A sua estante de madeira;

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Eu via a sua coleção de desamparos. Todas as mágoas cheias de poeira. E mesmo assim, ele apreciava falar da estante
E eu lhe dizia:
- Querido... Se tudo o que vejo em ti, estivesse nesses livros. Nesse monte de páginas amarelas, cheirando a mofo!
Querido! Há quanto tempo esta tua cara está pálida? Há quanto tempo a tua palavra está presa?
Era um menino abandonado, eu sabia!
E apelei para que se despisse ali, em frente aos livros, perante a sacralidade da sua estante de madeira!
Ele teimava em arrumar as gavetas. Em ajeitar os potes da cozinha. E eu, suplicante, pedia um pouco mais daquele báu de lembranças torpes. Queria sugar-lhe as feridas como uma criança eufórica, ao descobrir o mundo. Pentelhava-o, atrapalhando a paz da sua leitura. A ordem obstinada da sua contemplação!
Eu queria o menino, e não a sua caricatura mais máscula!
Seus ímpetos de potência, eram mais entediantes do que as prateleiras empoeiradas.
Sua palidez, seu disfarce ..-ah, estas sim!- eram o conflito, o grande desfecho da estória que nunca leu.
Perdi as contas, do quanto implorei para poder devorar aquelas paginas!
E pedi para que aquele garoto assustado, me fizesse uma mulher inteira!
Impossível supor se ele sabia, que meus gritos histéricos no domingo a tarde, também eram de uma estória incompleta. E que tossia e espirrava a minha própria poeira, misturada na sua.

Milla Reis

Notas de um Amor FracassadoOnde histórias criam vida. Descubra agora