Nova York, 1970

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Em 1968, nosso irmão mais novo, João Antonio , nasceu. Minha mãe, por problemas no parto, quase morreu. Lembro-me de sentado na escada de casa, ouvindo meu pai conversando ao telefone com alguém e falando que teria que transferir minha mãe para Porto Alegre, pois no hospital de Esteio não havia recursos adequados. Felizmente ela recuperou-se bem e depois de 3 a 4 meses hospitalizada, estava de volta.
No inverno de 69, o pai chegou em casa com uma novidade. Havia sido aprovado e ganhara uma bolsa para fazer residência médica na Cornell University em Nova York. Foi um feito e tanto. Lembro de minha vó materna preocupada porque lá "não tinha carne nem feijão". Achava que voltaríamos subnutridos.
Pouco me lembro dos preparativos para a viagem. Ficaríamos 1 ano por lá. O pai foi uns meses antes, e o resto da família, no caso a mãe e nós todos, exceto o mais novo, João, embarcaríamos em meados de janeiro.
Minha mãe ficou encarregada de vender o fusca, aquele que me levava ao médico. O dinheiro da venda pagaria as passagens aéreas.
Em janeiro embarcamos. Viajamos pela Varig,
Pousamos em Nova York no JFK em um voo vindo do Rio de Janeiro. Era um dia frio, mas ensolarado. Tenho a vaga lembrança de haver resquícios de neve  v em gramados do Aeroporto. O cheiro adocicado da gasolina de aviação estava por todo o aeroporto.
Iríamos morar em um apartamento alugado no décimo quinto andar de um edifício de esquina na rua 70, leste (east side) esquina York Av. em Manhattan.
Fomos matriculados em uma escola pública (PS 183) na rua 68. Durante os primeiros quinze dias o pai nos levava à pé até lá. Solicitação do Principal (diretor). Depois era para irmos sozinho. Foi uma experiência muito sofrida. Eu era muito tímido para fazer amigos, as professoras não eram bonitas e a barreira da língua era instransponível.
Em algum momento, consegui fazer um amigo, o Peter, um gordinho polonês que morava em um prédio antigo com de escada de incêndio por fora do prédio na fachada dianteira. A mãe dele era bonita e tinha uma banheira na cozinha. Nunca entendi. Assim como veio, a amizade se foi.
Almoçávamos na escola. As aulas começavam às 8:30 e terminavam as 15:30. Depois disso íamos para casa e quase todos os dias descíamos para brincar em uma pracinha perto de casa. Lembro de minha mãe, sempre triste provavelmente por conta da saudade do João que ficou no Brasil.
O pai chegava em casa por volta das 6 horas. Ele saia do hospital e vinha para casa por um túnel que passava por baixo das calçadas e avenidas. Coisa de primeiro mundo ou de livro de espionagem, pensava e não chegava a uma conclusão.
Jantávamos e depois cada um tinha uma tarefa. As irmãs tiravam a mesa e nós, os guris, levávamos o lixo. A mãe colocava os pratos na máquina de lavar. Outra mágica que eu tentava entender. Fascinante e misterioso para um menino curioso de dez anos. Mas nunca desmontei aquela geringonça para ver "como era por dentro". 
Depois da janta, jogávamos carta. E comíamos pequenas balas de chocolate.
Nos finais de semana íamos para o Central Park a pé. Lá estavam os hippies e todos os protestos contra a guerra do Vietnã, a guerra para promover a paz no sudeste asiático. "Fazer guerra pela paz é como fazer sexo pela castidade!" era a palavra de ordem dos hippies enfiados em suas calças boca de sino. Era a época do Paz e Amor. Mais amor que paz, pela quantidade de casais deitados na grama se beijando e com as mãos explorando os corpos alheios. Gostava daquilo.
Algumas vezes alugávamos carro na Avis Rent a car e passeávamos nos arredores de Nova York.
Em julho, fomos ao Madison Square Garden ver o Brasil de Pele, Jairzinho e Tostão ganhar de um a zero da Inglaterra de Bob Moore. Sei, porque me lembro de um ingles bêbado sentado atrás de nós gritando: - C'amom Bob, c'amom Bob! - Não deu. Ninguém podia com aquela seleção. Na final, brasileiros amigos se reuniram para tentar captar alguma radio brasileira para ouvir o jogo. O máximo que conseguiram foi sintonizar uma rádio com música de Roberto Carlos. Achei aquilo uma epopeia. Mas os mais velho espragejavam. Não tinha muita noção do significado que viria a ter a conquista do tri no México. Somente um anos mais tarde, de volta ao Brasil é que conseguir ter uma clara noção do que aquilo tudo representava.
Em outubro, iniciando o frio, minha madrinha, a tia Marina, irmã de meu pai, veio passar a temporada conosco. Foi muito divertido. Ela era espirituosa e trouxe muita alegria para nós, compensando a tristeza cada vez maior de minha mãe.
Foi com ela e meu pai que fomos pela segunda vez visitar o Empire State Building e lá de cima vi a neve pela primeira vez. Inesquecível.
Veio o Natal. Dias antes, os americanos fazem uma limpeza geral nos apartamentos e colocam muitos brinquedos no lixo. Fomos eu e meu irmão nas salas de lixo de cada andar de nosso edifício e coletamos muitos brinquedos jogados fora. Foi o melhor Natal em termos de quantidade de presentes que me lembro.
Em janeiro, em um dia cinzento com previsão de neve, embarcamos de volta para o Brasil.
A recepção foi calorosa, mas quando entrei no Fusca (outro agora, de meu tio) e ingressamos na BR116, e vi o matagal que tomava conta do canteiro central, meu dei conta que estava no Brasil. Um choque. Mas era a minha casa e em breve iria rever amigos que há muito não via.

DANDO A VOLTA POR  BAIXO: Uma Corrida contra o tempo em busca da dignidade. Onde histórias criam vida. Descubra agora