O Afilhado das Fadas - Capítulo 1

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1.

Não sei bem como começar. Nunca escrevi um diário antes, talvez porque nada do que se passava na minha vida até cerca de duas semanas, valia o trabalho de ser posto em uma folha de papel. (Meu Deus, duas semanas! Mal dá para acreditar em tudo o que nos aconteceu desde então, o que vimos ao longo desta estrada, tudo o que merece registro! Não que eu tenha medo de esquecer alguma coisa! Isso seria impossível! Mas um dia, quando o jogo chegar ao fim, estas páginas poderão nos ajudar a entender isso tudo).

Talvez eu devesse iniciar com "tudo começou naquela tarde..." e de fato, tudo começou naquela tarde, embora não soubéssemos disso. Como íamos saber? Pensávamos que Eneias ia a um jogo de RPG.

Conheço Eneias deste a segunda série do primeiro grau. Ele é parte da nossa turma desde então, uma turma de cinco amigos: Eneias, César, Cíntia, Edula e eu. Sempre andamos juntos e desde um ano, mais ou menos, a irmã mais nova de César juntou-se à nós, para alegria dos pais e irritação do irmão. E também havia Cezna, o mais velho do grupo. Eu nunca compreendi bem a presença dele entre nós, mas o aceitava com alegria, porque adorava sua companhia. Também o achava atraente, a pele clara emoldurando os olhos castanhos que me encaravam com tranquilidade debaixo de uma franja de cabelos negros e encaracolados. Alguma vez até cogitei "ficar" com ele em alguma festa. Mas Cezna sempre parece tão maduro - não é do tipo que "fica" com alguém em uma festa. E além do mais, éramos amigos. Amizade, a coisa mais importante de todas, dentro ou fora do Tabuleiro, não é assim?

Então: éramos, na verdade, uma coleção de jovens sem muita certeza do fazer com aquele imenso tempo que era "a vida inteira pela frente".

César era o cético da turma. Como num roteiro medíocre, usava óculos sobre o olhar cor de mel e era CDF. Tinha a pele cor de jambo descorada, porque nunca pegava sol, a não ser naquela semana em que sua família tradicionalmente passava na praia, na casa de parentes. Então o tom de pele dele escurecia tanto que chegava a me dar inveja. Cínico, adorava implicar com Edula, a minha melhor amiga, magra como uma tábua, de cabelos muito curtos e brincos sempre muito longos, as maçãs do rosto salientes e a boca bonita. Cíntia era a ricaça da turma. Estava sempre comprando algo, exibindo celular novo e comentando alguma viagem. Frequentemente ficava mais loura do que era, e uma vez apareceu com o cabelo cor de abóbora, o que nos levou a intermináveis semanas de gozação. Mas ela não parecia se importar com isso. Nos encarava brevemente desde os olhos azuis sempre bem delineados por maquiagem estrangeira e resmungava que tinha de parar de andar com "gentinha". Mas não parava. Acho que gosta de andar com gente mais pobre do que ela, porque adorava nos mostrar quanto dinheiro tinha - e quanto dinheiro nós não tínhamos. Ficar com o grupo das ricaças da escola, também, significaria mudar hábitos e emagrecer alguns quilos, coisa que ela nunca conseguiu. Suponho que era mais divertido para o seu ego ficar com a gente.

Eneias queria ser músico, e numa declaração contínua de autoafirmação, levava o violão consigo para todos os lados. As mãos dele eram muito brancas, os dedos longos e as unhas roídas sistematicamente. Seus olhos tristes e escuros eram o fraco de Márcia, a menor de todos nós. Era cor de jambo como o irmão, mas mantinha a cor do verão sobre si, mesmo nos invernos mais frios. Os cabelos eram longos, os cachos fechados e miúdos preservados em graciosas espirais escuras que emolduravam seu rosto bonito, sempre com uma maquiagem pesada para parecer mais velha. Achava que assim conseguiria chamar a atenção de Eneias.

Eu me chamo Cida. Cecília para os estranhos. Alves Pereira, para o diretor da escola. Saco de pancadas do irmão pequeno, alvo de admiração familiar, cabelos castanhos, a pele clara, os olhos escuros, mirrada e sem graça. Eu tinha dezoito anos - eu tenho dezoito anos - e teoricamente, estava me preparando para enfrentar o vestibular de História. Não, "enfrentar" é um termo pouco específico. Eu diria que estava me preparando para ser massacrada pelo vestibular de História, coisa que, francamente, não me preocupava em absoluto.

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