Duas horas depois, na cozinha da casa, caí novamente nos braçosde Mrs. Grose:
— Oh, minha amiga! Eles sabem, eles sabem! É horrível demais!
— O que a senhora quer dizer, Miss?
— perguntou, ela.
— Eu... estava no lago... com Flora. Eu vi e a menina também!
— A menina o viu?
— gritou Mrs. Grose.
— Dessa vez era outra pessoa... uma mulher! Estava de preto. Tinha os cabelos negros penteados para trás e a pele pálida. O olhar... oh! Era aterrorizante! Parecia querer repreender a menina.
— De onde ela veio, querida Miss?
— Do mesmo lugar que Quint veio. Só Deus sabe. Talvez nem Deus...
— E Flora?
— Não disse uma palavra!
— E como sabe que ela viu?
— Ela viu, cara amiga! Tenho absoluta certeza de que ela viu sua antiga
professora!
— Miss Jessel???
— Era ela, a senhora sabe tanto quanto eu. E o que mais me apavora
não é encontrá-la novamente, nem Quint. O pior é ter consciência de que as
crianças sabem de tudo o que nós sabemos, e talvez de muito mais!
— Diga, Miss, como sabe que era ela?
— Então a senhora confirma?
— Como sabe?
— Mrs. Grose limitou-se a perguntar.
— Aquela "coisa" não ousou me encarar. Ao contrário, queria apenas Flora. Se eu não estivesse ali, teria se apoderado dela.
Mrs. Grose foi até a janela, ficou um instante em silêncio e perguntou:
— Ela estava de luto?
— Sim. Eram roupas simples e pobres, acho que a saia estava até rasgada.
— E o olhar?
— Era o olhar de uma pessoa vil e indignada.
Mrs. Grose se virou e disse:
— Miss Jessel era uma mulher indigna! Quint e ela eram indignos!
— Diga, cara amiga, o que houve entre eles?
Aos prantos, Mrs. Grose acabou me contando que Miss Jessel e Peter Quint haviam tido um relacionamento amoroso. A pobre moça fora embora grávida, pois seria vergonhoso demais para uma professora ter um filho do criado de quarto do patrão. Os dois não eram sequer casados!
— A senhora sabe como ela morreu?
— perguntei.
— Não sei, Miss. Só sei que os dois morreram na mesma época, pouco tempo depois que ela se foi daqui.
— E por que se foi? Não é verdade que resolvera tirar férias...
— Dizem que perdeu o bebê que carregava no ventre.
— Daí o luto... — refleti. — O que será de nós? O que será dessas crianças?
— perguntei a Deus em voz alta.
— Não desanime, não desanime, Miss. É o que lhe peço
— disse Mrs. Grose.
— A senhora precisa me ajudar. Conte-me por que a senhora disse que Miles fazia travessuras. Desde que chegou aqui, ele só demonstrou respeito e educação.
A boa governanta explicou que Miles passara vários meses na companhia de Quint. O tal homem se encarregava dele o dia inteiro como se fosse seu preceptor.
— E a senhora falou com Miss Jessel sobre isso? — perguntei.
— Ela me mandou cuidar da vida. Disse que o menino não era assunto meu.
— Oh, Deus! Miles encobria o relacionamento dos dois
— concluí.
— Ele era usado por aqueles saláfrarios! Como podiam fazer isso com uma criança?
— Resolvi ir falar com o próprio Miles — disse Mrs. Grose.
— Expliquei a ele que um garoto de sua classe não deveria aceitar ordens de um criado de seu tio.
— E ele, o que disse?
— Oh, Miss... o menino... o nosso menino...
— ... mentiu! — completei.
— Sim, ele mentiu. Disse que não sabia de nada entre Quint e Miss Jessel.
— E o que a senhora fez?
— Insisti, mas foi pior, bem pior.
— Por Deus, o que houve?
— A senhora talvez não acredite, Miss, mas o pequeno Miles, este anjo
que conhecemos, disse barbaridades para mim.
Nas semanas seguintes, continuei a me dedicar às crianças. Elas eram tão encantadoras, que funcionavam como um bálsamo contra todos os males e aflições que eu vinha sentindo. Mergulhar nos dois pares de olhos azuis de Flora e Miles era como tomar um remédio curador de toda e qualquer ferida. Hoje, porém, percebo que havia algo de sinistro na docilidade das crianças.
Lembro-me de que, logo depois da aparição de Miss Jessel, as crianças passaram a se comportar excepcionalmente bem. Além de fazerem as lições com capricho e atenderem a todos os meus chamados, eles se esmeravam em me distrair. Encenavam peças de teatro, convidavam-me para brincar de esconde-esconde, contavam histórias e tocavam belíssimas músicas ao piano, mesmo sendo tão pequenos. Pareciam querer me "enfeitiçar" cada vez mais, e eu me deixava levar por esse feitiço quase por vontade própria.
Chamava-me a atenção também a amizade entre os irmãos. Os dois eram unha e carne. Faziam tudo juntos, ajudando e respeitando um ao outro sem o menor sinal de brigas infantis, que seriam normais na idade deles. Comecei a notar, no entanto, que essa amizade também funcionava como forma sutil de me enganar. Um deles me distraía, enquanto o outro dava um jeito de escapar para algum lugar. Como isso nunca havia resultado em situações mais sérias, fazia vista grossa para essas armações, julgando serem atitudes brincalhonas de crianças saudáveis e felizes.
Tudo corria bem, entretanto, até que, certa noite, o terror voltou a reinar.Eu estava lendo no quarto. Flora dormia sob o cortinado e a janela estava parcialmente aberta, permitindo que uma brisa leve invadisse o recinto. Era tarde da noite. De uma hora para a outra, ouvi alguns passos no corredor. Fui espiar a menina, que dormia tranquilamente. Peguei um castiçal com uma vela acesa, saí do quarto e tranquei-o a chave. Caminhei cerca de um metro até a janela ampla do corredor, quando três coisas inusitadas aconteceram. Vieram quase ao mesmo tempo, embora eu me lembre de cada uma delas de modo isolado.
Primeiro, um sopro de vento vindo não sei de onde apagou a vela que eu levava nas mãos. Nessa hora, percebi que o dia já estava raiando, tornando o uso da vela desnecessário. Uma luz invadiu o corredor e INCIDIU sobre a escada, mostrando-me que havia um vulto subindo os degraus. Era ele: Peter Quint.
Nós dois paramos e nos encaramos. Não sei como, mas não tive medo daquela vez. E ele percebeu isso, pois naturalmente virou-se de costas e desceu as escadas, como se tivesse recebido uma ordem minha para fazê-lo. Observei-o descendo lentamente, até desaparecer na névoa da manhã que invadia a casa.
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A VOLTA DO PARAFUSO
Misteri / ThrillerO medo é algo fascinante, embora também seja aterrador.