"Saí de Harley Street com uma sensação de que havia tomado a decisão errada. Uma diligência
me levou até a cidade próxima, onde havia uma carruagem esperando para me transportar até Bly. O aperto no peito só me abandonou no momento em que cheguei ao meu local de trabalho. A casa era enorme e de muito bom gosto. A opulência dos cômodos e dos jardins contrastava com a vida pobre que eu levara até aquele dia.
Fui recebida por Mrs. Grose, que tinha o rosto sereno e trazia uma linda menina pelas mãos. As duas me reverenciaram de tal modo que senti como seu mesma fosse a dona da casa ou talvez uma hóspede de muita cerimônia. Além delas, havia vários outros empregados. Chamou-me a atenção a doçura e a beleza de minha pequena aluna. Na verdade, nunca vira criança mais linda na vida. Achei estranho que meu patrão não tivesse comentado nada sobre isso.
Naquela noite, dormi pouco, pois estava muito agitada. Além disso, meu quarto era tão grande e luxuoso, que demorei para me sentir à vontade. Fiquei bastante satisfeita por ter me dado bem com Mrs. Grose logo de início.
Era uma mulher de aparência simples, um pouco gorda, de rosto redondo e feio. Apenas uma coisa me preocupou: ela parecia exageradamente feliz coma minha presença em Bly. Percebi, inclusive, que tentava disfarçar essa alegria.
Passei a primeira manhã conhecendo a propriedade. Caminhei por todaa casa, que tinha quartos e salas enormes, a maioria vazios, mas impecavelmente arrumados. Certa hora pensei ter escutado um grito longínquo de criança trazido pelo vento, e logo cedo também percebi passos lentos que faziam ranger o assoalho perto da porta do meu quarto, mas nada disso afetou-o encantamento pela nova vida que eu iria levar. Na verdade, só me lembrei desses detalhes depois de tudo o que aconteceu mais tarde.
Flora era uma menina maravilhosa. Sua meiguice, acrescida de uma beleza angelical dissipavam qualquer tipo de preocupação que eu pudesse ter. O trabalho de ensiná-la e formar seu caráter me dava uma satisfação tão grande, que eu sentia como se tivesse nascido para aquela tarefa. Combinamos que, a partir da segunda noite, a pequena iria passar a dormir no meu quarto. Mrs. Grose arrumou uma cama ao lado da minha, o que fez Flora sentir-se importante e feliz. Acho que parte do apreço que tive por Mrs. Grose vinha do fato de que nós duas éramos completamente apaixonadas pela menina.
— Como é o menino? Parecido com ela? — perguntei.
— Ele é extraordinário! Extraordinário! — exclamou a boa governanta.
Tudo parecia estar bem. Naquela tarde, porém, senti uma espécie desfoco no peito. Flora resolveu que iria me mostrar as partes da casa de que mais gostava. O fato é que a bela menina me levou para percorrer corredores escuros, quartos vazios e cheios de esconderijos, escadas íngremes e uma torre quedava para o jardim, cuja escalada me deixou tonta.
Imaginei que, para Flora, aquela casa se parecia com um castelo de contos de fada, mas acredito que a opressão que senti deveu-se ao fato de eu ter percebido outra coisa: Bly não era um castelo de histórias infantis, mas sim uma casa velha e feia, que mais se parecia com um navio à deriva. O pior de tudo é que o navio estava cheio de passageiros e a responsável pelo leme era eu!
Para completar a sensação desagradável, no final do primeiro dia, recebi uma carta de meu patrão. Era um envelope que continha um outro dentro eu m bilhete dizendo: "Esta carta é do diretor do colégio de Miles. Ele é um homem maçante. Leia e veja do que se trata, mas lembre-se: resolva tudo com ele. Não quero saber de nada."
Abri o envelope endereçado ao meu patrão em Londres e tive um choque.Miles havia sido expulso do colégio! De manhã, fui falar com Mrs. Grose.
— O que a senhora está me dizendo? O menino foi expulso? — perguntou ela, atônita.
— A escola se recusa a recebê-lo de volta.
— Mas isso é um absurdo! O que foi que ele fez?
— A carta diz que ele pode prejudicar os outros alunos.
— O senhorzinho? Isso é impossível! Estão sendo cruéis com ele! Como é que uma criança de apenas dez anos pode prejudicar alguém? A senhora me diga.
Sua voz soava realmente indignada, o que me fez acreditar que estava dizendo a verdade, por isso concordei:
— Tem razão. Deve estar havendo algum engano.
No entanto, aquele assunto não me saiu da cabeça. Durante todo o dia, percebi que Mrs. Grose tentou evitar conversas relacionadas a isso. À noite, coloquei-a contra a parede:
— Pelo que a senhora me disse hoje cedo, o menino nunca foi mau...— insinuei.
— Nunca? Bom, isso talvez não, miss
— disse ela, corando novamente.
— Então a senhora soube de algum episódio em que ele tenha se por-tado mal...
— Uma criança faz travessuras...
Aquela resposta ainda estava vaga demais. Continuei tentando:— Como era a outra preceptora, a que trabalhou aqui antes de mim?
— Muito bonita e jovem, mas não tanto quanto a senhora.
— E ela alguma vez viu Miles fazer coisas erradas?
— Nunca falou nada sobre isso, Miss.
— Ela era exigente?
— Em algumas coisas.
— Não em tudo?
— A senhora me desculpe, mas não quero falar sobre isso. Ela já se foi enão acho certo...
— Ela morreu aqui?
— Não, foi tirar umas férias e, quando estava prestes a voltar, recebemos uma carta do patrão dizendo que ela havia morrido.
— Ela estava doente?
— Não parecia.
— E do que morreu?
— O patrão não disse. A senhora me dá licença, mas preciso voltar ao trabalho — falou, encaminhando-se para a cozinha.
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A VOLTA DO PARAFUSO
Mystery / ThrillerO medo é algo fascinante, embora também seja aterrador.