Dentadas, by Iolanda Pinheiro

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Emília acordou cedo naquele dia, mas não foi trabalhar. Olhou para as roupas penduradas nas cordas, abertas e bem esticadas, como havia aprendido a estendê-las. A blusa branca era a única que não estava manchada de sangue. A saia preta ao lado não tivera o mesmo bom destino, mas, sendo preta, ninguém repararia.


Uma hora depois estava sentada numa sala com quatro homens. Na mesa, um copo de água limpa e fresca que fora servido para ela. Emília se sentia importante. Os homens sorriam, esperavam que desse as respostas para as suas perguntas. Coisas que só ela sabia...

- A senhora conhece a acusada?
- Sim.
- São amigas?

Emília não contava com aquela pergunta. Como poderia ser amiga de alguém que havia tentado arrancar a orelha de sua filha à dentadas?

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Até casar com Alex, Lilian havia morado na fazenda com a família. Era uma menina ingênua, e cercada de cuidados. Em casa eram todos muito calados e sérios. Quando o pai ainda era vivo trabalhava com os irmãos na lavoura. Saíam bem cedo e só voltavam quando o sol se punha. O homem não queria que os filhos estudassem, achava que estudo era uma armadilha do diabo para distrair as pessoas. Bastava que soubessem roçar a terra e seriam homens decentes. A filha vivia ao lado da mãe, ambas de cabeça baixa. Mulheres não deviam levantar os olhos para os homens. O rebenque pendurado no prego servia para lembrar a mulher e os filhos do respeito que deveriam ter.
No dia em que o caixão desceu à terra os três mais velhos ganharam o mundo. Apenas um deles voltou, meses mais tarde, acompanhado de um amigo. Chegaram antes do jantar trazendo coelhos para que Dona Alice cozinhasse. No meio dos abraços o visitante pôs os olhos na menina. Arrancharem-se o filho e o amigo na fazenda. Não demorou muito para que o forasteiro propusesse casamento à irmã do amigo.

Os dois foram morar num pequeno sítio à beira de um lago. Assim como todos os outros moradores locais, a casa ficava numa grande clareira na floresta, a um dia de distância da vila

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Todos os dias Alex levantava antes mesmo que o sol nascesse. Quando acordava já havia o pão de milho preparado sobre a mesa, junto com o copo de vinho. Beijava a esposa e saía para cortar lenha. A rotina lhe dava uma sensação de tranquilidade.


Nos primeiros meses tudo parecia correr bem, até que um dia chegou em casa e encontrou a esposa caída no chão da cozinha, pálida e gelada. Levou-a no dia seguinte para a vila.

- Não é nada, meu filho – falou o médico – Sua esposa está grávida e desnutrida. Leve este xarope e faça-a comer a carne do fígado dos animais. Ela ficará bem.
Lilian tomava as três colheradas do remédio todos os dias. Comia as vísceras das galinhas mal cozidas para não perder a vitamina, mas a saúde da esposa só parecia piorar. O rapaz tinha medo de deixá-la muito tempo sozinha então pediu para uma vizinha visitar a esposa de vez em quando.


Nada parecia melhorar o estado de saúde de Lilian. Em pouco tempo lhe surgiram manchas arroxeadas sob os olhos, emagrecia a olhos vistos, não tinha fome.

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Assim que Alex partia para a floresta, Lilian trancava o ferrolho da casa. Sentia sede, mas quando o pote com a água secava ela não o enchia novamente. Não sentia coragem de falar nada para o marido, mas nos últimos tempos havia ficado com medo de entrar no lago. Se contasse o que havia visto na água tinha certeza de que ele a acharia louca. Nem ela mesma saberia explicar o que era aquilo.

Havia ido se lavar na semana anterior quando viu uma mancha brilhante a poucos metros de si. Firmou a vista e viu que aquela coisa se mexia, era um ser, uma espécie de animal prateado, deslizando sinuosamente pela parte funda da água, roçando em suas pernas. Nadou desesperadamente para longe, e só acalmou seu coração quando pisou no chão lamacento e gelado próximo da margem.

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