Chico Xavier Dia 4 - CP 9

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Todos acordaram cedo, sentindo a expectativa de retornarem à Colônia Amor & Caridade. O índio trouxe
novamente o chá para resguardar e refluidificar a todos. Nina, Felipe e Soraya estavam tão alegres com o
amanhecer do dia da partida que demoraram um tanto para perceberem que Daniel não estava entre eles.
Logo que se deram conta, perguntaram ao guardião que estava de plantão pela manhã a respeito do
paradeiro de Daniel. O guardião avisou que Daniel precisou se ausentar por instantes e deixou um
recado: para que todos aguardassem seu retorno no acampamento. E ainda completou que Daniel havia
deixado o acampamento antes mesmo do amanhecer, muito antes da alvorada e do despertar de todos.
Nem mesmo o índio, que costumava levantar antes de todos para preparar o chá, o viu sair.
Durante o repouso de todos, Daniel precisava garantir que ha
| Osmar Barbosa | Cinco Dias no Umbral | 171
via tentado ao limite conseguir o direito de resgatar Felipe. Orou muito, com tal intensidade e de forma
tão incansável, que praticamente esgotou todas suas energias vibratórias. Pediu com todas as suas forças
à Catarina que o auxiliasse na missão que teria pela frente. Quando de fato comprovou que não era a hora
de Felipe, e que ele não poderia voltar com a caravana, Daniel precisou ainda pensar muito em como
conduziria a situação.
Depois de muito orar e pensar, retornou ao acampamento pedindo aos espíritos superiores que lhe
conferissem a serenidade e a sabedoria necessárias para agir com benevolência e justiça. Antes de se
aproximar mais, mesmo ao longe, já se antecipava em ir preparando o grupo fluidicamente para os
momentos difíceis que todos enfrentariam em instantes.
– Nina, preciso falar com você.
– Oi, Daniel, tudo bem? Estávamos ansiosos por sua volta.
Os dois se afastaram do grupo, que se manteve em silêncio e se entreolhando, sem entender o que estava
acontecendo. Daniel estava com o rosto entristecido e Nina logo percebeu que essa sua fisionomia já
dizia muito. Daniel foi direto ao ponto.
– Nina, infelizmente não temos permissão para resgatar Felipe. Orei por horas, pedindo à nossa mentora
para que nos autorizasse a levá-lo conosco mas, infelizmente, não obtivemos essa permissão neste
momento.
– Minha nossa, não posso acreditar nisso. Como assim, irmão Daniel? O Felipe é meu melhor amigo. Ele,
por muitas vezes, me confortou, me transmitiu coragem e determinação para seguir adiante, mesmo com
tantas dificuldades e enfermidades em minha vida. O Felipe nunca fez mal a ninguém. Sempre foi
prestativo e bondoso com todos, na escola, na rua, um amigo inseparável de sua mãe, mesmo ela tendo
abandonado ele. Esse menino não pode ficar aqui. Não é justo que ele passe por isso por mais tempo. Ele
precisa de mim. E eu também preciso dele.
– Eu compreendo sua tristeza Nina. Mas não temos autorização. Sem permissão, não podemos levá-lo.
– Ok, sem problemas, eu entendo. – e quando Daniel já ia concluir a conversa, Nina emendou em outro
sentido:
– Mas então vamos fazer o seguinte: levem Soraya com vocês. Eu vou ficar aqui. Sem Felipe eu não
partirei.
Daniel arregalou os olhos se espantando com a decisão de Nina. Respirou fundo, recobrou a serenidade
para encontrar as melhores palavras para explicar a Nina a situação e as consequências de sua decisão.
– Nina, você não pode ficar aqui, não é uma decisão tão simples, você ainda não está totalmente
recuperada para suportar nem mais um dia no Umbral. Temos prazo para entrar e sair. Não é assim que
funcionam as coisas nos planos superiores. Os mundos espirituais são administrados e dirigidos por
espíritos sábios, espíritos de muita luz. Eles administram tudo por aqui como se fosse uma empresa que
precisa de estrutura, organização, planejamento e disciplina. E, além disso tudo, aqui não é o seu lugar.
Não seja impulsiva e não aja com sentimentos que já não te pertencem.
– Daniel, mas vamos pensar juntos. Se nós chegamos aqui e encontramos o Felipe junto com a Soraya, há
algo que não estamos enxergando. Por que ele estaria justamente com Soraya, a pessoa que viemos
resgatar? Eles sequer se conheciam. Como pode agora não termos permissão para levá-lo? É muito
difícil conseguir entender tudo isso. Não consigo me conformar. É impossível.
– Exatamente estes pontos, entre tantos outros, que argumentei com a nossa mentora. Nem tudo nos é
revelado, Nina. As revelações nos são fornecidas de acordo com o nosso merecimento, nossa evolução.
Espíritos mais evoluídos têm acesso a cada vez mais informação, conforme seguem evoluindo. Espíritos
menos evoluídos, a cada vez menos, se distanciando dos degraus superiores e se aproximando dos níveis
vibracionais que atrairão espíritos ruins por afinidade. Essa é a regra. É evoluindo que conseguimos
consolidar onosso patrimônio espiritual. É assim que nos aproximamos dos espíritos mais superiores,
conquistando ainda mais o entendimento e o merecimento para termos acesso a mais informações, e
também compreendê-las.
– Entendo isso tudo, Irmão Daniel. Entendo, agradeço cada palavra sua, cada ensinamento. E respeito
tudo isso, do fundo do meu coração, que sinto bater tão forte neste momento como se estivesse ainda
encarnada. Só que tenho meu livre arbítrio aqui e onde estiver, não é mesmo? Pois então. Minha decisão
está tomada. Sinto muito, mas quando o coração sussura, toda a razão do mundo pode gritar bem alto que
eu opto por escutar meu coração.
– Nina, sei perfeitamente que você tem a consciência de seus atos. e respeito muito sua inspiração em
seguir seu coração. Você não está errada nisso e nunca estará em fazê-lo, porém, espíritos não devem
andar para trás, ficar no umbral, contra a vontade e a permissão, é andar para trás. Isso pode afastá-la do
Felipe, inclusive. A pena é de acordo com o merecimento assim como a ascensão. As vibrações de seus
pensamentos podem definitivamente afastá-la de Felipe. A condição em que ele está será devidamente
confrontada com o que ele ainda tem a fazer. Reflita com os sentimentos puros do coração.
– Irmão Daniel, preciso pensar. Teria como eu ter algum tempo para pensar mais um pouco. Estou com
uma angústia enorme dentro de mim e preciso me concentrar, me acalmar, decidir definitivamente.
– Claro, Nina. Só não demore muito. Todo e qualquer tempo desperdiçado agora pode se tornar um
problema ainda maior mais a frente. Vou conversar com os outros e prepará-los para a viagem. Reflita em
paz.
Nina se voltou para o vale, agora sozinha. Estava na beira de um precipício montanhoso. Seus cabelos
ruivos e cacheados voavam soltos ao vento. Ela fechou os olhos e viajou. Milhões de informações e imagens surgiram como flashs em sua mente, seu rosto se contraiu em um choro intenso e desesperado.
Nina então decidiu se ajoelhar para uma última prece mais inflamada, implorou a Catarina para que a
escute e permita o resgate do Felipe.
Divina e amada Catarina. Rogo a ti para que permitas que resgatemos o nosso irmão Felipe. Imploro
por sua misericórdia e compreensão. Precisamos ajudar a este pobre espírito que está em situação tão
necessitada e lastimável. Precisamos socorrê-lo e conduzi-lo em direção ao caminho da luz. Divina
mãe, por favor, atenda nossas preces e nos ajude a suportar tamanha angústia em nosso peito.
– Daniel, precisamos ir. Fomos avistados por espíritos perturbadores, eles estão vindo em grande
número. Parecem ter se reunido durante a noite para planejar algum motim.
–Espere índio, já estamos partindo. Só mais alguns instantes.
– Soraya está pronta? Iremos partir em breve.
Daniel se aproximou de Felipe, ergueu suas duas mãos, colocando-as sobre seus ombros, como se
quisesse consolá-lo. Olhou em seus olhos e disse pausadamente, de forma serena mas muito emocionada.
– Felipe, preciso lhe falar e vou direto ao ponto. Infelizmente não temos permissão para levar você, eu
orei muito aos nossos superiores durante muitas horas, desde que chegamos na verdade, mas não fomos
autorizados. Tenha paciência, mantenha a calma, tenho a certeza de que seu momento chegará.
Abatido e surpreso com as palavras de Daniel, Felipe ajoelhou já com muitas lágrimas no rosto. Nina
surgiu ao longe, retornando neste momento ao acampamento, ainda com o rosto inchado, denunciando que
acabara de chorar bastante. Felipe virou-se para ela e curvou seu corpo sobre seus joelhos, mantendo-se
em um silêncio pertubador. Foram alguns poucos segundos mas que pareceram dias. Daniel deu um passo
na direção de Felipe e repousou sua mão direita sobre suas costas, transmitindo a ele fluidos de conforto
e paz. Sheila e Marques observavam com extrema tristeza e também não conseguiram conter as lágrimas.
Felipe então levantou, enxugou um pouco das lágrimas e tentou se recompor minimamente. O índio então
estendeu sua mão ao rapaz com um pedaço de pano marrom nela. Felipe pegou, agradecendo a ele com
um olhar emocionado. O pano parecia ter uma luz branca que o envolvia, reluzindo, como um vapor
iluminado. Felipe se encantou com aquilo, respirou fundo, enxugou mais um tanto de lágrimas e disse
assim:
– Não se preocupem. Eu compreendo. Preciso compreender. Ficarei bem. Já estou há bastante tempo
aqui, quem sabe um dia vocês poderão vir me buscar. Confesso que achei que seria agora que me
libertaria desse mundo de escuridão e sofri-mento. Mas confio muito em todos vocês e espero que um dia
vocês possam vir me buscar. Sonharei dia e noite com o momento em que serei livre e poderei buscar
outros caminhos para minha felicidade. Agora, mais que nunca, me dedicarei às preces para a minha
liber-tação.
Daniel está emocionado com a forma sábia com que Felipe lidou com a situação tão difícil.
– Sim, Felipe, estaremos em oração para que um dia nos seja permitida esta viagem.
Daniel então olhou para o índio e perguntou sobre as sementes. Todos se olharam, ainda exugando as
lágrimas, sem entender que pedido era aquele. Que sementes seriam essas? E por que Daniel falaria
disso agora, justamente naquele momento? Sem nem precisar explicar muito, compreendendo tudo
diretamente do olhar do irmão Daniel, o índio sabia do que se tratava. Prontamente colocou sua mão repleta de marcas de batalhas em uma das pequenas bolsas de tecido cru marrom que trazia presa à
cintura de sua calça branca. Retirou então algo ali de dentro que ninguém conseguia identificar muito bem
ao certo do que se tratava, já que sua mão era, pelo menos, algumas vezes maior do que a própria bolsa.
Só quando ele abriu calmamente os dedos, com a palma da mão virada para Daniel, que todos puderam
constatar do que de fato se tratava: eram pequenas sementes, muito iluminadas. Era como se fossem
pequenas pedras preciosas, muito raras e valiosas, que liberavam pequeninos fluxos de energia em sua
volta que faziam parecer que elas estavam vivas.
O índio então aproximou-se de Daniel, que aguardava sorrindo, com um brilho intenso nos olhos. Daniel
estendeu as duas mãos juntas na direção do índio que repousou, bem calmamente, as sementes dentro das
mãos de Daniel. Tudo com muito cuidado para não deixar nenhuma semente cair em vão. Logo que
tocaram a pele de Daniel, as pequenas sementes vibraram ainda mais, com uma luz ainda mais forte.
Naquele momento, era como se fossem pequenas estrelas cadentes repousadas nas mãos de Daniel.
Aquilo tudo impressionou a todos. Mais do que isso: emocionou profundamente cada um ali presente.
Mesmo aqueles que já estavam há mais tempo no plano espiritual e já tinham visto de tudo um pouco.
Daniel sorriu contemplando a perfeição e beleza intensa daquelas preciosidades espirituais que tinha em
suas mãos. Então estendeu as sementes na direção de Felipe e disse assim:
– Felipe, essas sementes são para você. – todos ficaram surpresos e arregalaram os olhos. Daniel
prosseguiu:
– Nossa mentora me orientou a entregá-las para ti. Você deve escolher um lugar por aqui, que seja
próximo da água, com um terreno úmido, então deve plantá-las com todo seu amor e carinho firmes no
coração.
Felipe, mesmo muito emocionado, interrompeu.
– Daniel, agradeço e me emociono profundamente com sua intenção de me presentear, e até de tentar
melhorar isso aqui. Mas nada nasce aqui nessas terras. Olhe a nossa volta. Todas as plantas estão mortas,
não há um sinal de vida aqui sequer, nenhum princípio
vital.–Felipe, confie. Simplesmente atenda nossa mentora.
Plante estas sementes e todos os dias em um mesmo horário, determinado por você, ajoelhe-se diante do
local em que as plantou e ore com toda sua força. Peça ajuda para que seja permitido a você sair daqui.
Aceite essa recomendação. Plante e ore.
–Sim, irmão Daniel, sem dúvida. Farei isso sim. Exatamente como você me orienta.
– Nina, infelizmente temos que partir.
– Sim, Daniel. Só preciso de alguns segundos a sós com o Felipe.
– Sim, claro. Vamos adiantando os últimos acertos.
Nina tomou Felipe pelas mãos, afastando-se do grupo, e o conduziu para perto de uma árvore com os
galhos todos retorcidos e entrelaçados, como se tivessem em algum momento suplicado por um último
suspiro de vida. Nina o abraçou fortemente e, durante alguns minutos, ficaram calados, em um silêncio
cúmplice, com os corpos colados, num longo e caloroso abraço. Pareciam levitar. Queriam sentir a
sensação de que ainda estavam encarnados na Terra e que tudo aquilo não passava de um pesadelo bem
real. Quando caíram em si e perceberam que, de fato, estavam no Umbral, Nina se afastou um pouco, pegou as duas mãos de Felipe, olhou bem no fundo de seus olhos e disse assim:
– Felipe, acabei de chegar da Terra e me trouxeram para cá para ajudar no resgate de minha prima,
Soraya. Em um primeiro momento, resisti. Não me sentia forte o suficiente e muito menos preparada para
tal missão. Mas algo mudou e acordei em um dia disposta e acreditando sensivelmente que tinha que vir.
Hoje entendo porque isso aconteceu, não esperava te encontrar aqui, jamais poderia imaginar. Mas hoje
compreendo que eu tinha que ter vindo justamente para isso: para te encontrar. Estou com o coração em
frangalhos e com a cabeça muito confusa. Não consigo entender ainda muito bem porque motivo não
podemos levar você com a gente. Mas parto compreendendo a prova à qual estamos sendo submetidos.
Precisamos ser fortes e acreditar na lógica divina. Quero deixar claro que farei o possível e o impossível
para voltar aqui e te buscar. Vou interceder a nossa mentora, para o quanto antes eu possa vir te buscar.
Nina teve que puxar o ar bem fu ndo para não desabar em choro. Uma lágrima escapuliu. A voz embargou
de vez. Olhou para cima como se quisesse ordenar às lágrimas que elas não tinham permissão para
surgirem agora, como se dissesse “voltem já para esses olhos e esperem pelo menos eu terminar de falar
para saírem daí”. Quando conseguiu o ar que precisava para prosseguir, assim o fez:
– Sou profundamente grata a você por tudo que você fez em nossa infância e juventude. Saiba que, se
amei realmente alguém enquanto vivi na Terra, esse alguém foi você. E é em nome desse amor que te
prometo que vou voltar, pois não é prudente desrespeitar uma orientação de Catarina e dos planos
superiores.
– Fique tranquila. Só de ouvir essas suas palavras já me dou por satisfeito. Ficarei abraçado com elas,
cada uma delas. Serão uma forma de consolo ao meu sofrimento. Guardarei cada palavra em meu peito e,
sempre que me bater alguma dor, algum sofrimento, recorrerei a elas com toda a avidez, e suas palavras
me confortarão a alma. Saber que você me amou me faz acreditar que o meu amor é profundo e poderoso.
Pode seguir em paz. A caravana deve partir agora. Eu já me acostumei a viver aqui. Parece que alguma
coisa ainda falta acontecer para eu poder me livrar disso tudo. Seguirei o conselho de Daniel e a
orientação de Catarina. Plantarei as sementes que ele me deu. Todos os dias, às cinco horas da tarde,
estarei aqui, de joelhos, fazendo a prece mais sincera e calorosa do mundo.
Já enxugando algumas lágrimas, Nina tentou complementar:
– Isso mesmo. Eu vou fazer o mesmo. Todos os dias, às cinco horas, estarei lá na Colônia orando
também, em sintonia com você.
Os dois se beijaram de forma singela e carinhosa. E deram o último abraço antes da despedida final.
Quando retornaram ao acampamento, todos já estavam montando em seus cavalos e começando a partir
lentamente. Felipe ficou um pouco mais distante, em pé em cima de um monte um pouco mais alto, de
onde poderia acenar e ver a caravana partir. Desejava mentalmente uma boa viagem de retorno a todos
eles. Nina, com os olhos umedecidos de lágrimas, de cabeça baixa, preferia não ver a cena.
– Tenha calma Nina, vamos orar muito para que nos seja permitido o resgate de Felipe.
– Obrigada, Daniel e perdoe-me pelo meu momento de fraqueza e questionamento.
– Sem problemas querida, faz parte da nossa trajetória.
Em pouco tempo, os cavalos já estavam galopando em grande velocidade em uma estrada de terra negra,
levantando uma fumaça densa e escura. Procuravam viajar o mais rápido possível. Felipe sentou-se no
monte onde estava em pé. Respirou fundo e foi envolvido em uma enorme tristeza. Seus pensamentos
viajaram no tempo relembrando os momentos felizes que viveu ao lado de Nina. Recordou do lanche gostoso que sempre fazia com ela na escola, nos dias de piquenique. O sorriso daquela menininha ruiva
não saía de sua mente, sempre tão frágil, devido a sua doença. Nina era uma menina meiga e carinhosa
com todos. Felipe sempre achou que sua pele, tão branquinha, parecia transmitir uma luz de dentro dela.
Hoje ele via que não era uma impressão. Nina realmente era e sempre fora um espírito intensamente
iluminado. Sempre linda como nenhuma outra menina da escola. Uma beleza não apenas física mas
espiritual. Amante da literatura e de línguas, Nina sempre foi um exemplo para todos. Seu amor com os
animais era o que a destacava ainda mais das outras pessoas. Não compreendia como as pessoas podiam
ter a inferioridade de maltratar qualquer bicho que fosse ou até se alimentar com eles. Nina os via como
seres iguais a nós.
Felipe recobrou os sentidos e resolveu procurar um lugar para plantar as sementes entregues por Daniel.
Precisava começar imediatamente a implorar por sua salvação. Colocou-se então a caminhar para terras
mais acima, mais próximas da montanha em que estava o caminho em que Nina chegou e que partiu em
caravana.
Caminhou durante algum tempo e encontrou uma campineira baixa. Bem próximo havia um pequeno
córrego. Felipe ajoelhou-se para plantar as sementes. Repousou com cuidado elas ao seu lado e enfiou as
próprias mãos no lodo fétido e lamacento do chão do Umbral. Ao escavar a primeira leva de lodo, o
cheiro ficou ainda mais forte. Felipe não fraquejou. Continuou mais uma, duas, três vezes, até chegar a
uma boa profundidade para o plantio. Pegou então as sementes com cuidado, pois suas mãos estavam bem
sujas com a lama preta. A energia em volta delas continuava reluzente. Aquela luz dava a Felipe a certeza
profunda que estava fazendo algo muito correto e bonito. Repousou uma a uma no fundo do buraco e
então recolocou sobre elas o lodo retirado.
Já ia se levantando e saindo quando se recordou da recomendação de Daniel. Voltou-se novamente ao
local e orou pedindo a Deus que lhe enviasse espíritos de luz em resgate. Juntou as duas mãos em oração,
mesmo que ainda lamacentas e pingando de lodo. Lágrimas correram de seus olhos e, uma a uma,
regavam o local onde havia plantado as sementes. Aquilo consumiu Felipe que ali mesmo resolveu deitar
para descansar. Adormeceu.
Sem saber, ou mesmo se dar conta, Felipe escolheu um lugar transitório no Umbral. A região em que
Soraya se encontrava era o lugar mais próximo de resgate dos iluminados. Plantando as sementes naquele
local, junto com suas orações e sua fé profunda, Felipe estava mais próximo de elevar-se e, desta forma,
facilitava em muito o seu socorro.
...
A mãe de Felipe seguia sua jornada na Terra, alimentando seu vício por drogas. Recentemente havia sido
resgatada por uma instituição que cuidava de dependentes químicos em situação de risco iminente. Essa
instituição recolhia pessoas na rua que estavam muito necessitadas e profundamente entregues ao vício.
Em seguida, conseguiam promover a internação em clínicas de tratamento intensivo. As clínicas
sobreviviam sustentadas pelas doações de pessoas de bem. Após seis meses de tratamento em uma
dessas clínicas, Yara fugiu e retornou ao território em que se sentia em casa: os becos e ruelas do
submundo obscuro da cidade.
Ao se deparar com Yara em um ponto de compra de drogas, Joana parecia não acreditar.
– Yara, meu Deus, o que você está fazendo aí, mulher?
– Estou comprando pão pro café da manhã, sua tonta!
– Mas, meu Deus, você não tem jeito mesmo, Yara. Não toma vergonha nessa cara. Uma mulher velha e acabada, deveria ter vergonha de sua vida. Você se recorda como fez mal a todos e a si mesma?
Joana estava tentando de tudo para conseguir balançar Yara, tentando fazê-la constatar o quanto a sua
vida estava entregue. Joana foi mais fundo. Yara começou a andar para sair daquela situação e fugir da
bronca que estava tomando em público.
– Foi por sua causa que seu filho foi assassinado, Yara. Você sabe disso, não sabe? Não era melhor que
você tivesse sido assassinada no lugar dele? Hein? Olha para mim! Não adianta apertar o passo e fugir
da verdade. O pobre coitado sempre foi um menino bom e fez de tudo para tirar você dessa vida. E de
que adiantou? Olha você aí, como se nada tivesse acontecido, vivendo do mesmo jeito. E pior: com os
mesmos malandros da laia dos que executaram seu filho.
– Por que você não toma conta da sua vida e deixa a minha em paz, hein?
– Deus, tenha piedade dessa criatura.
Joana então se afastou, vendo que nada mais iria fazer Yara recolocar sua vida no prumo. Afinal, ela
nunca teve responsabilidade para nada. Abandonada muito cedo pela mãe, repetiu com seu filho tudo
aquilo que tinha acontecido com ela própria em sua infância. Estava fraca, muito magra e debilitada.
Andava com dificuldades e
vivia como uma mendiga viciada. Dava tristeza de ver.
– Nina, obrigada por tudo o que você fez por mim.
Naquela mesma tarde, Yara sofreria um infarto fulminante. Após alguns dias, seu corpo teria sido achado
por populares já em estado de putrefação, dentro de uma casa abandonada. O consumo excessivo de
drogas havia destruído todo o seu organismo. Foi enterrada como indigente sem a presença de nenhum
parente ou amigos. Yara deixava a Terra, sendo assistida por um grupo de pessoas que, por piedade,
acompanharam seu desfecho dramático.
...
Nina conduziu Soraya até o pavilhão três da Colônia Amor & Caridade. Chegando lá, procuraram pelo
dr. Marcos, que recebeu as duas primas com grande receptividade e carinho. Soraya ainda es-tava muito
extasiada com tudo a sua volta. Não conseguia acreditar em como sua situação havia melhorado. Estava
agora em um lugar de plena beleza e harmonia. Todos se amavam como irmãos e tudo era muito
organizado e correto. Havia paz e luz intensa para todo lado.
Dr. Marcos pediu para Soraya deitar em uma das macas da enfermaria. Ela logo entraria em um sono
recuperador profundo.
– Venha Soraya, deite-se e descanse. Você ainda precisa se reenergizar para se recuperar desse período
que passou no umbral.
Já deitada, com os olhos piscando lentamente, já sentindo os efeitos da energia fluídica das mãos do
doutor, Soraya ainda encontrou força para dizer:
Nina estava em pé, ao lado da maca, passou sua mão nos cabelos de Soraya, ajudando no passe
magnético e também fazendo um carinho na prima.
– Não se preocupe em agradecer, minha querida. Nada acontece por acaso nessa vida, em nenhuma delas.
Agora procure dormir, você precisa desse sono para se refazer, acredite.
– Obrigada, Nina.
– Nina, passado o período equivalente a dois dias, pode vir buscar Soraya. Ela estará recuperada.
– Que ótimo. Você saberia me dizer para onde ela será levada para começar a ajudar na colônia?
– Até onde sei, assim que ela estiver prontamente recuperada, você deverá levá-la ao encontro do Irmão
Daniel. Sua missão com Soraya ainda não terminou.
– Entendi, tá bom. Muito obrigada, dr. Marcos. Então voltarei daqui a dois dias para buscá-la.
Nina retorna ao setor infantil para cuidar das crianças que a esperavam saudosas e muito ansiosas.
Impossível negar que Nina ficou bem pensativa sobre o que o dr. Marcos havia falado. O que será que
estaria guardado para as duas? Que missão seria essa? Ficou quase tão ansiosa quanto as crianças que
gritavam bem alto e pulavam de um lado ao outro quando viram Nina no vidro da enfermaria infantil.
Nina sorriu e na mesma hora esqueceu de todas as
preocupações, entregando-se àquela alegria contagiante e inocente. que ela consiga enviar uma mensagem
para seus pais.
Mais tarde, recebeu uma visita ilustre.
– Nina, podemos dar uma caminhada pela Colônia? Preciso falar com você.
– Oi , Irmão Daniel, claro. Vou só pedir para Juliana ficar aqui no meu lugar e vamos.
Nina e Daniel caminhavam em ritmo de passeio por uma trilha muito bonita. Nina tinha pequenos enfeites
de flores para prender os cabelos.
–Você deixou Soraya aos cuidados do dr. Marcos?
– Sim, Daniel, ela já está dormindo o sono da recuperação.
Como geralmente agia desta forma, Daniel foi direto ao ponto e, de forma assertiva, disse assim:
– Assim que ela estiver pronta, Nina, você fará uma nova viagem com ela.
– Onde iremos?
– Você levará Soraya na Colônia Nosso Lar.
– Nossa, muito legal. Mas para quê? Não me diga que ela vai ficar lá?
–Até onde eu sei, não é para ela ficar lá. Na verdade, a família de Soraya tem orado muito pedindo
notícias dela. Por isso, nos foi orientado que temos que levá-la à Colônia Nosso Lar para
– Hum, entendi. Muito legal. Me orgulha tal convite, Daniel, obrigada mais uma vez pela honra e
confiança. Inclusive, me ocorreu algo: será que eu poderia aproveitar para tentar me comunicar com
minha mãe e meus irmãos? Seria tão bom...
– Sim, Nina, claro. Aproveite a oportunidade e comunique-se com eles. Mande notícias suas. Eles
ficarão muito felizes.
– Obrigada, Daniel, farei isso.
– Mas não vim aqui apenas para fazer esse convite a você. Venho percebendo que a irmã tem andado
muito triste, pelos cantos da colônia. O que houve?
– Você é sempre tão perceptivo, né? Nem adianta tentar disfarçar. É por causa de Felipe, Daniel. Tenho orado tanto, todos os dias, pedindo a nossa mentora que nos permita resgatá-lo. Não tiro ele da cabeça
um segundo sequer. Mas minhas preces parecem ser
em vão.
– Minha querida Nina, nenhuma prece feita pelo coração é em vão. Todas as preces são ouvidas por
nossos superiores que as registram e buscam respondê-las em tempo hábil.
– Entendo, mas é tudo tão doloroso. Não consigo sequer imaginar que o Felipe continua sofrendo no
Umbral.
– Ele ainda não foi resgatado por motivos que ainda não temos conhecimento. Também tenho orado muito
pelo Felipe, todos os dias. Peço a nossa mentora que nos permita tirá-lo de lá.
– Sei, irmão Daniel, Catarina sempre me foi fiel. Ainda meninas, vivemos juntas experiências em que eu
não tinha dúvidas de sua bondade e lealdade. Só não consigo entender o porquê da demora para resgatar
um menino tão do bem quanto Felipe. Respeito profundamente, mas confesso não entender.
– Alegre-se, Nina, pois tenho certeza de que ela ouve suas preces e está buscando a resposta e a ajuda
que nós tanto desejamos e que você precisa. Assim que você voltar de Nosso Lar, tenho algumas tarefas
para você em uma casa espírita.
– Que bom, fico muito feliz em ser útil.
E, como sempre muito ansiosa, Nina não se conteve.
– Você já sabe o que é? O que exatamente quer que eu faça?
– Preciso que você acompanhe o irmão Rodrigo nas jornadas dele na Terra. Muitos pacientes o tem
procurado com câncer e é preciso o reforço de mentores em uma das casas espíritas que ele
supervisiona. Há casos de crianças que precisam de seu suporte para o atendimento.
– Prontamente, Daniel. Para mim será um prazer ajudar.
– Vou solicitar depois que você procure a doutora Patrícia, na enfermaria de número quatro. Você vai
fazer os treinamentos necessários para o trabalho na Terra.
– Farei sim, com grande alegria.
– Isso lhe fará um bem enorme, inclusive.
– Obrigada, Daniel, pela oportunidade de servir e evoluir.
– Então tá ótimo. Adorei nosso passeio e nosso papo. Tenho certeza que você ajudará a todos que, em
nome de nossa Mentora, lhe pedirem ajuda.
Nina se sentiu muito melhor e mais feliz depois da conversa reconfortante com Daniel. Afinal, o tão
desejado trabalho na Terra foi concedido a ela. Nina sabe que essa nova tarefa poderá auxiliar, e muito,
na sua evolução. Sabe que o trabalho nas casas espíritas eleva mais rapidamente os espíritos que mais se
esforçam.
...
Na tarde do segundo dia, Nina recebeu um recado de Lucas.
– Nina, a menina Soraya despertou do sono.
– Que ótimo! Muito obrigada, Lucas. Vou procurar dr. Marcos e conversar a respeito do estado dela.
Nina foi então correndo na enfermaria e se surpreendeu ao chegar lá. Soraya já estava de pé, com um
esfregão na mão, ajudando na limpeza do salão da enfermaria.
– Olha só, vejo que já esta plenamente recuperada, sua danadinha.
– Sim, sim, sim! E isso aqui é o mínimo do mínimo do mínimo que posso fazer para tentar retribuir um
pouquinho do tanto que todos vocês fizeram por mim. Eu estou me sentindo ótima.
– Que ótimo. Então me passa esse balde pra cá porque eu vou ajudar você. Depois temos outra tarefa
também muito importante para realizarmos juntas.
Ao terminarem o serviço, antes de saírem da enfermaria, Nina pede para Soraya aguardá-la na porta do
lado de fora da enfermaria. Não disse à Soraya, mas queria conversar reservadamente com o dr. Marcos.
– Olá, dr. Marcos, como vai?
– Muito bem, Nina, e você? Vi como vocês estavam se divertindo em nos ajudar a manter a enfermaria
tinindo. Muito obrigado.
– Que nada, acima de tudo, ainda foi divertido. Então, doutor, preciso saber se Soraya está pronta para
sair da colônia. Daniel me disse que preciso levá-la em Nosso Lar.
– Olha, que interessante, que instigante. Mas, sim, claro, Soraya já está mais do que preparada para
acompanhá-la.
–Que ótima notícia! Obrigada, dr. Marcos.
As duas caminhavam sorridentes pela colônia, com uma alegria de criança, que a todos contagiava pelo
caminho. Pareciam de fato se conhecer há séculos. Chegando ao gabinete do irmão Daniel, Nina bateu
duas vezes na porta e entrou dizendo.
– Irmão Daniel, com sua licença.
– Ora, ora, não é que vejo que a senhorita Soraya já está plenamente recuperada. Como você está limpa,
espiritualmente impecável, impressionante. Meus parabéns.
–Sim, sim, irmão Daniel, estou me sentindo ótima.
– Que bom, irmã. O tratamento com passes magnéticos, água fluidificada e o sono reenergizante é
incrivelmente poderoso. Podese ver que todas as impurezas de seu espírito foram completamente
eliminadas. Que ótimo trabalho da equipe do dr. Marcos.
– Irmão, sobre a nossa visita à Colônia Nosso Lar, estamos ansiosas demais. Já contei para a Soraya no
caminho para cá e ela ficou extasiada, né prima? E o dr. Marcos me confirmou que Soraya já está pronta
para a viagem.
–Sim, Nina, que ótimo. Façamos o seguinte: preparem-se pois pedirei ao Marques para acompanhá-las
nesta empreitada.
Daniel manda um sinal a Marques para que ele o encontre imediatamente em sua sala.
– Irmão Marques, você me faria um enorme favor? Levaria as irmãs Nina e Soraya à colônia Nosso Lar
para que elas se comuniquem com seus familiares?
– Sim, irmão Daniel. Fico lisonjeado com a missão e agradeço de coração.
Saíram do gabinete de Daniel e caminharam na direção da praça central. Lá chegando, os três avistaram
uma linda carruagem branca cintilante, com lindos cavalos brancos como a nuvem. Ela se aproximava do
portal de entrada do galpão central da colônia. Nina, Soraya e Marques embarcaram.
– Soraya, estou te sentindo meio pra baixo, justo agora. Por que está assim? O que houve?
– Sinto muitas saudades dos meus pais. Gostaria muito de poder abraçá-los.
– Não fique assim, irmã. Vamos falar com o irmão Daniel e quem sabe ele nos autoriza, hein? Não é uma
boa ideia?
– Obrigada, Nina.
– Fique tranquila. Todos da sua família estão bem, tocando a vida pra frente. Sua mãe e seu pai estão
convertidos à Doutrina dos Espíritos e isso tem ajudado bastante, a eles e a você. Estão conformados
com sua ausência e oram sempre por ti, compreendendo tudo.
– Muito bom ouvir isso tudo, sempre. O Dr. Marcos havia me dito que as preces dos meus pais ajudaram
muito na minha recuperação.
...
A carruagem adentrou os portões da Colônia Nosso Lar. Nina e Soraya ficaram fascinadas com a beleza
do lugar. Jardins nunca vistos na Terra, uma linda música clássica, espíritos elevados passando a todo
momento por elas e cumprimentando a todos, dando boas-vindas. Os três foram recebidos pela irmã
Lurdes, que dirige o setor de psicografias que são enviadas para a Terra, por intermédio das casas
espíritas. Lurdes fez um rápido passeio com o grupo pelo local e explicou todos os detalhes sobre as
formas de comunicação entre espíritos desencarnados e encarnados. Chegado o momento em que elas
deveriam escrever suas mensagens, Lurdes explicou que o ideal é que escrevessem poucas linhas, pois os
familiares precisavam de notícias objetivas a respeito do estado em que elas se encontravam. Mensagens
grandes acabavam virando história e esse não seria o objetivo das mensagens enviadas à Terra.
Nina e Soraya agradeceram muito a grande oportunidade de se comunicarem com seus familiares, tendo a
oportunidade de tentarem tranquilizá-los. Soraya estava bastante preocupada com a forma como ocorreu
seu desencarne e imaginou que seus pais estivessem sofrendo muito, sem compreender. Nina começou
então a escrever sua mensagem primeiro.
Querida mãezinha, querido papai e irmãos. Permitiram que eu escrevesse estas linhas para
tranquilizá-los a respeito do meu estado espiritual. Estou bem. E feliz. Fui muito bem recebida e sou
útil a todos. Cuido de crianças e isso me deixa imensamente feliz. Mãezinha querida, o tempo em que
estivemos juntas foi necessário para a minha evolução e aprendizado ao lado de todos vocês. O amor
que carrego em meu coração, agora plenamente recuperado, é eterno. O que muito me conforta são os
melhores momentos em que estivemos juntos. Saiba que nunca me esquecerei de todos vocês. Com
amor, Nina.
– Agora é sua vez, Soraya.
– Obrigada, Marques.
Papai, escrevo esta carta para dizer a você que suas ausências em minha criação de forma nenhuma
me fizeram diferente, porque o amor que você me dava nos fins de semana foram suficientes para
formar o amor que tenho em meu coração. Minha querida mãe, hoje sei que os conselhos que você me
dava eram só para me ajudar e me guiar. Deveria ter te escutado e não ter me perdido em amizades
falsas. Minha vaidade me fez muito mal. Sei que não fui uma boa filha mas te amo e é isso que
importa. Agradeço de coração todas as orações que você e todos aí tem feito por mim. Isso me ajudou
muito. Agora estou com Nina aqui, minha prima, que me acolheu e tem me orientado nessa nova
tarefa. Obrigada do fundo do coração pelas suas preces. Te amo, Soraya.

5 DIAS NO UMBRALOnde histórias criam vida. Descubra agora