. Ela estava trabalhando na Pelli ClarkePelli, em New Haven, uma das maiores firmas de arquitetura do país. Natprecisara trabalhar até tarde e sugerira que nos encontrássemos no OmniHotel, que tinha um restaurante com uma bela vista e bons drinques.Quando a encontrei lá, fiquei um pouco chocada com a transformaçãode Natalie. Em algum momento naqueles últimos tempos, minha irmãzinhase transformara de uma garota linda em uma mulher deslumbrante.Sempre que eu a via na faculdade, ou em casa, ela estava usando jeans oumoletons, roupas típicas de estudante, e os cabelos longos, lisos e lourossoltos. Natalie era a típica garota americana, saudável e adorável. Masquando começara a trabalhar de verdade, investira em algumas roupas eem um corte de cabelo mais sofisticado, começara a usar um pouco demaquiagem e... uau! Ela parecia uma Grace Kelly dos dias de hoje.— Oi, Bumppo! — eu falei, abraçando-a com orgulho. — Você está linda!— Você também — ela retribuiu com generosidade. — Cada vez que avejo, penso que venderia minha alma por esse cabelo.— Esse aqui é o cabelo do diabo. Não seja louca — respondi, mas ficarasatisfeita. Só Natalie conseguia ser sincera a esse respeito, o anjinho.Pedi meu Gim-tônica genérico de sempre, já que não era uma bebedoramuito sofisticada. Nat pediu um Dirty Martini.— Que tipo de vodca prefere? — perguntara o garçom.— Belvedere, se você tiver — ela respondeu com um sorriso.— Temos, sim. Excelente escolha — comentou o homem, obviamenteimpressionado. Sorri, imaginando quando a minha irmãzinha aprendera abeber boa vodca.Então nos dedicamos a colocar a conversa em dia. Natalie me contousobre a equipe com que estava trabalhando na Pelli, sobre a casa queestavam projetando e que daria vista para a baía de Chesapeake, sobre oquanto adorava seu trabalho. Em comparação, me senti um pouco... bem,um pouco chata, eu acho. Não que ensinar não fosse absolutamentegratificante, porque era. Adorava meus alunos, a matéria que eu ensinava, esentia que a Academia Manning, com seus prédios de tijolos antigos eárvores majestosas, era parte da minha alma. Mas apesar do interessegenuíno de Natalie em ouvir que o dr. Eckart adormecera durante a reuniãode departamento, enquanto eu sugeria um reforço no currículo de aulas, oupor que me incomodava o fato de Ava nunca dar nenhuma nota abaixo de"B-", minhas novidades pareciam sem graça.Foi nesse momento que ouvi uma explosão de risadas. Nos viramos evimos um grupo de seis ou oito homens que haviam acabado de sair doelevador e entravam no bar. Na frente do grupo estava Andrew.Eu não o via desde o dia em que ele me abandonara, e vê-lo agora foicomo um soco no estômago. O sangue pareceu sumir de meu rosto, e entãovoltou rapidamente, me deixando muito ruborizada. Senti um zumbido noouvido e minha pele ficou muito quente, depois muito fria, então quentenovamente. Andrew. Não muito alto, não tão bonito assim, ainda muitomagro, os óculos escorregando do nariz pontudo, o pescoço doce evulnerável... Meu corpo inteiro reagiu à presença dele, mas minha menteestava vazia. Andrew sorriu para um de seus colegas e disse alguma coisa,então, mais uma vez, o grupo caiu na gargalhada.— Grace? — sussurrou Natalie. Não respondi.Então Andrew se virou e nos viu. Então a mesma coisa que aconteceracomigo, aconteceu com ele. Andrew ficou branco, então vermelho, os olhosarregalados. Ele se forçou a sorrir e veio em nossa direção.— Quer ir embora? — perguntou Nat. Eu me virei para ela e vi, semmuita surpresa, que ela parecia... bem, absolutamente linda. Um tom rosadocoloria seu rosto, com suavidade, e não com o tom vermelho forte do meu.Uma de suas sobrancelhas estava arqueada, com uma expressãopreocupada. Suas mãos delicadas, com as unhas sem esmalte, tocaram asminhas.— Não! Não, é claro que não. Estou bem. Ei, como vai? — eu disse, melevantando.— Grace — falou Andrew, a voz tão familiar que era quase uma parte demim.— Que boa surpresa — comentei. — Você se lembra de Nat, é claro.— É claro — ele confirmou. — Olá Natalie.— Olá — ela quase sussurrou, e afastou os olhos.Não sei bem por que convidei Andrew para se juntar a nós por algunsminutos. Ele logo concordou e nos sentamos juntos, tão civilizados esimpáticos que poderíamos muito bem estar tomando chá no Castelo deWindsor. Andrew engoliu em seco ao saber que Nat morava na mesmacidade em que ele trabalhava, mas disfarçou bem. Na Ninth Square... foifeita uma bela reforma ali. Oh, é mesmo, você está na Pelli? Que empolgante...Engraçado como o mundo é pequeno. E você, Grace? Como está na AcademiaManning? Os alunos são bons esse ano? Ótimo. Ahn... como estão seus pais?Bom, bom. E Margaret e Stu? Ótimo.E ficamos ali, sentados, Nat, Andrew, eu e o proverbial elefante dequatro toneladas que parecia estar sapateando na mesa. Andrew tagarelavacomo um mico nervoso e, embora eu não conseguisse ouvi-lo direito porcausa do zumbido nervoso em meus ouvidos, conseguia ver a cena tãoclaramente quanto se estivesse sob o efeito de alguma droga que aguçavaos sentidos. As mãos de Natalie tremiam levemente e, para esconder o fato,ela as cruzou com força sobre a mesa. Quando relanceava o olhar paraAndrew suas pupilas se dilatavam, embora ela estivesse se esforçando parasimplesmente não olhar para ele. A pele exposta acima da gola da blusa deseda que ela usava estava muito ruborizada. Até seus lábios pareciam maisvermelhos. Era como assistir a um programa do Discovery Channel sobre aciência da atração.Se Natalie estava se sentindo... bem, afetada, Andrew estava apavorado.A testa dele estava úmida de suor e as pontas de suas orelhas estavam tãovermelhas que pareciam ter sido queimadas pelo fogo. Ele falava maisrápido do que o normal e estava determinado a sorrir para mim comfrequência, embora parecesse não conseguir me encarar diretamente.— Bem — falou Andrew no instante em que conseguiu escapar —,agora preciso voltar para junto dos meus colegas. Hmmm... Grace, você...você está ótima. Foi muito bom vê-la. — Ele me deu um abraço rápido e eusenti o calor úmido do seu pescoço, o cheiro doce, quase infantil, de suapele, como o de um bebê na hora da soneca. Então Andrew se afastourapidamente. — Natalie, ahn... se cuide.Ela ergueu o olhar, que até então estava fixo na mesa, e o elefantepareceu tropeçar, cair e se arrebentar em cima da mesa. Porque naquelemomento, cintilando nos olhos lindos e azuis da minha irmã havia ummundo de infelicidade, culpa, amor e desespero. E eu, que não amavaninguém como amava a minha irmã, sentia como se me acertassem comuma pá na cabeça.— Cuide-se, Andrew — ela disse bruscamente.Nós duas o observamos se afastar para se juntar aos amigos, do outrolado do restaurante que, para nossa sorte, era bem grande.— Quer ir a outro lugar? — sugeriu Natalie quando Andrew já nãopodia nos ouvir.— Não, não. Estou bem. Gosto daqui — falei com sinceridade. — Alémdo mais, nosso jantar já deve estar chegando. — Nós sorrimos uma para aoutra,— Você está bem? — ela perguntou com delicadeza.— Oh, sim — menti. — Claro. Quero dizer, eu o amei e tudo o mais, elerealmente é um cara incrível, mas... você sabe. Andrew não era "O Cara". —Fiz o gesto de aspas com os dedos.— Ele não era?— Não. É como eu disse, Andrew é um homem incrível, mas... — Fizuma pausa, fingindo que estava pensando. — Não sei. Faltava alguma coisa.— Oh — ela falou, os olhos pensativos.Nosso jantar chegou. Eu pedira um bife e Nat pedira salmão. As batatasestavam ótimas. Nós comemos e conversamos sobre filmes e sobre nossafamília, sobre livros e programas de TV. Quando pedimos a conta, Nat fezquestão de pagar e eu deixei. Então nos levantamos. Minha irmã não olhouna direção de Andrew, apenas saiu andando calmamente para a porta, naminha frente.Mas eu olhei para trás. E vi Andrew encarando Natalie como um viciadoque precisa da droga, o desejo e o desespero expostos, nus. Ele nem me viuolhando, só tinha olhos para Nat.Alcancei minha irmã.— Obrigada, Nattie — falei.— Oh, Grace, não foi nada — ela respondeu, talvez um poucosentimental demais para as circunstâncias.Meu coração saltava no peito enquanto descíamos de elevador. Lembreido meu quarto aniversário. Lembrei dos grampos de cabelo, do aconchegonos sábados de manhã, do rosto dela quando parti para a universidade.Lembrei da sala de espera daquele hospital, do cheiro de café velho, dobrilho das luzes enquanto eu prometia a Deus qualquer coisa, qualquercoisa, se Ele salvasse a minha irmã.Revi a expressão nos olhos de Natalie quando ela olhou para Andrew eme perguntei o quanto de abnegação era necessária para darmos as costasao que talvez fosse o amor da nossa vida pelo bem de outra pessoa. Comoseria sentir como se um grande kabum nos atingisse e não poder pensar arespeito e imaginei se eu teria o desprendimento necessário para um atodessa magnitude. Me perguntei que tipo de coração eu tinha. Que tipo deirmã eu era de verdade.— Sabe, tive uma sensação engraçada — eu disse, enquantocaminhávamos de braços dados, de volta ao apartamento de Natalie.— Você tem o hábito de ter sensações engraçadas — ela respondeu,quase do jeito como sempre costumávamos implicar uma com a outra.— Bem, essa foi estranha mesmo, mas acho que está certa — continuei,parando na esquina do parque New Haven Green. — Natalie, acho que vocêdeveria... — Fiz uma pausa. — Acho que deveria sair com Andrew. Tenho aimpressão de que ele conheceu a irmã errada primeiro.Aqueles olhos incríveis de Natalie cintilaram novamente. Choque, culpa,tristeza, sofrimento... e esperança. Sim. Esperança.— Grace, eu jamais... — ela começou a dizer.— Eu sei. De verdade — murmurei. — Mas acho que você e Andrewdeveriam conversar.Encontrei com Andrew para jantar alguns dias depois. Disse a ele amesma coisa que já havia dito a Natalie. As mesmas emoções que haviamiluminado o rosto dela, agora iluminavam o dele, com uma a mais. Gratidão.Ele fez algumas objeções, por mero cavalheirismo, então se entregou, comoeu sabia que faria. Sugeri que os dois se encontrassem pessoalmente, emvez de conversarem por telefone ou trocarem e-mails. Ele aceitou a minhasugestão. Natalie me ligou no dia seguinte ao primeiro encontro deles e mecontou em um tom de suave deslumbramento que os dois caminharam peloNew Haven e terminaram tremendo, sentados em um banco sob as belasárvores da Wooster Square, onde ficaram só conversando. Ela perguntaravárias vezes se eu realmente não me incomodava com a situação ereassegurei-a de que não me incomodava nem um pouco.E isso seria verdade, se não fosse por um único problema. Eu não estavacerta de já ter esquecido Andrew completamente.  

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