Capítulo Quatro

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  Andrew e eu nos conhecemos em Gettysburg... ou melhor, na encenaçãoda Batalha de Gettysburg aqui mesmo, na honrada Connecticut. Ele foradesignado para o papel de um soldado confederado sem nome e deveriagritar "Que Deus condene essa guerra, essa agressão do Norte!" e então cairmorto no primeiro ataque dos canhões. Eu era o coronel Buford, o heróisilencioso do primeiro dia da Batalha de Gettysburg, e meu pai o generalMeade. Era a maior encenação em três estados e havia centenas de nós(não fiquem tão surpresos, essas coisas são muito populares). Naquele ano,eu estava responsável pela administração do "Brother Against Brother" e,antes da batalha, estivera correndo para cima e para baixo, com umaprancheta na mão, me certificando de que estava tudo pronto.Aparentemente, minha aparência era adorável... ao menos foi isso o queAndrew Chase Carson me disse mais tarde.Oito horas depois de começarmos, quando um número suficiente decorpos jazia no chão, papai permitiu que os mortos se levantassem e umsoldado confederado se aproximou de mim. Quando comentei que a maiorparte dos soldados da Guerra Civil Americana não usava tênis Nike, ohomem riu, se apresentou e me convidou para tomar um café. Duassemanas mais tarde, eu estava apaixonada.De todas as maneiras, aquele foi o relacionamento com que eu sempresonhara. Andrew era irônico e tranquilo, mais atraente do que bonito, comuma risada contagiosa e uma visão animada da vida. Era magro, tinha umpescoço de aparência doce e vulnerável e eu adorava abraçá-lo. Sentir suascostelas contra o meu corpo me dava uma vontade incontrolável dealimentá-lo e protegê-lo. Como eu, Andrew era um aficionado por História.Ele era procurador em uma grande empresa em New Haven, mas tinha umdiploma em História na Universidade de Nova York. Gostávamos dasmesmas comidas, dos mesmos filmes, dos mesmos livros.E vocês perguntariam: como era o sexo? Era bom. Normal, sensual obastante, agradável. Andrew e eu achávamos um ao outro atraente,tínhamos interesses mútuos e ótimas conversas. Nós ríamos juntos,ouvíamos as histórias um do outro sobre trabalho e família. Éramosrealmente felizes. Ou ao menos era isso o que eu achava.Se havia alguma dúvida da parte de Andrew, só percebi depois. Secertas coisas eram ditas com uma ponta de incerteza, eu não via. Não atéser tarde demais.Natalie estava em Stanford durante o tempo em que estive com Andrewe terminara seus estudos em Georgetown no ano anterior. Desde queestivera tão perto da morte, minha irmã caçula se tornara ainda maispreciosa para mim, e continuou a deleitar nossa família com suasconquistas acadêmicas. Já meu lado intelectual era um pouco mais vago, senão contássemos História Americana... eu era boa em jogar Trivial Pursuit econseguia me portar em coquetéis e coisas assim. Margaret, por outro lado,era assustadoramente inteligente, a mente afiada como uma navalha. Ela seformara em segundo lugar em Direito, em Harvard, e chefiava o setor deDefensoria Criminal na firma em que meu pai era sócio, deixando-o maisorgulhoso do que ele poderia dizer.Nat era uma mistura de nós duas. Era brilhante, mas sutil, era talentosa,mas discreta, e escolhera Arquitetura, uma mistura perfeita de arte, belezae ciência. Eu costumava falar com ela ao menos duas vezes por semana,mandava e-mails diários e a visitei quando ela optara por passar o verão naCalifórnia. Como ela adorava ouvir sobre Andrew! Como ficava feliz porsaber que a irmã mais velha encontrara "O Cara"!— Qual é a sensação? — perguntara Natalie uma noite, durante um denossos telefonemas.— Que sensação? — quis saber.— De estar com o amor de sua vida, boba. — Eu ouvi o sorriso em suavoz e sorri também.— Oh, é maravilhoso. É tão... perfeito. E fácil também, sabe? Nós nuncabrigamos, não como a mamãe e o papai costumam brigar. — Ser diferentedos meus mais era um sinal claro de que Andrew e eu estávamos nocaminho certo.Nat riu.— Fácil, hein? Mas apaixonado também, não é? Seu coração bate maisforte quando ele aparece? Você fica vermelha quando escuta a voz dele notelefone? Sua pele se arrepia toda quando ele a toca?Fiz uma pausa antes de responder.— Claro. — Eu sentia aquelas coisas? Claro que sentia. Com certeza. Ouhavia sentido, aquela sensação inebriante do princípio havia amadurecidopara algo mais... bem, confortável.Com sete meses de relacionamento, eu me mudara para o apartamentode Andrew em West Hartford. Três semanas mais tarde, estávamos vendoOz – A Vida é Uma Prisão, no canal HBO — está certo, não era o maisromântico dos programas, mas estávamos aconchegados juntos, no sofá, eestava gostoso. Andrew se virou para mim e disse.— Acho que deveríamos casar, você não acha?Ele me comprou um anel adorável. Nós contamos para nossas famílias eescolhemos o Dia dos Namorados, dali a seis meses, como o dia do nossocasamento. Meus pais ficaram satisfeitos, afinal, Andrew parecia umhomem tão estável e honesto, tão confiável. Era advogado patrimonial, umtrabalho muito estável, muito bem pago, o que tranquilizou meu pai, que sepreocupava que meu salário de professora fosse acabar me transformandoem uma sem-teto. Andrew era filho único e muito mimado pelos pais, quenão haviam ficado tão extasiados com a notícia quanto meus pais, masforam simpáticos o bastante. Margaret e Andrew conversavam sobre leis edireito e Stuart parecia apreciar a companhia. Até mesmo Mémé gostavatanto dele quanto conseguia gostar de um ser humano.Apenas Natalie ainda não o conhecera, pois estava presa em Stanford.Ela falara com Andrew ao telefone quando eu ligara para contar queestávamos noivos, mas foi só isso.Finalmente Natalie veio para casa. Era o feriado de Ação de Graças equando Andrew e eu chegamos à casa dos meus pais, mamãe nos recebeuna porta com seu costumeiro alvoroço de reclamações sobre comoprecisara levantar cedo para colocar a "maldita ave" no forno, e como secansara recheando o bicho, e ainda como meu pai era inútil. Papai estavavendo um jogo de futebol americano e ignorando mamãe, Stuart tocavapiano na sala de estar e Margaret lia.Então Natalie desceu voando as escadas, os braços abertos e meagarrou em um abraço apertado.— Gissy! — ela gritara.— Oi, Nattie Bumppo! — exclamei, apertando-a com força.— Não me beije, estou gripada — dissera Nattie, afastando-se. Seu narizestava vermelho, a pele um pouco ressecada, e ela vestia uma calça demoletom e um velho cardigã do nosso pai, e mesmo assim parecia maislinda do que a Cinderela no baile. Seus cabelos louros e sedosos estavampresos em um rabo de cavalo e não havia maquiagem alguma em seus olhosazuis muito claros.Andrew olhou uma vez para ela e literalmente deixou cair a torta quesegurava.É claro que o prato da torta era escorregadio. Um pirex comum, sabe? Eo rosto de Nat estava ruborizado daquele jeito porque... bem, porque elaestava gripada e esse era um dos sintomas de gripe, certo? É claro que sim.Mais tarde, fui obrigada a admitir que não fora nenhum pirex escorregadio.Conheço um kabum atingindo alguém quando vejo isso acontecer.Natalie e Andrew sentaram em extremidades opostas na mesa doalmoço de Ação de Graças. Quando Stuart desencavou o tabuleiro dePalavras Cruzadas e perguntou a eles se queriam jogar depois da refeição,Andrew aceitou e Natalie declinou no mesmo instante. No dia seguinte, nóstodos fomos ao boliche e eles não se falaram. Mais tarde, fomos ao cinema eos dois se sentaram o mais distante possível. Eles evitavam até entrar emum cômodo se o outro estivesse lá.— E então, o que acha? — eu perguntara a Natalie, fingindo que estavatudo normal.— Ele é fantástico — ela dissera, o rosto ficando vermelho mais umavez. — Muito legal.Aquilo fora o bastante para mim. Não precisava ouvir mais. Afinal, porque precisávamos falar sobre Andrew? Eu perguntei a ela sobre afaculdade, parabenizei-a por ter conseguido um estágio com Cesar Pelli e,mais uma vez, fiquei encantada com sua perfeição, com sua inteligência ecom seu coração generoso. A verdade era que eu sempre fora a maior fã daminha irmã.Andrew e Natalie se encontraram novamente no Natal, quando ambosse mantiveram distantes do visco pendurado sobre a porta como se fosseum pedaço de urânio cintilante, e fingiram não estar perturbados. Nãopoderia haver nada entre eles, porque Andrew era meu noivo e Natalie eraminha irmãzinha caçula. Quando papai pedira a Nat para descer colinaabaixo com Andrew em nosso antigo trenó, e nenhum dos dois haviaconseguido um modo de recusar, eu ri ao vê-los bater e rolar na neve, umabraçando o outro. Não, não havia nada ali.Nada... Até parece...Mas não era eu quem faria qualquer comentário. Sempre que minhairritante vozinha interior resolvia trazer o assunto à tona, normalmente àstrês da manhã, eu dizia que ela estava errada. Andrew estava bem alicomigo. Ele me amava. Então, eu esticava a mão e tocava seu cotoveloossudo, e aquele pescoço doce. O que tínhamos era verdadeiro. Se Nat tinhauma paixonite por ele... tudo bem. Quem poderia culpá-la?Meu casamento seria em dez semanas... então oito... então cinco.Mandamos os convites. Finalizamos o cardápio. O vestido foi ajustado.E então, vinte dias antes da data, Andrew chegou em casa do trabalho.Eu estava sentada diante da mesa da cozinha, com uma pilha de testes paracorrigir diante de mim. Ele trouxera comida indiana para nós e estavamuito pensativo. Andrew chegou mesmo a desembalar a comida, e o cheiroapetitoso do molho sobre o arroz que eu tanto gostava se espalhara pelacozinha. Então vieram aquelas palavras terríveis.— Grace... precisamos conversar — ele dissera, enquanto encarava oonion kulcha, o delicioso pão indiano de cebola. Sua voz estava trêmula. —Você sabe o carinho enorme que eu tenho por você.Fiquei paralisada, nem levantei os olhos das provas, as palavras delesoando tão amaldiçoadas quanto "Sherman invade a Georgia",provavelmente soara para os confederados. O momento que eu vinhaconseguindo afastar de minha mente com sucesso, agora estava sedesenrolando diante de mim. Eu sabia que jamais conseguiria olhar paraAndrew da mesma maneira, que não conseguiria respirar normalmente.Meu coração batia descompassado.Ele tinha carinho por mim. Não sei quanto a vocês, garotas, mas quandoum cara diz "Tenho carinho por você", sempre me parece que as notíciasserão péssimas.— Grace — ele sussurrara, e eu finalmente consegui reunir coragempara encará-lo. Enquanto o outro pão que ele trouxera, um naan de alho,esfriava, Andrew falou que não sabia bem como me dizer isso, mas que nãopoderia se casar comigo.— Entendo — eu respondera em uma voz distante. — Entendo.— Sinto tanto, Grace — ele sussurrara e, para seu crédito, seus olhosestavam marejados.— É Natalie? — perguntei com uma voz baixa e irreconhecível.Andrew abaixara os olhos para o chão, o rosto muito vermelho, e suamão tremia quando ele a passou pelos cabelos macios.— É claro que não — ele mentira.E isso foi tudo.Nós havíamos acabado de comprar a casa na rua Maple, embora aindanão estivéssemos morando lá. Como parte de nosso acordo de divórcio, oucomo quer que queiram chamar o que aconteceu — dinheiro sujo, culpa,danos emocionais — Andrew não quis que eu devolvesse o dinheiro que elehavia dado para a entrada. Papai reorganizou minhas finanças, usou algunsfundos de investimento que meu avô me deixara para diminuir a hipoteca,de modo a que eu pudesse arcar sozinha com ela, e eu me mudara. Sozinha.Natalie ficara arrasada quando descobrira. Obviamente eu não lhecontara o verdadeiro motivo de nosso rompimento. Ela me ouvira mentir,dando razões como simplesmente não estava bom... não estava pronta...decidimos que precisávamos ter certeza.Ela fizera apenas uma única pergunta, em voz muito baixa, quando euacabei de falar.— Ele disse mais alguma coisa?Porque ela deve ter percebido que não fora eu quem rompera. Natalieme conhecia melhor do que qualquer outra pessoa.— Não — respondi bruscamente. — Não era para ser. Tanto faz.Natalie não tinha nada a ver com aquilo, tentei me tranquilizar. Era sóque eu não encontrara realmente "O Cara", não importa o quanto Andrewparecesse enganadoramente perfeito. Não, pensei sentada na sala de estarrecém-pintada da minha casa nova, comendo brownies feito uma louca evendo o documentário sobre a Guerra Civil, de Ken Burn, até que eu otivesse decorado. Andrew simplesmente não era "O Cara". Muito bem. Euencontraria "O Cara", onde quer que ele estivesse. Então o mundo saberia oque era o amor, caramba!Natalie terminou a faculdade e voltou para o Leste. Ela conseguiu umapartamentinho em New Haven e começou a trabalhar. Nós nos víamoscom frequência e eu estava feliz. Ela não era a outra mulher... era minhairmã. A pessoa que eu mais amava no mundo. Meu presente de aniversário.  

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