Colheita

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Naquela noite estávamos os dois bem preocupados. A Colheita seria no dia seguinte e nenhum e nós tínhamos ideia o que podia acontecer e eu temia não vê-lo novamente, qualquer que fosse o resultado. Recostando-me no sofá pude ver que ele não ainda dormia apesar de já estar deitado há horas, então me aproximei de sua cama.

-Hey, você está bem? – Ele não respondeu, continuou deitado encarando o teto. Segurei sua mão e olhei em seus olhos. Olhos verdes como a relva que recobre as colinas no verão. Então eu dei um beijo em sua testa.

-Não se preocupe, vai dar tudo certo. Não importa o que aconteça, eu te amo. Nunca se esqueça disso. 

 Nesse momento ele me encarou e pude ver uma lágrima escorrendo de seu olho direito, mas nada disse. Apenas se levantou e vestiu o casaco que pendia sobre o gancho atrás da porta antes de sair. Um vento gelado entrou pela janela entreaberta e percorreu a sala numa espiral gélida.

Eu sabia que algo estava prestes a acontecer, mas não tinha ideia do que seria. A escuridão da noite parecia invadir-me e preencher todos os espaços vazios do meu corpo e da minha mente. Queria fugir dali e jamais retornar. Um peso enorme instalou-se sobre meus ombros e comprimia meu coração como que uma mão esquelética que tentava perfura-lo.

Deitei-me sob as cobertas ainda quentes e senti o cheiro dele impregnado no travesseiro. Isso me levou a lugares remotos em minhas lembranças e trouxe à tona sentimentos que pareciam ter ficado para trás. A rotina tinha usurpado minha alma em favor de uma essência puramente instintiva e fria. Meus ideais, minhas lutas, onde estavam aquelas convicções que outrora foram minha força motriz?

Percebi ali, que desde que estávamos juntos, eu havia renunciado a muitas coisas em favor desse amor. Não tinha mais família, não tinha mais ideais próprios, sempre vivendo em função de uma causa à qual tinha aderido sem entender bem o porquê.

Que tipo de vida era essa? O que eu havia ganhado com tudo isso?

Amor...

Nessa hora, todos os meus pensamentos anteriores caíram por terra. Eu o amava e ele me amava. Os sentimentos mútuos que sentíamos fortaleciam-me ao ponto de, literalmente, eu quase não precisar mais comer.

Isso me bastava, isso era o suficiente. Um largo sorriso preencheu meu rosto e uma voz interior me disse que era hora de levantar dali e dizer isso pessoalmente a ele. E assim o fiz, chegando à porta, ouvi o barulho de um molho de chaves. Era ele, já havia retornado do que quer que tenha ido fazer. Já ia recebê-lo com um abraço e um beijo quando me surpreendi com um estampido e um impacto em meu abdômen. Percebi o que acontecia quando levei a mão à região do estômago e ela voltou charca em sangue. Olhei para frente e o vi aos prantos murmurando "me perdoe" enquanto descarregava a pistola em minha direção. O último tiro atingiu meu coração em cheio, mas ainda tive tempo de sussurrar um último "eu te amo" antes de cair inerte no chão.

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