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Pelas três horas da tarde, Juliana entrou na cozinha e atirou-se para uma cadeira, derreada. Não se tinha nas pernas de debilidade! Desde as duas horas que andava a arrumar a sala! Estava um chiqueiro. O peralta na véspera até deixara cinza de tabaco por cima das mesas! A negra é que as pagava. E que calor! Era de derreter! Ufa!

– O caldinho há de estar pronto, hem! – disse, adocicando a voz. – Tira-mo, Sra. Joana, faz favor?

– Vossemecê hoje está com outra cara – notou a cozinheira.

– Ai! Sinto-me outra, Sra. Joana! Pois olhe que adormeci com dia. Já luzia o dia!

– E eu! – Tinha tido cada sonho! Credo! Uma avantesma cor de fogo a passear-lhe por cima do corpo, e cada pancada na boca do estômago, como quem pisava uvas num lagar!

– Enfartamento – disse sentenciosamente Juliana, e repetiu:

– Pois eu sinto-me outra. Há meses que me não sinto tão bem!

Sorria com os seus dentes amarelados. O caldo que Joana deitava na malga branca, com um vapor cheiroso, cheio de hortaliça, dava-lhe uma alegria gulosa. Estendeu os pés, recostou-se feliz, na boa sensação da tarde quente e luminosa, entrando largamente pelas duas janelas abertas.

O sol retirara-se da varanda, e sobre a pedra, em vasos de barro, plantas pobres encolhiam a sua folhagem chupada do calor; sobre uma tábua a um canto, numa velha panela bojuda, verdejava um pé de salsa muito tratado; o gato dormia sobre um esteirão; esfregões secavam numa corda; e para além alargava-se o azul vivo como um metal candente; as árvores dos quintais tinham tons ardentes do sol; os telhados pardos com as suas vegetações esguias coziam no calor; e pedaços de paredes caiadas despediam uma rebrilhação dura.

– Está de apetite, Sra. Joana, está de apetite! – dizia Juliana, remexendo o caldo devagarinho, com gula. A cozinheira de pé, com os braços cruzados sobre o seu peito abundante, regozijava-se:

– O que se quer é que esteja a gosto.

– Está a preceito.

Sorriam, contentes da intimidade, das boas palavras. E a campainha da porta, que já tinha tocado, tornou a tilintar discretamente.

Juliana não se mexeu. Bafos de aragem quente entravam; ouvia-se ferver a panela no fogão, e fora o martelar incessante da forja; às vezes o arrulhar triste de duas rolas que viviam na varanda, numa gaiola de vime, punha na tarde abrasada uma sensação de suavidade.

A campainha retilintou, sacudida com impaciência.

– Com a cabeça, burro! – disse Juliana.

Riram. Joana fora sentar-se à janela, numa cadeira baixa; estendia os seus grossos pés, calçados de chinelas de ourelo; coçava-se devagarinho, no sovaco, toda repousada.

A campainha retiniu violentamente.

– Fora, besta! – rosnou Juliana, muito tranquila.

Mas a voz irritada de Luísa chamou de baixo:

– Juliana!

– Que nem uma pessoa pode tomar a sustância sossegada! Raio de casa! Irra!

– Juliana! – gritou Luísa.

A cozinheira voltou-se, já assustada:

– A senhora zanga-se, Sra. Juliana.

– Que a leve o diabo!

Limpou os beiços gordurosos ao avental, desceu furiosa.

– Você não ouve, mulher? Estão a bater há uma hora!

O Primo Basílio (1878)Onde histórias criam vida. Descubra agora