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Atenção para o Top de três frases mais proferidas no Teatro Máscaras em noite de estreia:

"Quebre a perna!"

"Meu cabelo está bom assim?"

"Cadê o Perry Ricardo?"

Seja falta de sorte, ironia do destino, ou a explicação que quiserem atribuir, certos azares acabaram se tornando rotina nas nossas noites de estreia. Parece brincadeira, mas alguém sempre fica rouco ou perde a voz por qualquer motivo; alguém traz ou é seguido por algum parente ou ficante mala sem alça, que parece não entender que tudo o que acontece no palco de um teatro é encenação – como a namorada sequelada que já mencionei, que invadiu o palco para bater no ator que estava abraçado com um travesti, e a avó biruta de uma atriz que ficou toda emocionada ao vê-la casando em cena –; e, não importa o personagem que tenha sido escalado para fazer, o Ricardo raramente estreia na mesma data que o resto do elenco.

Faltava menos de uma hora para o início da peça, e já estávamos praticamente caracterizados: figurino, maquiagem, e no meu caso e da Cristiana, peruca – pois meu cabelo é curto demais para montar o penteado estilo final do século dezenove da Mina Murray, e como interpretaria o Lobisomem, Cristiana precisava deixar o cabelo mais curto e de um par de orelhas mais salientes.

Tudo colocadinho no lugar, as meninas e eu começamos nossos exercícios de respiração muito tranquilamente; e foi quando a Rafaela Mancini, a outra roteirista do grupo, que sempre nos ajuda soprando o texto quando alguém esquece as falas durante a apresentação, veio ao nosso camarim nos dar duas notícias preocupantes sobre a estreia daquela noite:

– Seguinte, meninas: a assistente da Silvia Rosenthal acaba de vir retirar o ingresso da megera, então preparem-se!

Silvia Rosenthal é crítica de teatro do jornal "Vitrine do ABC", um periódico semanal, publicado às sextas-feiras, que traz no caderno de cultura críticas e resenhas de filmes e peças de teatro, e dicas de entretenimento para o fim de semana, como shows e exposições. E essa cidadã em particular é famosa por sempre ver o lado negativo de tudo: onde o ator errou, o texto que alguém esqueceu, o pedaço do cenário que caiu – até hoje não entendemos como o Pedrão conseguiu derrubar aquela parede falsa, na apresentação de "Pinguço, Pinguinha e Mais Uma Dose, Por Obséquio"; detalhe: ele não bebeu nada antes nem durante a peça –, a luz do projetor que oscilou por três ou quatro segundos, o figurino que descosturou um pedaço durante uma cena de luta corporal, o efeito ou a sonoplastia que atrasou dois segundos... Enfim, a mulher não fazia a menor questão de ser generosa. Pelo menos com as apresentações de grupos pequenos. Quando criticava a peça de algum ator famoso, aí era outra história: ela se desmanchava em elogios, utilizava toda a sua cartilha de adjetivos suntuosos e puxa-saquismo, e guardava a acidez para miudezas como nós. E não acredito que seja por acaso, ela sempre escolhe nos assistir na noite de estreia – quando todas as merdas acontecem.

– Ok, problema um anotado: Silvia Rosenthal estará na plateia – disse Vick, conferindo se não havia excesso de batom roxo escuro nos cantos dos lábios. Ela interpretaria a Noiva de Drácula, e mais tarde a Noiva de Frankenstein (longa história...). E a criatura é tão branca que quase não precisou de maquiagem para parecer pálida. – Lembre-me de arrotar no meio do segundo ato.

Rafaela franziu o cenho.

– Ué, gente... – disse Vick, na defensiva. – Já que, de qualquer modo essa mulher vai falar mal da gente, então vamos dar a ela algum assunto... De preferência que não seja um rolo de papel higiênico grudado na sola do sapato, se arrastando feito uma calda de noiva pelo cenário...

Abril de 2016. Estreia de Cyrano de Bergerac – ou Cyrano de "Deixa Errar", como a própria Silvia Rosenthal apelidou –, e Vick foi perfeita em sua citação da crítica da megera.

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