Capítulo 3

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Nua, abraçada a um estranho, dentro de seu carro no meio da noite. Quando esse pensamento me atinge eu percebo o quanto as coisas estão estranhas e paro de abraçar o homem, voltando a me encolher no banco enrolada em sua blusa. Meu ombro sangra. Há arranhões pelo meu corpo todo. Tudo dói. Tento não pensar no que aconteceu. Mas as dores, principalmente em minha vagina, fazem isso se tornar impossível! Sempre vemos nos jornais e nos hospitais esse tipo de caso. Mas a gente nunca acha que isso vai acontecer conosco. Até que um dia acontece. Eu fui estuprada. Estuprada. Essa palavra ecoa em minha mente. Ainda sinto o cheiro daqueles homens mesmo que o perfume deste estranho ao meu lado faça o cheiro se dissipar um pouco. Minha consciência vagou para longe enquanto tudo acontecia, é como se eu estivesse em transe, e eu só sei que aconteceu devido a dor lancinante e ao sangue quente que eu sinto escorrer por entre minhas pernas. O homem ao meu lado recomeça a dirigir. Apesar dele ter apagado a luz, alguns postes acabam por iluminar seu rosto enquanto ele acelera pelas ruas desertas. Minha ânsia oscila e eu temo vomitar no carro luxuoso dele. Percebo aliás que tudo é extremamente luxuoso. Desde a jaqueta que me cobre, até suas roupas e seu carro. Mas esses pensamentos logo se esvaem da minha mente. A dor no meu corpo é imensa. E de repente meu pensamento volta para o que acabou de acontecer e eu sinto o estupor que antes me distraia dando espaço á realidade. Estremeço. A respiração começa a ficar mais difícil. Tento engolir minhas lagrimas em vão. Não consigo parar de pensar no que aconteceu comigo. Realmente aconteceu. Oh Meu Deus. Não consigo mais respirar.... Sim, aconteceu. Sou tomada pelo desespero. Respirar se torna impossível. Com a visão já turva olho fixamente para esse homem ao meu lado, que me salvou, me impediu de ser morta, mas de certa forma morrer seria melhor do que conviver com isto. Olho fixamente para ele tentando não desmaiar. Aperto meus braços ao redor do meu corpo que dói por inteiro. Mas a dor me distrai dos pensamentos ruins. Os rostos daqueles homens ficam povoando meus pensamentos. Fixo ainda mais meus olhos e minha mente no estranho ao meu lado. Ele parece totalmente perdido. Tão perdido quanto eu. Ainda tremendo tanto quanto eu. E aos poucos tudo vai escurecendo. Me sinto sufocada.

- Você vai ficar bem – ele diz, mas parece estar longe demais de mim.

Quero gritar. Quero pedir ajuda a ele, mas não tenho mais forças. Não luto mais, deixo a escuridão vir à tona.

Quando acordo, estou num ambiente familiar. Estou no hospital onde tenho passado a maior parte dos meus dias trabalhando incessantemente. Estou com uma mascara de oxigênio. A cabeça latejando. Abrir os olhos requer um enorme esforço. Permanecer com eles aberto se torna ainda mais difícil. Vejo o homem que me salvou sentado ao meu lado. Ele está com as mãos na cabeça. Mãos grandes, porém pálidas. Tento chamá-lo em vão. Adormeço novamente.

Não sei ao certo por quanto tempo permaneço apagada. Ouço vozes às vezes, mas não sei distinguir o que falam. E quando finalmente consigo forças para manter meus olhos abertos, é Penny que encontro ao meu lado. Nos conhecemos aqui no hospital e desde então nos tornamos bem amigas. Só não somos mais próximas porque nossa situação não permite. Ela é medica, esta se formando e eu.... Bem, eu sou apenas uma auxiliar de enfermagem. Quando Penny vê que estou olhando para ela, seus olho se enchem de lagrimas e ela se debruça sobre mim, já chorando.

- Eu sinto muito pelo que aconteceu, Cassie. Eu sinto muito – ela murmura sem parar.

Começo a chorar também. Um choro silencioso, mas as lagrimas escorrem sem parar. Fico ali sentindo o abraço de minha melhor amiga, tentando ao menos um pouco esquecer o que aconteceu comigo.

Passo os dois dias seguinte já mais acordada. Tiram o oxigênio, me deixando respirar sozinha. E aquilo que me impedia de falar, agora que não esta mais presente não faz tanta diferença assim. Pois eu permaneço calada. Tenho que tomar dezenas de remédios. Contra HIV, Hepatite e outras doenças sexualmente transmissíveis. São inúmeros remédios que me fazem vomitar. Como se já não bastasse a ânsia que me acomete o tempo todo por pensar no que aconteceu. Penso muito também naquele estranho dos meus sonhos que me salvou. Andrei, o enfermeiro que me atendeu quando cheguei disse que o homem se identificou apenas como John. E antes que pudesse dar seus dados na recepção e seu depoimento para a polícia ele havia desaparecido. Não que eu tivesse perguntado algo. Mas Andrei imaginou que eu quisesse saber. John. É tudo que sei sobre meu salvador. A polícia veio aqui querendo meu depoimento, mas parece que falar se tornou algo que eu desaprendi. Duas psicólogas também estiveram aqui querendo conversar, devido ao que aconteceu comigo. Porém eu simplesmente não consigo. Falar, comer. Permaneço deitada fitando o teto branco do hospital. Quando fecho os olhos tentando dormir escuto os funcionários murmurando sobre mim. "Coitadinha", "pobrezinha".... "Mas quem mandou andar sozinha por aí" e, "porque ela estava naquela região tão tarde da noite, ela não sabe que é perigoso?". Essas são as únicas horas em que tenho vontade de falar. De gritar. Porra, ninguém sabe o que aconteceu. Porque todo mundo se acha no direito de me julgar como se eu tivesse outra opção? Eu fui humilhada por não ter uma moeda sequer pra pegar um ônibus, moro na droga de uma região perigosa porque é o único lugar onde consigo pagar um aluguel e eu fui estuprada. Já aconteceram coisas suficientes comigo, essas pessoas não podiam apenas calar a boca?

Quando eu ganho alta, me sinto aliviada por não ter que encarar nem escutar mais ninguém. Saio do hospital com uma roupa emprestada por Penny, uma sacola cheia de remédios e sem nenhuma vontade de viver. Penny me leva de carro até minha casa. Como se lesse a minha mente ela da a volta na cidade só para não passar no lugar onde tudo aconteceu.

- Cassie, você sabe que comigo você pode falar – ela diz após os longos minutos de silêncio.

Eu apenas a olho e assinto.

- Você precisa ir na delegacia. Acharam três homens mortos próximo ao suposto local, onde aconteceu... – ela para de falar hesitante. – Você tem que tentar reconhecê-los.

Estremeço só de pensar em olhar para fotos daqueles homens. Seriam eles, mesmo? John. O misterioso homem com quem eu sonhei tantas vezes, que me salvou de ser encontrada morta em uma vala qualquer, desapareceu. Eu queria tanto vê-lo novamente. Mas sei que mesmo que tivesse a chance jamais conseguiria encará-lo. Não depois de tudo que ele presenciou.

Mal percebo quando chegamos em casa. Eu desço do carro rapidamente e vou direto para minha cama. Me enrolo em meu ededrom, e viro de frente para a parede. Sinto Penny sentando ao meu lado. Ela coloca a mão em meu braço. Mas eu não me viro para encará-la. Passam-se vários minutos. Talvez ela pense que eu adormeci. Pois ela começa a chorar baixinho.

- Eu sinto muito – ela sussurra repetidas vezes, depois se levanta e vai embora. Quando escuto a porta da cozinha se fecha, começo a chorar também.

Eu sei que nunca mais serei a mesma. Porque isso tinha de acontecer? Como eu irei conseguir viver daqui pra frente?

Levanto e pego a sacola de remédios. Tateio em busca de algo que me faça dormir. Tomo um comprimido. Dois. Três. Quero dormir instantaneamente. Quatro. Mas acordar não me parece uma coisa boa. Tomo todos. Me encolho de volta em minha cama, e sinto a escuridão me abraçando. Ainda tenho flashs em minha mente do que aconteceu naquela noite. Ainda sinto o cheiro daqueles vermes que acabaram com a minha vida. Sim, eu ainda estou viva. Porém morta por dentro. De repente, uma lembrança de John vem a minha mente. Sequer sei se eu nome é este, mas é tudo que eu sei sobre ele. Lembro dele me olhando, com lágrimas nos olhos e falando sem parar coisas que eu sequer prestei atenção. E então eu o abracei, com aquela música tocando ao fundo. Consigo até sentir seus braços ao meu redor. Essa simples lembrança faz com que eu não queira morrer. Faz com que meu maior desejo seja que eu não tenha tomado remédios demais. Quero me agarrar a esta lembrança porém não consigo. A escuridão vence. Escuto minha própria voz, chamando o nome daquele estranho. Gritando seu nome na verdade. Depois de dias sem falar minha voz parece estranha, mas eu sei que é minha. Essa é a ultima coisa que escuto. E dessa vez, ninguém ira me salvar.


Eu, para você (EM CONSTRUÇÃO)Onde histórias criam vida. Descubra agora