O Afilhado das Fadas - Capítulo 2

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2.

O nº 4170 da Benjamim Constant era uma casa bonita com um jardim e janelas com vidros fumê. Márcia nos olhou com um ar de triunfo tão difícil de engolir que quase acertei-lhe um tabefe ali mesmo, no meio da calçada. Havia uma grade ao redor da propriedade. Ficamos parados diante dela como quem vê uma casa mal-assombrada, ouvindo um silêncio raro onde ecoava o ruído dos automóveis. Encostei-me na grade de leve, só para sentir a existência do material. Do edifício que se erguia ao lado do terreno vinha uma melodia conhecida. Era um edifício de seis andares, de paredes bege e nuas. Um som agudo chegava no mesmo tom abafado dos ruídos do centro. Por trás da casa delineavam-se os esqueletos da distribuidora de energia elétrica que atendia o bairro. Estávamos quietos, hesitando, sentindo os cabelos dos braços se eriçarem com a brisa que vinha de lá, gelada pela sombra do edifício que nos ocultava o sol, pelo silêncio que dela emanava como uma capa espessa. Eu teria jurado que a casa estava deserta.

Márcia levantou a mão e tocou a campainha.

Ouvi o tilintar como se estivesse sobre mim. Olhei para a menina que, pálida, já ia tocá-la de novo.

- O que você pensa que está fazendo? - gritou César empurrando-a com tanta força que ela caiu no chão. Ele avançou com os punhos fechados, o rosto cinzento e Cezna rapidamente meteu-se entre os dois.

- Ei, cara, vá com calma! - pediu segurando-o.

- Vai ver se eu estou na esquina, vai - volveu Márcia já de pé, disposta a enfrentá-lo, mesmo que tivesse o dobro do seu tamanho.

- Posso ajudar? - interrompeu uma voz macia e gentil. Dei um pulo e larguei a grade imediatamente. E no entanto a mulher que falara não era nada assustadora. Tinha um ar de cabeleireira, do tipo que te arruma para a primeira comunhão. Seu rosto tinha as maçãs altas e era emoldurado por cabelos grisalhos que seriam prateados se não tivessem um incrível toque rosado. Nos olhava divertida, com os braços cruzados e as mãos descansando nos antebraços. Fiquei meio decepcionada quando vi que usava unhas curtas e sem esmalte. Ela sorriu com simpatia, mas o olhar foi gelado. Talvez a brisa fria viesse da respiração dela.

- O que desejam? - indagou ela, voltando-se para César, que a muito custo se acalmava. Ele abriu a boca para falar, talvez para dizer que tinha sido um engano, mas Márcia foi mais rápida do que ele e anunciou:

- Viemos para o jogo.

Cíntia engasgou-se, Cezna fungou com violência.

Houve um breve silêncio. A mulher estava surpresa, eu tinha certeza, mas não queria demonstrar.

- Ora, não diga! - ela disse, por fim, a voz ligeiramente trêmula. - Eu nem sabia que haveria jogo hoje! Quem os convidou?

Pela primeira vez Márcia titubeou e olhou para nós. César virou-lhe o rosto e eu encolhi os ombros.

- Eneias. Ele nos convidou, já faz uns dias, mas não pudemos vir antes.

Era mesmo a minha voz que soara? Meus amigos me encararam e eu tentei arrumar as coisas:

- Suponho que hoje não haverá partida.

A mulher nos avaliou com frieza. Era óbvio que sabia que dali iríamos diretamente à delegacia mais próxima. Súbito, riu:

- Sempre há partida quando há jogadores! Sejam bem-vindos, meus amigos - afinal, os amigos de Eneias são meus amigos também. Meu nome é Clara.

Titubeamos por uma última vez, olhando o portão que se abria. Se de fato Eneias fosse seu prisioneiro, qualquer passo em falso poderia ser perigoso para ele. E se algum de nós não entrasse, saindo para buscar ajuda, então podia ser que todos nós viéssemos a correr algum tipo de risco. Não havia escolha possível. Entramos.

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