Três Anos e Meio

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Três Anos e Meio

Lia acordou mais um dia disposta a fazer as mesmas coisas monótonas que sempre fazia nos fins de semana: ajudar a mãe a arrumar a casa e depois estudar. Desde muito cedo ela não vira seu padrasto, não fazia a mínima ideia de onde ele estava, todavia não estava a fim de descobrir. O dia se passou, entrou a noite, fora um dia ótimo, pôde ler a vontade sem que aquele homem atrapalhasse ou dissesse que ela estava lendo muito ou que estava desocupada. A pequena hoje se pergunta o motivo daquele homem odiar tanto a ver com um livro na mão, conhecimento é o que liberta as pessoas, certo? Então porque ele não gostava de vê-la estudando?

Quando a noite chegou, ele apareceu. Estava bêbado, e brigava com outro cara na porta de casa. Lia ficou com medo, e foi nesse dia que outra lembrança lhe ocorreu: estava com sua mãe, era um bebê ainda, devia ter seus três anos e meio de idade, sua mãe a colocava para dormir, quando de repente um homem invadiu o aposento, estava furioso com alguma coisa, mas a menina não descobriu, ela lembrou-se que aquele homem era o seu pai, o seu verdadeiro pai, o homem que devia ser seu herói, no entanto, o que fez não foi digno de aplausos. A mãe da pequena antes de colocá-la na cama, foi surpreendida com um puxão de cabelo — seu cabelo era longo e isso facilitou um pouco — os braços da mulher fraquejaram, a criança caiu ao chão, sentiu o impacto com o chão duro e começou a chorar. Sua mãe queria ajuda-la, mas ainda estava sendo puxada pelos cabelos até o fundo do lote. Lá havia um muro em construção, tijolos cheios de cimentos, a parede não estava lisa, e muito longe de estar terminada, mas mesmo assim ele não se importou e agora vem a pior cena da vida dessa protagonista. Bem, para você pode parecer simples, todavia, essa a única cena que a pequena Lia tem de seu pai e de sua mãe juntos, é a única cena que ela estremece ao lembrar e a única cena que ela chora ao ter que contar à alguém. É fato que quando o mal atinge nossas famílias nós ficamos mais furiosos do que se nos atingisse, e foi assim que Lia se sentiu ao ver seu pai batendo com toda a força a cabeça de sua mãe naquela parede mal feita.

"Isso é para aprender a me obedecer e me atender quando eu chamar" ele dizia. A menina viu sangue escorrer de uma das sobrancelhas da mãe e estremeceu, e na intenção de ajudar, caminhou até o pai e lhe chutou a canela, gritava com ele pedindo para parar, pois sua mãe chorava muito, mas ele não a atendeu, e fez o que parecia mais certo aos seus olhos: chutou a pequena para longe, ela bateu a cabeça no chão. Lia agora com onze anos não sabia se havia desmaiado ou não, mas a partir dali não se lembrava de mais de nada. Naquele momento que viu o padrasto bêbado brigando com outro cara, sua intenção foi proteger sua mãe, correu, a abraçou pela cintura e pediu para que não abrisse a porta, pois estava com medo. Atendendo à filha, a senhora não abriu a porta de imediato, porém minutos depois alguém esmurrava a porta para que fosse aberta. Lia foi obrigada à ir ao quarto e lá ficar, foi o que fez, chorando e suplicando ao Papai do Céu para que lhe ajudasse novamente.

"Ele quer roubar nossa casa, eu ouvi eles tramando!" ela ouviu a voz do padrasto, e então ele teve a ideia de ligar para a policia. A policia veio, e para dar queixa, levou consigo o padrasto e o tio de Lia. Passou-se horas, uma, duas, três, já ia entrando quatro quando o seu tio bateu-lhe a porta, às quatro da manhã, sozinho.

"Cadê ele?" sua mãe perguntou, aflita. "Eles pegaram ele" respondeu o tio. "disseram que ele estava foragido a muito tempo, então o prenderam". Lia não ficou feliz. Não a critique, ela tinha seus motivos, e para explicá-los, teremos que voltar um pouco antes.

A cidade é São Francisco, em Minas Gerais, fora ali que a pequena nascera, não tinha família ali, portanto não tinham ajuda. Eram somente os três: a pequena, a mãe e o irmão. Sua mãe era aposentada já que tinha catarata, mas em cidade pequena tudo era muito caro. O dinheiro que a mãe recebia do governo nunca dava para uma boa alimentação, Lia comia frutas uma vez no mês, comia carnes ou doces uma vez no mês, já houvera dias onde ela precisara pedir dinheiro para o padre da cidade, no entanto, quando o seu padrasto chegou, ele prometera que nunca mais elas iriam passar fome, e infelizmente estava vendo isso ali, quem iria comprar a comida para a casa quando faltasse? Lia tinha medo e ao mesmo tempo ódio de seu padrasto, mas admitia que sem ele iriam voltar a mendigar o pão e sofrer pedindo esmolas nas ruas para que pudesse comer uma maçã. Ela não estava errada.

Três meses depois que o padrasto havia sido apreendido — até então ninguém sabia o motivo, só sabiam que ele fora preso, e por mais que a mãe buscasse informações, não conseguia saber o motivo — as coisas em casa começaram a faltar. A carne que era constante no prato, começou a aparecer raramente, e então era hora de agir. A mãe não sabia o que fazer, economizava o máximo, mas nunca conseguia alimentar bem a casa e foi então que teve a ideia de começar a pedir dinheiro como fazia antigamente. Lia anos depois nunca conseguira contar esse episódio para alguém, ninguém da sua vida sabe que para conseguir comer bem ela teve que bater de porta em porta pedindo um pacote de arroz ou cinco reais. O tempo passou, na cidade pequena, a fama de que Lia era mendiga se alastrou, todos sabiam que ela pedia dinheiro nas casas dos outros, mas ninguém ajudava. No mês de janeiro do ano de 2012, aconteceu o inesperado: o padrasto foi levado para cumprir pena em Unaí. Era chance de Lia mudar tudo e se ver longe daquela cidade e tentar algo novo.

Decidiram então voltar para o Distrito Federal, onde morava o restante da família do padrasto, cujo até os dias atuais Lia chama de tios e tias e a avó, a única que conheceu. A casa de madeira onde moravam não era mais uma casa, a avó havia colocado os seus porcos ali, já que o chiqueiro que tinha na chácara era pequeno para os dozes animais que tinha. Lia e a mãe haviam ficado sem casa — seu irmão, já maior de dezoito anos decidiu sair de casa, morar na rua, ninguém nunca havia entendido o porque disso, mas ele havia desaparecido, não se tinha noticias dele, então eram só as duas.

A avó parecia uma pessoa generosa aos olhos de Lia, ela deixou que as duas ficassem em sua própria casa por quanto tempo quisessem até que construíssem a própria casa. Lia somente achou. Aqueles foram os piores dias da vida menina que agora se tornava adolescente.

E A Garotinha Chorou (Concluído)Onde histórias criam vida. Descubra agora