Naquela mesma noite, tive que dirigir quase trinta quilômetros para retornar para minha casa. Eu morava num pequena cabana na cidade de Lakebarrow. Quando eu digo pequena, é por que é pequena mesmo, os trinta e seis metros quadrados são divididos em um banheiro e uma mistura de quarto e cozinha embutido. E apesar de ser pequena era muito luxuosa e me trazia conforto. Eu amava morar ali, desde a morte de meus pais, quando foram atacadas por um lobisomem, esse era o único lugar que eu encontrava um pouco paz no meio da loucura em que é a minha vida. Aqui e claro, na casa da vovó que mora a alguns quarteirões daqui, depois do parque florestal.
Tirei minhas armas, e as roupas sujas de sangue e suadas as largando em cima da cama, amarrei meu cabelo comprido e preto num apertado rabo de cavalo e então fui para o banho. Um banho quente sempre me deixava relaxada, e tirar o cheiro de lobo do meu corpo era algo muito satisfatório. Mesmo que os odores dos lobos não sejam tão ruins, eu realmente acredito que após as lutas um pouco do cheiro deles ficava impregnado em mim, e isso sim era algo inaceitável. Eu jamais cheiraria igual a um lobo ordinário. Após o meu banho demorado, onde usei meu sabonete de lavanda para tirar qualquer resquício de lobo da minha pele, a fome me preencheu, e juro que me estômago parecia estar se ajoelhando e implorando por comida. Sempre depois de uma luta eu ficava com muita fome, e fome de carne. Ainda enrolada na minha toalha felpuda branca, peguei dois bifes do freezer da geladeira e os coloquei para descongelar no micro-ondas, segui para a minha sala/quarto para ligar meu iPod. Era bom se distrair com alguma música. Eu amava ouvir um bom rock, isso era algo que me relaxava também. No entanto, assim que estiquei minha mão para pegar o IPod, me detive. Parei o movimento e fiquei encarando o porta-retratos que ficava no criado mudo ao lado da minha cama. A foto que me fazia dormir todas as noites olhando para ela. Eu amava essa foto da minha família. A foto de papai, mamãe e eu quando eles ainda estavam vivos e eu era uma criança. Eu me lembro do dia em que a tiramos, foi exatamente uma semana antes de eles morrerem. Estávamos reunidos no parque florestal fazendo um piquenique com a vovó, foi vovó quem tirou a foto de nós três. Lembro que mamãe estava muito feliz naquele dia, ela havia descoberto alguma coisa muito importante, mas como eu tinha apenas sete anos, eles não me contaram sobre o que era. Porém as palavras de mamãe rodavam na minha cabeça, sem nunca me deixarem em paz. Sempre me deixando curiosa e tentando me fazer desvendar o que ela descobriu naquele dia.
"Tudo vai ficar bem Kassy, seu destino não será o mesmo que o meu".
O sorriso e o olhar de alívio de mamãe em prometer algo que ela parecia ter certeza que cumpriria, me deixava intrigada. Mas por fim, ela não pode cumprir, por que não teve tempo de honrar a sua promessa. Não era culpa dela, entretanto ela estava enganada, pois aqui estou eu, uma das mais renomadas caçadoras até hoje. E o meu destino continua sendo o mesmo que o dela. Caçar, matar e ponto final.
Larguei o porta-retratos no lugar e suspirei fundo sentindo sua frase ainda girar nos meus pensamentos, sempre me deixando frustrada. Então chacoalhei a cabeça e resolvi ligar meu iPod com uma música de rock para tentar me distrair, como tinha sido meu plano desde o início. E agora eu precisava dessa distração muito mais do que antes.
Ficar sozinha não era ruim, já estava acostumada a ter minha própria sombra como companhia. Porém era triste e entediante quando você fazia isso praticamente todos os dias da sua vida. Jantar, lavar a louça, arrumar a minha bagunça, dormir e caçar... Uma vida resumida nisso. Às vezes, eu sentia falta de ter alguém para conversar, uma amiga que me mandasse mensagem durante a noite somente para me contar que ficou bêbada durante uma festa, ou um namorado que me acolhesse em seus braços e me passasse um pouco de conforto. Mas não era assim, nunca seria assim.
Eu sou uma caçadora, uma máquina. Eu extermino, mato e nunca paro.
Minha casa era pequena, mas também tinha seus privilégios. Abaixo do meu piso falso de madeira, eu mantinha um porão escondido, ou como eu costumo chamar O Arsenal. Ali escondo todas as minhas armas, e a valiosa capa vermelha e a adaga Misit, que jamais deveram cair em mãos erradas. Se esses itens forem usados com más intenções poderia ser o fim da terra e de todos os seres vivos do planeta. O poder que eles contem é algo sobrenatural que poderia tornar qualquer ser poderoso.
Normalmente eu costumo ficar mais no Arsenal do que na própria casa em si. Após me vestir, peguei as minhas coisas que usei na luta e levei-as até o Arsenal. Andei até minha estante ao lado do meu sofá, e um pequeno grampo de pendurar roupa era a alavanca para abrir a porta escondida na parede, só eu sabia como entrar e que existia esse porão, nem mesmo minha avó sabia de sua existência. Puxei-o grampo para baixo, e uma espécie de caixa com tela touch screen saiu da parede ao lado, pressionei meu dedo polegar em cima da tela e o aparelho rastreou minha digital, e então a porta se abriu.
O Arsenal é bem iluminado, e contém um sistema moderno com computadores e aparelhos de última geração, uma enorme parede só para armas e apetrechos, e claro, a minha mesa de pesquisa. E ainda tem meu equipamento de som, sendo assim eu podia ouvir Marilyn Manson cantar no último volume aqui embaixo também. Do lado direito tem uma parede coberta por recortes de jornais, fotos e pistas onde todo dia em que eu desço aqui, eu olho para ela. Ali estão as únicas pistas que eu tenho dele, ainda não o encontrei. O lobisomem que os matou. Papai e mamãe tinham pistas sobre ele e com o passar dos anos eu fui seguindo-as até parar na cidade de Mexrool, uma província próxima do México.
É para onde eu irei amanhã.
Minha gana em encontrá-lo e matá-lo é o que me motiva em ser uma caçadora, em ser a melhor caçadora. Eu jurei desde o dia em que descobri o que eu era, em que descobri o que meu destino tinha reservado para mim que um dia eu o mataria. Vingaria minha família. Por isso eu treinei arduamente, me dediquei a aprender tudo, me martirizei em ser a melhor, pois quando esse dia chegar e eu o encontrar, eu quero estar preparada.
Após subir do Arsenal e trancar a porta com meu dispositivo de segurança, eu fui jantar meu bife de carne malpassado. Por fim organizei minhas coisas, escovei os dentes e me deitei na cama, meu corpo esgotado pelo cansaço da luta de hoje mais cedo, logo me fez adormecer. Mas o pesadelo sempre me acordava durante a noite, até hoje nunca consegui dormir uma noite inteira sem acordar com esse maldito pesadelo que me assombra. O dia da morte de papai e mamãe. Eu os vejo fugindo para me proteger, o bando os cercando e o mestre deles, o maior lobo que eu já vi com aqueles olhos negros como a noite, os encurralando. Eu estava escondida no Impala 67 de papai e presenciei quando o lobo negro arrancou o coração do meu pai, e minha mãe gritou, o grito mais agonizante e que fica reverberando nos meus ouvidos como se ela estivesse gritando ao meu lado agora. O lobo negro sussurrava alguma coisa para ela, ela me olhou e eu sabia que com aquele olhar, ela me disse: "Eu te amo". Depois que eles os mataram deixaram seus corpos ali caídos ao chão, como se não fossem nada, o sangue do corpo de meu pai formando uma poça de liquido vermelho ao seu redor. Os lobos não me viram escondida, talvez nem soubessem da minha existência, mas o que eu nunca vou esquecer era a visão do corpo da minha mãe tremendo e virando cinzas, pequenos floquinhos de cinzas voando para o céu escuro da noite. Naquela noite vovó me encontrou, e me disse que tudo ficaria bem.
E o pior de tudo é saber que essa cena não é apenas um pesadelo qualquer, ou um sonho ruim que não é real, mas sim, uma lembrança que eu revivo todas as noites como se meu subconsciente quisesse me alertar de alguma coisa.
E mesmo eu tentando descobrir o que é, algo sempre parece estar faltando.
"Qual é a peça do quebra cabeça que eu perdi?"
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Vermelho Sangue DEGUSTAÇÃO
Hombres LoboSinopse Vermelho Sangue Em pleno século XXI, eles existem. Espertos, sorrateiros e predadores. Lobisomens disfarçados de belos homens atacam garotas desprevenidas que caem em seu papo sedutor. Matá-los não é uma tarefa fácil, mas é incumbida apenas...