Passava das oito horas quando o trem parou em S. Carlos. Um gaiato, que tossia muito, com o casaco pregado sobre o peito por um alfinete, precipitou-se a abrir a portinhola; e D. Felicidade sorria de contentamento, sentindo a cauda do vestido de seda arrastar sobre o tapete esfiado do corredor das frisas.
O pano já estava levantado. Era a luz diminuída da rampa, a decoração clássica de uma cela de alquimista; embrulhado num roupão monástico com uma abundância hirsuta de barbas grisalhas, tremuras senis, Fausto cantava, desiludido das ciências, pousando sobre o coração a mão onde reluzia um brilhante. Um cheiro vago de gás extravasado errava sutilmente. Aqui e além tosses expectoravam. Havia ainda pouca gente. Entrava-se.
Na frisa, para se colocarem, D. Felicidade e Luísa cochichavam, com gestozinhos de recusa, olhares suplicantes:
– Oh! D. Felicidade, por quem é!
– Se estou aqui muito bem...
– Não consinto...
Enfim D. Felicidade sentou-se no lugar superior, alteando o peito. Luísa ficara atrás calçando as luvas; enquanto Jorge arrumava os agasalhos, furioso com o chapéu que já duas vezes rolara.
– Tem banquinho, D. Felicidade?
– Obrigada, cá o sinto. – E remexeu os pés. – Que pena não se ver a família real!
Nos camarotes de assinantes iam aparecendo os altos penteados medonhos, enchumaçados de postiços; peitilhos de camisas branquejavam. Sujeitos entravam para as cadeiras devagar, com um ar gasto e íntimo, compondo o cabelo. Conversava-se baixo. Ao fundo da plateia havia um rumor desinquieto entre moços de jaquetão; e à entrada, sob a tribuna, viam-se, num aparato militar, correames polidos de municipais, bonés carregados de polícias; e reluzindo à luz, punhos de sabres.
Mas na orquestra correram fortes estremecimentos metálicos, dando um pavor sobrenatural; Fausto tremia como um arbusto ao vento; um ruído de folhas de lata, fortemente sacudidas, estalou; e Mefistófeles ergueu-se ao fundo, escarlate, lançando a perna com um ar charlatão, as duas sobrancelhas arrebitadas, uma barbilha insolente, um bel cavalier; e enquanto a sua voz poderosa saudava o Doutor, as duas plumas vermelhas do gorro oscilavam sem cessar de um modo fanfarrão.
Luísa chegara-se para a frente; ao ruído da cadeira, cabeças na plateia voltaram-se, languidamente; pareceu decerto bonita, examinaram-na; ela, embaraçada, pôs-se a olhar para o palco muito séria: por trás de véus sobrepostos que se levantavam, numa afetação de visão, Margarida apareceu fiando o linho, toda vestida de branco; a luz elétrica, envolvendo-a num tom cru, fazia-a parecer de gesso muito caiado; e D. Felicidade achou-a tão linda que a comparou a uma santa!
A visão desapareceu num trêmulo de rebecas. E depois de uma ária, Fausto, que ficara imóvel ao fundo do palco, debateu-se um momento dentro da túnica e das barbas, e emergiu jovem, gordinho, vestido de cor de lilás, coberto de pós de arroz, compondo o frisado do cabelo. As luzes da rampa subiram; uma instrumentação alegre e expansiva ressoou: Mefistófeles, apossando-se dele, arrastou-o sôfrego através da decoração. E o pano desceu rapidamente.
As plateias ergueram-se com um rumor grosso e lento. D. Felicidade um pouco afrontada abanava-se. Examinaram então as famílias, algumas toaletes; e sorrindo concordaram que estava "do mais fino".
Nos camarotes conversava-se sobriamente; às vezes uma joia brilhava, ou a luz punha tons lustrosos de asa de corvo nos cabelos pretos onde alvejavam camélias ou reluzia o aro de metal de um pente; os vidros redondos dos binóculos moviam-se devagar, picados de pontos luminosos.
Na plateia, nas bancadas clareadas, sujeitos quase deitados namoravam com languidez; ou de pé, taciturnos, acariciavam as luvas; velhos diletantes, de lenço de seda, tomavam rapé, caturravam; e D. Felicidade interessava-se por duas espanholas de verde, que na superior imobilizavam, numa afetação casta, os seus corpos de lupanar.