Inverno, 1960

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Poucos, como eu, tiveram o privilégio de vir à luz pelas mãos do próprio pai. Na pacata e gelada Gaurama, interior do Rio Grande do Sul, em um hospital de madeira onde a água congelava nas torneiras, sozinho, recém formado e sem opção, meu pai, Dr. Carvalho, arregaçou as mangas e fez meu parto. Ao fundo, as doze badaladas do sino da Igreja anunciavam o meio dia de um sonolento e arrastado 11 de agosto do distante 1960.
Dr. Carvalho e Annajara, uma jovem 17 anos, casaram-se em 1958. Na busca por opções, o então recém formado médico pela UFRGS pegou o mapa do Rio Grande, apontou o dedo aleatoriamente e acabou escolhendo e mudando-se para Viadutos, município vizinho a Gaurama. Mais tarde, desconheço o motivo, mais uma mudança, desta vez para Gaurama. 
Eu, com menos de dois anos ainda de colo, meu pai, a mãe, e minha irmã mais velha, nos mudamos para Esteio, a convite de um tio de minha mãe.
Estávamos agora à 22 quilômetros de Porto Alegre. O Dr. Carvalho logo encontrou espaço para trabalhar. Cresceu profissionalmente junto com o município. Assumiu a diretoria do hospital São Camilo, sua verdadeira paixão, o qual participaria desde de o projeto até a instalação definitiva.
Ao longo dos anos, conquistou  uma clientela fiel e teve mais 3 filhos. Agora, éramos 5.
Desta época pouco me restou na memória. Eu Tinha um jipe verde de brinquedo  e passava o dia pedalando e "dirigindo". As vezes tinha emprestar para meu irmão. Em outros momentos, não entendo como, sentávamos lado a lado no carrinho, eu no volante, e posávamos para foto.
Além de dirigir o Jipe, gostava de "paquerar" a Joice. Isto mesmo. Com três a quatro anos, por volta de '64 ou '65 as meninas me despertavam interesse. Ela era uma garota tímida, com cabelinho preto, uma franjinha penteada para o lado, olhos negros e a pele puxando para uma cor de caramelo, nem gorda, nem magra, tinha de 3 a 4 anos. Morava na casa ao lado, com um pai brabo, pelo menos era o que minha mãe dizia. Ele trabalhava numa cervejaria ( já não tenho certeza) e ia de bicicleta para o trabalho. Para não enroscar a calça na correia, usava espécie de uma tiara para prender a calça na canela.
A Joice tinha três irmãos. O Celso, o Victor e o Elton. Os dois primeiros eram mais velho e já estavam no Ginásio (ensino médio da época). A única memória que tenho deles, é ver um dois, acho que o Victor, correndo portão a fora e o patriarca encandecido atrás com um cinto de fivela girando ao ar que nem cowboy das propagandas antigas de cigarro Marlboro. Alguma bronca feia ou bebida. Mais certo que uma mistura dos dois casos.
O Elton tinha 5 anos, eu lembro, e morria de medo de meu pai. A mãe dele dizia que se ele não se comportasse o Dr. Carvalho iria espeta-lo com uma injeção.
Da mãe da Joice, lembro de ela costurar para fora, ser uma mulher mirradinha, com olhar triste, sofrida provavelmente pela desesperança de algum dia ter um marido descente dentro de casa.

Posso dizer que eu tinha uma rotina interessante naquela época.
Todos os dias pela manhã brincávamos, a Joice, meu irmão Eduardo e o Elton no pátio de minha casa. Minha irmã mais velha, a Lé, não participava, pois morava com minha avó materna em Porto Alegre, segundo minha mãe, para poder frequentar um Jardim de Infância mais qualificado. Para mim era uma terceirização da atividade materna. Mas não culpo minha mãe. Afinal, Dna. Annajara era quase uma adolescente de 22 anos com três filhos. A Neca, irmã mais nova, só nasceria em 65 e o João, o caçula, só em 68.

Ao meio dia, quando o carro do pai, um jipe branco com capota preta cedido pelo do posto de saúde, apontava no portão, o Elton entrava em pânico, e para escapar escalava o muro lateral que Dividia nossas casas como um gato angorá e se jogava para o quintal dele. Nunca soube de ele ter se machucado. Tampouco vi meu pai com uma agulha tentando pega-lo.
A tarde era a melhor parte da minha rotina. Os pequenos tiravam uma cochilo e Joice e eu ficávamos sozinhos. Era um momento lúdico. Ela sempre voltava à tarde usando um vestidinho branco, meio transparente. Íamos para o fundo do pátio e atrás da garagem, antes do galinheiro, eu pedia para ela levantar aquele tecido leve. Um pulsação no peito, um formigamento nas mãos, e uma vibração estranha lá para baixo da barriga tomavam de assalto o meu corpo. Isto só aumentava a medida que aquela doce vizinha baixava as calcinhas brancas de algodão para, a meu pedido, fazer xixi e eu ficar vidrado naquele tracinho preto misterioso e completamente diferente de minha anatomia. Anos mais tarde, talvez em 1972, quando na solidão de um banheiro frio eu tirei a virgindade de minha mão direita, entendi aquilo que sentia se chamava tesão e tinha um ápice...para depois se transformar numa letargia para lá de gratificante.
O que não entendo é como podíamos viver este momento mágico sem sermos importunados, uma vez que eu tinha uma babá. De nome Ana, esta empregada era uma descendente Italiana e como se dizia na época, criada na Colônia. Era feia, e um pouco braba, a qual, não sei porque, sempre associe-a a figura da Rapuzel. Mas eu gostava dela. Certo modo, foi, para mim, uma verdadeira  mãe. O dia que foi dispensada não chorei, mas foi uma manhã e uma tarde muito triste.
Em algum momento em 1966 nos mudamos para uma casa maior de dois pisos e em uma tarde de março de 1967, encarei meu primeiro dia de aula.. e daí em diante nunca mais vi a Joice. Ficavam para trás e para sempre a Joice e momentos da infância que jamais viveria novamente...até conhecer a minha próxima musa.
Para ir ao Grupo Escolar vestia um avental branco com as iniciais do nome da escola bordado no bolso e uma gravata azul. Tinha uma merendeira para o lanche e uma garrafa térmica via de regra, com Ki-suco de morango dentro. Até hoje sinto o cheiro que emanava daquele recipiente plástico. É uma das poucas coisas que não sinto saudade. Mas era melhor levar o lanche que comprá-lo na cozinha do colégio. Lá quem atendia era uma senhora, Dna Idalina, com duas deficiências físicas. Tinha uma perna menor que a outra com o pé virado para dentro, e talvez como consequência desta deformação tinha uma bunda totalmente desproporcional com a estatura dela. Horrível.
Não tinha como comprar e receber um sonho ou um bolo das mãos dela e sair comendo feliz.
No meio do meu primeiro ano, não sei porque trocamos se professora. Quando Sra. Ida, a mestre  substituta entrou na sala, uma palpitação quase me matou. Era a mulher mais linda que eu já vira. Tinha um cabelo preto em forma de coque. Usava um vestido tipo tubinho, sem mangas que deixava os ombros largos e dourados de fora. Um batom vermelho forte, só perdia em termos de sensualidade para o perfume que tomou conta da sala e de minha alma. Fora esta paixão avassaladora, não me lembro de mais nada do meu primeiro ano de alfabetização. Também pudera, só prestava atenção nos seios da Sra. Ida.
Como estava com muita dificuldade de aprendizagem, a docente chamou minha mãe e sugeriu que eu poderia estar com problema de "vistas". (Nunca entendi se havia sido uma indireta para eu tirar meus "olhos" dela, ou ela se referia  a algum tipo de disfunção ocular!)

De qualquer forma, minha mãe entendeu que eu precisava visitar um oculista.
Fomos a Porto Alegre, ela dirigindo, algo raro na época. De Fusca. Como se dizia, via Federal, atual BR-116. Não necessário citar que ninguém afivelou o cinto de segurança, por uma simples razão: eles não estavam  presentes na frota nacional.

O oculista, um médico chamado Correia Meyer, fez uma série de exames, inclusive o mais desconfortável de todos, nem tanto pelo exame em si, mas pela necessidade de dilatar as pupilas, o que poderia demorar até 3 horas para voltar ao normal. Ruim!

Tenho uma crença sobre ir ao médico. Sempre, ou ele manda vc parar de fazer algo que gosta; ou ele manda vc fazer o que não gosta. Como tudo pode piorar, as vezes as dois corolários acima acontecem simultaneamente.

No caso do Dr. Correa Meyer não foi diferente. Furungou e achou. Estrabismo. Receita: óculos.

De volta à escola, Imediatamente fui apelidado de "Quatro Olho (sic)".

Tempo mais tarde, em um aniversário qualquer um tio por parte de pai afirmou incisivamente  que eu tinha "pé chato".

De novo Porto Alegre. De Fusca, BR-116 e sem cinto. Consulta médica. Receita: bota ortopédica. 

Agora, de volta ao colégio, eu era "o quatro olho pé de chumbo".

Tomei muita mamadeira e chupei bico. Leite com Toddy. Alguém, não me lembro, cismou que por este motivo eu tinha ficado "com os dentes para frente".

Tudo de novo. Fusca. BR116. Sem cinto. Desta vez era dentista, que para mim era o mesmo que ir ao médico, só que pior, porque, em geral, doía mais. Diagnóstico: além de dentes para frente, eu era uma evolução da espécie e tinha uma arcada dentária com um ou dois caninos a menos. Receita: aparelho ortodôntico por 3 a 4 anos.

Pronto. Agora no colégio eu era o "quatro olho, pé de chumbo com sorriso blindado".

Não morri de desgosto, mas me chateava.  De forma politicamente incorreta me vinguei, apelidando um colega que tinha cabelo crespo e um tom de pele um pouco mais escura de "Mameluco". E o apelido pegou (os meus não)!

Infelizmente nunca mais o vi. Mas confesso que me arrependi. Hoje, se o encontrasse, certamente pediria desculpas!

DANDO A VOLTA POR  BAIXO: Uma Corrida contra o tempo em busca da dignidade. Onde histórias criam vida. Descubra agora