Luísa passou a noite às voltas, com febre. Jorge de madrugada ficou assustado da frequência do seu pulso e do calor seco da pele.
Ele mesmo, muito nervoso, não pudera dormir. O quarto, onde se não acendera luz havia muito, tinha uma frialdade desabitada; na parede, junto ao teto, havia manchas de umidade; e a cama antiga de colunas torneadas sem cortinados, o velho tremó do século passado com o seu espelho embaciado davam, à luz bruxuleante da lamparina, um sentimento triste de convivências extintas. O achar-se ali com sua mulher, numa cama alheia, trazia-lhe, sem saber por quê, uma vaga saudade; parecia-lhe que se dera na sua vida uma alteração brusca – e que, semelhante a um rio a que se muda o leito, a sua existência, desde essa noite, começaria a correr entre aspectos diferentes. O nordeste fazia bater os caixilhos da vidraça, e uivava encanado na rua.
Pela manhã, Luísa não se pôde levantar.
Julião, chamado à pressa, tranquilizou-os:
– É uma febrezita nervosa. Quer sossego, não vale nada. Foi o medozinho de ontem, hem?
– Sonhei toda a noite com ela – disse Luísa. – Que tinha ressuscitado... Que horror!
– Ah! pode estar sossegada... E já a aviaram, a mulher?
– O Sebastião lá anda com a maçada – disse Jorge. – E eu vou dar uma vista de olhos.
Na rua já se sabia a morte da tripa velha.
A mulher que a veio amortalhar, uma matrona muito picada das bexigas, com os olhos avermelhados da paixão da aguardente, era conhecida da Sra. Helena. Estiveram um momento a palrar ao sol, à porta do estanque:
– Muito que fazer agora, Sra. Margarida, hem?
– Bastante, bastante, Sra. Helena – disse a amortalhadeira com a voz um pouco rouca. – No inverno sempre há mais obra. Mas tudo gente velha, com os frios. Nem um corpinho bonito pra vestir...
A Sra. Margarida tinha predileções artísticas. Gostava de um bonito corpo de dezoito anos, uma mocinha fresca para lavar, escarolar, enfeitar... Entrouxava à má cara a gente velha. Mas com as raparigas novas esmerava-se; acatitava as pregas da mortalha; calculava o chique de uma flor, de um laço; trabalhava com os requintes ajanotados de uma modista do sepulcro.
A estanqueira contou-lhe muitas particularidades sobre a Juliana, os favores dos patrões, as tafularias dela, os luxos do quarto tapetado... A Sra. Margarida dizia-se "banzada". E para quem iria agora tudo aquilo? perguntavam. A tripa velha não tinha parentes...
– ERA UMA RIQUEZA pra a minha Antoninha! – disse a amortalhadeira, traçando o xale com tristeza.
– Como vai ela, a pequena?...
– Aquilo vai mal, Sra. Helena. Aquela cabeça doida! – E exalando a sua dor com loquacidade: – Deixar o brasileiro que a trazia nas palminhas... E por quem? Por aquele desalmado, que lhe come tudo, que já lhe arranjou um filho, e que a derreia com pau... Mas então, as raparigas são assim... Vão atrás do palmo de cara... Que ele é bonito rapaz! Mas um bêbedo!... Coitada!... Pois vou vestir a boneca, Sra. Helena. – E entrou na casa compungidamente.
O padre já chegara também. Estava na sala com Sebastião, que conhecia de Almada, e falava de lavoura, de enxertos, das regas, numa voz grossa, passando, com um gesto lento da sua mão cabeluda, o lenço enrolado por debaixo do nariz. As janelas em toda a casa estavam abertas ao sol muito doce. Os canários chilreavam.
– E estava há muito tempo na casa, a defunta? – perguntou o padre a Jorge que passeava pela sala, fumando.
– Há quase um ano.
