Você já percebeu como o dia nada mais é do que uma ordem de acontecimentos que se combinam? Como esses dias indomáveis formam a sua vida, e como passamos tanto tempo pensando em como nossas escolhas a afetam, mas não somos capazes de nos dar conta de que na verdade elas afetam a vida de outras pessoas.
Cinco anos atrás, tivemos que adiar nosso casamento para o dia 11 de novembro, porque a mãe de minha esposa ia fazer uma viagem importante. Dois meses atrás, Alice, secretária do meu chefe começou a dormir com ele, porque o marido a deixou pela instrutora da academia e ela não tinha dinheiro pra pagar a casa. Ao mesmo tempo, meu chefe, Sr. Franz teve uma briga terrível com a esposa, e exatamente hoje ele resolveu comprar flores pra ela e tentar uma reconciliação. Ainda hoje, 11 de novembro, resolvi sair mais cedo e fazer uma surpresa à minha esposa, o que me foi permitido pelo meu chefe, que pesquisava buquês de flores na internet e não deu a devida atenção ao meu pedido.
Quando cheguei em casa, entretanto, me deparo com uma cena que não poderia esquecer, nem que eu tentasse por milhões de anos. Se eu tivesse chegado mais cedo, isso não teria acontecido. Se eu não tivesse gastado mais do que devia em uma televisão, poderia ter tirado o dia de folga.
É engraçado como a vida é feita de "E se...".
Quanto mais paramos pra pensar, mais percebemos que não temos controle sobre absolutamente nada. Nunca prevemos a consequência que os mínimos detalhes causam, e é aí que está o problema. Quando nos damos conta disso é tarde demais.
Quando meu momento chegou, Isabela estava com a barriga aberta, com seus órgãos caindo da barriga enquanto ela fazia panquecas. Havia um profundo corte de um lado da cintura ao outro. Intestinos se misturavam com o sangue do chão, formando a cena mais monstruosa e bizarra possível.
Franzo o cenho e toco minhas têmporas com os dedos delicadamente, repetindo o gesto várias e várias vezes. Fecho os olhos e respiro fundo, deitando em posição fetal no chão manchado com o sangue da mulher. A mesma que eu prometi cuidar e proteger há exatos seis anos atrás.
Eu não sei quanto tempo eu dormi. Dois dias, duas horas, dois minutos... É difícil dizer. Mas quando acordei, o corpo havia sumido. Eu estava deitado no sofá da sala, como se nada tivesse acontecido. Como se tudo tivesse sido um sonho ruim.
Me levanto e olho em volta, escutando um barulho vindo da cozinha. Atravesso o cômodo com passos largos e mais uma vez me deparo com Isabela, segurando o telefone preto dessa vez enquanto gesticula e diz palavras sem sentido algum. Ela parecia feliz. Me aproximo aos poucos e encosto a mão na sua cintura. Não pode ser real.
-Oi meu amor! Feliz cinco anos de casamento! Eu vou fazer panquecas, o que acha? -Pergunta em sua típica animação. Não havia tempo ruim pra ela.
-Você está...
-Linda? Eu sei. Cortei o cabelo, você reparou? -Então joga seus lindos cabelos louros para os lados. Estava mesmo mais curto.
-Ficou bonito. -Digo por fim, confuso demais para refutar, mas ela se dá por satisfeita.
E então uma ideia me vem à mente: Se ela está viva, o assassino também está. Talvez isso seja Deus me dando uma segunda chance. Uma chance de salvar a minha esposa. Salvar minha única família e meu único amor.
-Veio alguém aqui? -Indago, olhando em volta e pegando uma faca para nos defender.
-O carteiro. -Aponta com a cabeça para a correspondência.
-Mais alguém?
-Não. -Ela então se vira pra mim. Sinto meu sangue ferver quente nas veias. Ninguém machucaria minha família. -Você está tomando os seus remédios?
-Não mude de assunto. Não estamos seguros. Vem. -Puxo ela pela pelo pulso até o andar de cima e nos tranco no nosso quarto, olhando em volta cuidadosamente. Meus ouvidos estão mais atentos do que nunca, e eu sinto que a qualquer em momento meu coração vai explodir.
-Do que tem tanto medo?
A olho e noto que novamente o corte em seu ventre estava presente. Direciono o olhar pra faca que peguei para nos defender e ela estava cheia de sangue, então a jogo longe, completamente confuso.
Sua face então muda. Seus traços delicados adquirem um semblante inexplicável. Ela sorria, mas não era o sorriso espontâneo de quando nos conhecemos. Ele agora era mórbido e seus dentes pareciam estranhamente grandes. Prendo a respiração por um minuto e ela acaricia meus cabelos, chegando mais perto. Seu cheiro era diferente, mas ainda assim, não ruim. Algo como cheiro de carne fresca.
-Mas você está viva. -Franzo o cenho.
-Não estou não. -Responde com um sorriso ainda maior.
-Quem te matou?
-Você.
Suas palavras me machucam. É como um buraco negro que consome todo o meu ser. Eu a matei. Matei minha esposa. Nunca mais sentiria seu toque, seus beijos... Seu amor. O sangue da única pessoa que já amei está em minhas mãos, e isso é algo que nunca vou conseguir superar
Sinto o arrependimento consumir minha alma.
Fecho os olhos, e as lágrimas rolarem pelo meu rosto, enquanto tento lembrar dos acontecimentos anteriores. Eu chego em casa e ela está fazendo panquecas. Está tão linda, tão... E então os gritos. Algo sobre eu não prestar atenção nela. Eu entro em pânico e...
Abro os olhos e vejo seu rosto angelical me encarar com um sorriso.
-Ainda podemos ficar juntos.
-Como? -Pergunto sentindo uma onda súbita de esperança.
Ela aponta com a cabeça para uma corda largada no chão. Mesmo sem saber como foi parar lá, a pego, sentindo uma textura viscosa. Estranha. Olho para a cadeira e finalmente entendo o que ela queria dizer.
-Eu posso te ajudar a ver a luz em meio ao seu desespero. Você amarra a corda e eu empurro a cadeira. Certo? -Sorri e eu respiro fundo, assentindo.
Amarro a corda no pescoço e no ventilador de teto, ficando na ponta dos pés. Satisfeita, ela se aproxima da cadeira, fazendo um carinho leve na minha perna. Um sorriso largo e amarelo brota em seus lábios. Um sorriso desumano. Suas feições aos poucos sofrem uma metamorfose, assim como seu corpo, que se torna esguio e torto. Era como um monstro. O que muitas crianças provavelmente chamariam de bicho papão. Tal criatura não tinha olhos. Eram fundos como um abismo, e analisavam profundamente a minha alma. Seu sorriso era permanente. Inalterável. Suas mãos eram ossudas, possuindo dedos compridos, que se enroscam na cadeira, a puxando com violência. O ar me falta e então eu sinto aos poucos tudo escurecer, deixando somente o sorriso amarelo e monstruoso na minha mente.
"-...acredita-se que o homem tenha matado a esposa durante um surto psicótico, se enforcando logo em seguida com o intestino da mesma. Fiquem ligados para mais detalhes logo após os comerciais."
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Contos de Terror
HorrorPara você que se sente facilmente atraído por contos de terror, enjoy ;)