Quando era criança, Selma via sua mãe e seu pai sentarem num banco de madeira na varanda da casa, nas noites quentes e ficarem observando quem passava pela rua, algumas vezes conversando um pouco com alguém, às vezes se escondendo, para não ter que conversar. Mas a vizinha de Selma, há alguns meses, comprara uma cadeira de balanço, e Selma, sentada no banquinho de madeira que pertenceu a seus pais, ficou com inveja.
Ela e seu marido, Joaquim, foram ontem à loja de móveis e também procuraram uma cadeira de balanço. Não igual à da vizinha, mas diferente. Para não ficar muito explícito que quiseram comprar uma só porque a vizinha tinha. Não queriam ter fama de invejosos. Já bastava a fama que possuíam a poucos anos. A cadeira da vizinha era simples, sem nada de muito chamativo, como se fosse uma cadeira comum, de madeira. Já a de Selma era muito mais bonita: com o respaldo redondo, e estofada com um tecido de flores vermelhas e brancas.
Na varanda da casa ao lado, a cadeira ficava apagada, já que tudo tinha cor de madeira. Na varanda de Selma, o vermelho das flores contrastava com os marrons claro e escuro das paredes de madeira sem tintura.
Agora, em pé em um dos três degraus que liga a varanda ao gramado na frente de casa, Selma espera ansiosamente a chegada da cadeira. Falaram que iam entregar às três horas da tarde. Ela olha o relógio: duas e cinquenta e oito. Olha para a casa ao lado, para a casa da cadeira sem graça e sorri. Duas e cinquenta e nove. Passa a mão no cabelo e arruma a saia. O tempo demora mais a passar, como se aquele minuto na verdade fosse algumas horas. Horas de extrema agonia e tortura. Finalmente passa e o relógio mostra três horas. É agora. Ouve um barulho de um carro passando pela rua e se anima. O carro para na frente de casa e Selma vê que é Olga, uma amiga de infância. Selma não pode ver seu rosto, mas sabe que ele passa a frustação que está sentindo.
"O que foi? " Olga pergunta.
"Nada. É que eu estava esperando uma compra que eu fiz que já era para estar aqui. "
"Ah é? O que você comprou? "
Se Selma falasse que comprou uma cadeira de balanço, talvez Olga olhasse para o lado e visse a cadeira da vizinha e saberia que ela quis imitá-la. "Comprou? Eu não comprei nada. "
Olga a olha, confusa. "Mas você disse..." mas antes que termine a frase Selma a interrompe.
"Eu não disse nada você deve estar ouvindo coisas. Você vai ao mercado? Gostaria que comprasse uns biscoitos para mim. Sabe como é... já comi todos os que tinha e estou com vontade. Depois te pago. " Enquanto fala, Selma coloca as mãos nos ombros de Olga e a leva ao carro da amiga.
Ficando sozinha, Selma volta ao degrau. Três e doze. Nem sinal do carro das entregas. Os biscoitos que estavam no forno já devem estar prontos, mas ela decide esperar mais um pouco o entregador. Três e trinta e sete. Selma não sabe quanto tempo se passou desde que Olga saiu. Nunca fora boa em matemática.
Quando chega cinco e dezessete, Selma senta na sua cadeira velha e suspira. Esperou à toa. Mais uma vez a fizeram e boba. Passa um dedo pela cicatriz em seu braço. A proveniente do corte mais profundo ainda é visível; mas a do outro braço já está quase apagada. Quando desvia o olhar das suas marcas, vê que seus nove netos estão sentados no chão, olhando para ela. O cheiro de fumaça é muito forte. Os biscoitos.
Quando se levanta, percebe que é tarde.
Tarde para tirar os biscoitos do forno.
Tarde para apagar o fogo.
Tarde para a entrega da sua cadeira.
Tarde para gritar.
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Efeito Colateral
Short StorySete contos. Seis histórias. Uma única cidade. trigger warning: estupro, violência física, suicídio, violência contra mulher