Foi por esse tempo que, num sábado, o Diário do Governo publicou a nomeação do conselheiro Acácio ao grau de cavaleiro da ordem de S. Tiago, atendendo aos seus grandes merecimentos literários, às obras publicadas de reconhecida utilidade, e mais partes...
Na noite seguinte, ao entrar em casa de Jorge, todos o cercaram, felicitando-o com alarido; o conselheiro, depois de os abraçar um por um, numa pressão nervosa e comovida, caiu no sofá, exausto, e murmurou:
– Não o esperava tão cedo da real munificência! Não o esperava tão cedo! – E acrescentou, pondo a mão espalmada sobre o peito: – Direi como o filósofo: Esta condecoração é o melhor dia da minha vida!
E convidou logo Jorge, Sebastião e Julião para um jantar na quinta-feira, "um modesto jantar de rapazes, no seu humilde tugúrio, para festejarem a régia graça".
– Às cinco e meia, meus bons amigos!
Na quinta-feira, os três, que se tinham encontrado na Casa Havanesa, eram introduzidos por uma rapariguita vesga, suja como um esfregão, na sala do conselheiro. Um vasto canapé de damasco amarelo ocupava a parede do fundo, tendo aos pés um tapete onde um chileno roxo caçava ao laço um búfalo cor de chocolate; por cima uma pintura tratada a tons cor de carne, e cheia de corpos nus cobertos de capacetes, representava o valente Aquiles arrastando Heitor em torno dos muros de Troia. Um piano de cauda, mudo e triste sob a sua capa de baeta verde, enchia o intervalo das duas janelas. Sobre uma mesa de jogo, entre dois castiçais de prata, uma galguinha de vidro transparente galopava; e o objeto em que se sentia mais o calor do uso era uma caixa de música de 18 peças!
O conselheiro recebeu-os, com o hábito de S. Tiago sobre a lapela do fraque preto. Havia outro sujeito na sala, o Sr. Alves Coutinho. Era picado das bexigas, tinha a cabeça muito enterrada nos ombros; quando o seu olhar parvo se fixava nas pessoas, com pasmo, o seu bigode pelado arreganhava-se logo por hábito, num sorriso alvar que mostrava uma boca medonha cheia de dentes podres; falava pouco, esfregava sempre as mãos, concordava em tudo; havia nele o ar de um deboche banal, e de um embrutecimento antigo. Era um empregado do ministério do reino, ilustre pela sua boa letra.
Daí a pouco entrou a figura conhecida do Savedra, redator do Século. A sua face branca parecia mais balofa; o bigode muito preto reluzia de brilhantina; as lunetas de ouro acentuavam o seu tom oficial; trazia ainda no queixo o pó de arroz, que lhe pusera momentos antes o barbeiro; e a mão, que escrevia tanta banalidade e tanta mentira, vinha aperreada numa luva nova, cor de gema de ovo!
– Estamos todos! – disse com júbilo o conselheiro. E curvando-se: – Bem-vindos, meus amigos! Estamos talvez mais à vontade no meu quarto de estudo! Por aqui. Há um degrau, cuidado! Eis o meu Sanctum Sanctorum!
Numa saleta muito espanejada a que as cortinas de cassa, a luz de duas janelas de peitoril, e o papel claro davam um aspecto alvadio, estava a larga escrivaninha de trabalho, com um tinteiro de prata, os lápis muito aparados, as réguas bem dispostas. Via-se o sinete de armas do conselheiro, pousado sobre a Carta constitucional ricamente encadernada. Encaixilhada, na parede, pendia a carta régia que o nomeara conselheiro; defronte uma litografia de El-Rei; e sobre uma mesa, era eminente o busto em gesso de Rodrigo da Fonseca Magalhães, tendo no alto da cabeça uma coroa de perpétuas – que ao mesmo tempo o glorificava e o chorava.
Julião pusera-se logo a examinar a livraria.
– Prezo-me de ter os autores mais ilustres, amigo Zuzarte! – disse com orgulho o conselheiro.
Mostrou-lhe a História do Consulado e do Império, as obras de Delile, o Dicionário da conversação, a ediçãozinha bojuda da Enciclopédia Roret, o Parnaso lusitano. Falou dos seus trabalhos; e acrescentou que, vendo ali reunidas pessoas de tão subida ilustração, desejaria muito ler-lhes algumas das provas que estava revendo do seu novo livro – Descrição das principais cidades do Reino e seus estabelecimentos, para ouvir a opinião deles, desassombrada e severa!
