Nina - CP 1

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Entrai pela porta estreita porque a porta da perdição é larga, e o caminho que a ela conduz é
espaçoso. Há
muitos que por ela entram. E como a porta da vida é pequena. Como
ocaminho que a ela
conduz éestreito. E como
há poucos
que a ela encontram.
São Mateus, cap. VII, v. 13 e 14
Nina era uma menina com jeito de mulher. Uma mulher com jeito de menina. Uma moça de uma leveza
adorável e cativante. Gentil com todos e sempre especialmente carinhosa com a família e os amigos mais
próximos. Chegava aos ambientes sempre de uma forma descontraída, leve como uma brisa quente em um
fim de tarde de verão, aquela que entra sorrateira pela fresta da janela e traz uma tranquilidade gostosa
pra gente. Suave como uma gota de orvalho, trazia em si um frescor que espalhava alegria pelo ar. Era
praticamente impossível não sorrir ao encontrá-la, mesmo que ao acaso, de forma repentina, pela cidade,
em alguma esquina qualquer. Claro que seria um sorriso sem graça, daqueles que a gente pendura na cara
e nem imagina o quão bobo estamos parecendo. Isso porque seus olhos eram como se fossem duas
pérolas verdes, brilhosas, que ficavam ainda mais cativantes quando eram sobrepostos por uma
| Osmar Barbosa | Cinco Dias no Umbral | 39
mecha desinibida e ondulada de seus cabelos ruivos que se aventurava em dançar por ali.
Era exatamente com essa cara de bobo que George a segurou pela primeira vez em seus braços, ainda na
maternidade. O pai mais bobo do mundo. Poderia inclusive chegar ao ponto de ter que pegar emprestado
um dos babadores do enxoval de Nina para enxugar um pouquinho de toda essa admiração. “E como
parece com a mãe”, pensou logo no primeiro segundo em que fitou aqueles olhos esverdeados como a
água do mar. Percebia que ela havia herdado o olhar enigmático e cativante ao mesmo tempo. Um olhar
que poderia de fato conquistar o mundo, mas que trazia em si a humildade suficiente para se satisfazer em
conquistar um sorriso apenas.
Nina desencarnou aos vinte e quatro anos de idade. Despertou do transe imediato após o desencarne já na
Colônia Espiritual Amor & Caridade.
– Bom dia, minha querida Nina.
Nina não conseguiu disfarçar o susto. Estava acordando aos poucos e, de repente, um homem magro, de
estatura mediana, caminhando bem lentamente se aproximou de sua maca, que parecia não ter contato com
o chão. Era Irmão Daniel, Diretor Espiritual da Colônia. Daniel costumava caminhar de uma forma tão
solene e tranquila que parecia levitar suspenso no ar. A voz estava sempre calma e serena, o que fazia
com que todos ficassem observando cada uma de suas doces e sábias palavras com uma certa dose de
contem-plação e admiração. Daniel fora pessoalmente dar as boas vindas à nova egressa do plano material. Mesmo com a voz ainda trêmula
por conta da viagem desgastante que acabara de fazer, Nina buscou entender o que estava acontecendo.
– Onde exatamente estou? Percebo que esse lugar me parece uma enfermaria. Tipo uma enfermaria de
uma colônia espiritual, é isso mesmo? Mas quem é você?
Nina estava um tanto quanto aflita e assustada, com as mãos alisando o peito de uma forma angustiada,
como se estivesse sentindo um pouco de dor ou um certo desconforto. Conseguiu arriscar um palpite de
onde estava por ter sido uma moça que sempre procurava ler muitos livros, entre eles aqueles escritos
por Chico Xavier e Allan Kardec. Levantou o corpo lentamente para encostar suas costas um pouco mais
acima na maca. Confessou, meio envergonhada, estar com a boca seca, no que foi prontamente atendida
por Marques, assistente que acompanhava Daniel. Marques estendeu a ela um copo de água fresca e
cristalina. Daniel procurou acalmá-la.
– Fique tranquila, Nina. Aos poucos você recobrará não somente sua integridade energética como o
conhecimento a respeito de tudo. Você vem passando por momentos de muita dificuldade.
– Será que foi por isso que tive esses sonhos estranhos que me remeteram à Terra? Parecia estar lá ainda,
tive essa sensação muito real. Conseguia ver claramente minha mãe, meus irmãos e meu pai. Estavam
todos fazendo muitas preces por mim. Senti uma forte dor no peito, intensa e profunda. Foi então que
dormi e acordei aqui, muito assustada.
– Não precisa se preocupar, Nina. A oração vibra com intensidade em nosso espírito. Quando
direcionadas para a melhora de sua doença, ela vibra sobre o mal pelo qual seu corpo físico está
passando neste momento.
– Mas como assim, irmão Daniel?
– Sua família está em oração por seu coração, órgão adoecido do seu corpo físico. Aqui, no mundo
espiritual, você sente as vibrações vindas da Terra, como se o seu coração espiritual batesse fraco e
doente. Lembre-se: a matéria é tão e simplesmente um meio, não o fim, o propósito, como muitos pensam
de forma equivocada.
Daniel prosseguiu com as explicações, sempre de forma calma e tranquila.
– Você sabia que seu corpo físico já teve a morte cerebral decretada pelos médicos? Logo, todo este
sofrimento vai ser interrompido assim que seus pais autorizarem que os aparelhos que mantêm seu corpo
físico vivo sejam desligados em definitivo. Porém, seus pais ainda alimentam esperanças de que você
resista e reaja. Por isso não autorizaram que os médicos desligassem os aparelhos.
– Acho que começo a compreender. Com isso, mesmo sem querer, e sem perceber, acabam aumentando e
prolongando o sofri-mento, não é mesmo irmão Daniel?
– Sim, Nina, é isso mesmo. E ainda bem que você pôde vir direto para nossa colônia, pois aqui é, e
sempre foi, o seu lugar. Foi daqui mesmo que você saiu para dar os ensinamentos tão importantes para
todos aqueles que estiveram juntos de você no plano material nessa encarnação. A dor é uma benção que
Deus envia aos seus eleitos. Seja paciente. A lembrança da existência corpórea não se apresenta ao
espírito de maneira completa e repentina logo após a morte, mas sim pouco a pouco, de forma lenta e gradual, como algo que sai de um nevoeiro.
– Obrigado, irmão. Começo a me sentir mais tranquila. E agora tenho que seguir em frente, progredindo
e, sempre que me for autorizado, estarei com eles na vida corpórea, auxiliando a todos em seu processo
evolutivo.
– Que bom, Nina! Acredite, muito em breve estes sentimentos mais dolorosos deixarão de te acometer.
– Agradeço muito, irmão Daniel, por tudo. A você e a todos que me recebem com tanto carinho aqui na
Colônia.
– Minha querida, você não precisa agradecer, nem a mim, nem a ninguém. Esta rápida recuperação é
mérito todinho seu, pelo tanto que você se dedicou em suas jornadas terrenas.
Nina sorriu e, em um flash momentâneo, se recordou de alguns momentos de sua vida. Recobrou a
atenção quando irmão Daniel, sorrindo levemente, continuou falando:
– Mas hoje, além de vir fazer essa visitinha para você, vim também com o intuito de te fazer um convite
muito especial.
– Jura? Qual convite, irmão?
– Você se lembra de sua prima Soraya?
– Claro, me lembro sim, com muito carinho.
– Pois então, sua prima também desencarnou recentemente e está, neste momento, nas regiões umbralinas.
Nossos mentores espirituais nos concederam uma permissão para resgatá-la. Após todas as orações e
preces feitas por muitos familiares e amigos, inclusive por seus pais, fomos convocados a partirmos em
uma missão de resgate do espírito de sua prima no Umbral.
– Nossa, que lindo, fico feliz em saber que ela será resgatada do Umbral, um lugar tão feio, tão ruim. Mas
você havia comentado que queria me fazer um convite?
– Isso mesmo. Então, gostaríamos muito que você fosse conosco nessa nobre missão, tão logo você se
recuperasse mais um tanto. Você aceitaria?
– Oi??? Como assim? Eu? Eu, Nina?
Nina respondeu confusa com o convite inesperado, mas também com uma certa dose de alegria pela
honra, o que se denotava no brilho em seu olhar enquanto buscava entender tudo aquilo.
– Isso mesmo, Nina, você. Temos a certeza de que tudo isso será muito importante para a Soraya e para
você.
Sem nem pensar muito, Nina foi enfática e impulsiva.
– Mas claro que aceito, irmão. Agradeço a honra e ficarei feliz em ajudar vocês e minha prima em seu
resgate.
– Que ótimo! Boa notícia para todos. Principalmente para Soraya, que ficará duplamente feliz: com o
resgate e com sua presença. Sua prima era uma menina com um lindo caminho. Mas, infelizmente, não
ouviu os conselhos e ensinamentos de seus pais e amigos, inclusive os seus, sempre tão importantes,
todas as vezes em que tinha oportunidade de estar com ela. Acabou que seu desencarne se deu de forma prematura e violenta.
– Nossa, mas o que houve com ela? Como ela desencarnou?
Nina, muito curiosa, não se conteve em saber mais sobre sua prima.
– Ela foi assassinada e, neste momento, está sendo despertada por espíritos obsessores no Umbral. Mas
não se preocupe. As preces vindas da Terra, juntamente com as energias que estamos enviando daqui da
colônia espiritual, estão protegendo Soraya de agressões mais profundas, além de estarem
proporcionando um estado melhor de consciência, a preparando para o resgate. Por isso as orações
direcionadas pelas pessoas que permanecem no plano material são tão importantes para os recémdesencarnados. Você verá quando estivermos no Umbral. São verdadeiras ondas de um fluxo de luz
intensa que invadem o céu negro umbralino e conseguem reconfortar os espíritos que vagam por lá, tão
necessitados dessas vibrações positivas.
Enquanto Daniel explicava, Nina o olhava com atenção e certa dose de emoção. Atenção por serem
palavras valiosas de um espírito de muita luz, muito evoluído que, para tanto, estudou muito a Doutrina
Espírita e a Divina Lei. E emoção, por sentir fluxos de luz em si própria, que eram fruto das orações
emanadas por seus pais, e que traziam para ela um grande alento, como se fosse um cobertor de lã onde
os fios seriam como sentimentos calorosos do bem que
cobriam sua pele com fraternidade e ternura. pensou que sim, claro, como não concordar com o irmão
Daniel.
– Nossa Daniel, incrível.
Mas, receosa, Nina complementou:
– Mas, desculpe irmão, mas será que devo mesmo ir? É que não sei se estou preparada. Não me sinto
segura. Será que realmente consigo acompanhar essa caravana? Será que devo mesmo acompanhar
vocês? Ainda sinto tão fortemente os laços que me mantém conectada com meu corpo na Terra. Não seria
prudente esperar mais um pouco? Não sei. O que você acha, Daniel?
Daniel, sempre reconfortador e compreensivo, tranquilizou Nina com palavras gentilmente proferidas:
– Fique tranquila, Nina. Acho prudente sim esperarmos um pouco mais para que você esteja prontamente
restabelecida para essa viagem. Façamos o seguinte: ainda temos algum tempo para essa missão se
iniciar. Pense mais um pouco. Não quero influenciá-la...
Como se, com um simples olhar, o irmão Daniel já não fosse capaz de influenciar milhares de pessoas,
pensou Nina com seus botões, deixando inclusive escapar um sorriso, enquanto Daniel prosseguia:
– Acredito que seria muito bom para ela ser resgatada por quem a conhece tão profundamente. Afinal,
vocês conviveram juntas e foram melhores amigas no plano secundário.
Nina concordou com um movimento de cabeça e um sorriso de agradecimento no rosto. Ainda naquele
breve momento, ela
– Ficamos assim combinados então: voltaremos a conversar sobre isso logo mais. Saberemos a hora
certa de partirmos. fique tranquila.
Ajeitando-se na maca, Nina diz:
– Obrigada, Irmão Daniel, por sua compreensão e toda ajuda que tem dedicado a mim e à minha família.
Daniel então afagou carinhosamente as mãos de Nina, transmitindo a ela fluidos de paz e serenidade. Em
questão de segundos, Nina voltaria a dormir o sono da recuperação.
Antes de se retirar, Irmão Daniel ainda se curvou para sussurrar algumas palavras no ouvido de Nina:
– E, olha, um simples olhar meu não tem tanto poder assim como você imagina.
Mesmo já sonolenta, com os olhos fechados, Nina sorriu ao perceber que Daniel tinha escutado seus
pensamentos.

5 DIAS NO UMBRALOnde histórias criam vida. Descubra agora