Dias Incessantes
Sexto ano, Ensino Fundamental II. Ninguém teve dias bons no Ensino Fundamental II, Lia não seria a exceção. Ela havia chegado no meio do ano, caíra numa sala onde parecia que ninguém gostava dela, e para completar, não entendia as matérias e os conteúdos. Tudo lhe parecia grego. Foram umas duas semanas até que começou a acostumar. Observadora e bem atenta como sempre fora, Lia começou a perceber quem ali eram pessoas que ela podia chamar de colegas e talvez pedir um lápis emprestado e quem ela definitivamente deveria esquecer a existência.
Um mês.
O dia na casa da avó começava cedo e terminava bem cedo também, a avó começou a exigir coisas, exigir que acordassem as cinco da manhã, exigir que dormissem cedo, exigir que a criança fosse sua quase empregada. A menina precisava levantar cedo, cozinhar, lavar, guardar, arrumar. Não que Lia e sua mãe reclamassem, no entanto, começava a sentir o peso da raiva que a avó tinha dela e da mãe, parecia que as duas causavam raiva e até mesmo ódio na avó. Ela não entendia o porque, no entanto não questionava, estava na casa dela, não tinha esse direito.
Dois meses se passaram e tudo estava ficando difícil, a avo parecia apertar mais as coisas, tinha dias que Lia não chegava a almoçar para ir à escola, e isso estava afetando muito a sua cabeça já muito sofrida. A menina pensava que um dia iria ser feliz, que ao voltar para onde crescera iria sorrir de novo, estaria longe de seu maior pesadelo e perto de sua família, então porque parecia tão difícil?
Uma antiga amiga apareceu na chácara da avó e as chamou para a igreja, bem, confesso a você que a mãe e a menina não quiseram ir, claro que não, elas precisavam de ajuda, e não de igreja, só que Lia se lembrou das noites que pedira ajuda ao Papai do Céu e Ele a atendera, das noites que chorou até dormir esperando um abraço de alguém e Ele foi seu consolo. Convenceu a mãe de ir.
Esse ponto da historia é crucial, ali Lia conheceu a coisa que mais lhe faria feliz em toda a vida e conheceu o que poderia chamar de refugio. Lia conheceu Jesus. O amor que Ele dizia ter por ela excedia tudo o que alguém fizera, excedia tudo o que alguém dissera ter. Lia conheceu a música, seu refugio — algo que mais tarde iria livrá-la de um suicídio. A música na vida da garotinha apareceu de uma forma tão simples e ficou lá eternamente. Ela não fez amizades no novo lugar que passou a frequentar, não de imediato.
Num certo dia na escola, ela se sentara no meio da sala, odiava sentar atrás e as carteiras da frente já haviam sido ocupadas. No meio de uma aula de historia alguém começou a rir. A professora passava um texto na lousa, e as risadas continuavam. A menina sentia que era com ela, quando estão rindo de nós, nós sabemos, certo? A professora precisou sair para atender a um telefonema e então todos os alunos se viraram para ver quem estava rindo e do quê. Foi então que alguém pegou no rabo de cavalo que Lia sempre fazia em seu cabelo e começou a rir. Todos entenderam. Riram mais ainda. Comparavam o cabelo da menina com uma palha de aço. Ela começou a odiar a escola.
A menina estava com raiva. Pegou um lápis para responder uma atividade, mas ele se quebrou em sua mão, tentou responder de caneta, a folha se rasgou com tamanha força colocada sobre ela. Quando a professora voltou para a sala de aula, todos se calaram e então ela se acalmou, mas chorava por dentro, chorava pois aquela foi a gota d'água para vir o diluvio. Depois daquele dia ela começou a se odiar e todos que diziam que ela era bonita estavam mentindo. Lia não confiava em si mesma, se achava feia, horrível, se achava a pessoa mais idiota e burra da face terra.
Foi nessa época também que ela começou a ver que o que vivera não era simples, todo aquele sofrimento não era comum. Quando conheceu uma menina da sua sala no sexto ano, percebeu que ela falava de sua vida e que não era igual a de lia. Percebia também que não era todo mundo que se achava tão desprezível, parecia que todo o mundo estava bem, menos a nossa pequena garota. Lia se desesperou.
Em casa as coisas continuavam as mesmas, ou piores. Então, houve um dia que sua mãe conversou com ela e decidiu que iriam construir a sua casa, não podiam mais ficar na casa da avó. Conversaram com algumas pessoas, e elas ajudaram a construir. Demorou três meses, no entanto, Lia era a garota mais feliz da terra quando pode entrar em sua própria casa. A casa tinha três cômodos, mas era delas! Era a casa que ela sempre sonhou!
Com alguma ajuda da igreja que frequentavam, elas conseguiam comer e até ganhavam roupas boas, só que Lia não se sentia bem com tudo aquilo, aos pouquinhos sua alegria foi acabando, foi esmorecendo, as amizades não conseguiam mais alegrá-la tanto quanto antes, todos os dias na escola era toda sorrisos, mas quando se despedia deles e ficava sozinha consigo mesma era a pior fase do dia. Não conseguia sorrir de verdade, vinha ficando brava, tinha ódio em suas veias e a cada dia aumentava mais. Ela não entendia o porquê, só achava estranho que quando estava na presença de outras pessoas era feliz, mas quando sozinha era extremamente triste. Precisava se entender. Foi então que quando ela achou que tudo melhoraria, desabou de novo.
A igreja por ser pequena, não conseguia ajudá-la mais com comida, então a mãe se lembrou de algo que faziam antigamente e voltaram a fazer: pedir nos mercados os restos de carnes que eles não usavam. A mãe chamava isso de restoio. A ação era simples: pedia ao açougueiro, se ele pudesse dar, dava se não, Lia ia embora. Mas ele não entendia isso. Um dia a menina chegou para pedir e o açougueiro lhe pediu um abraço em troca ou ele não lhe daria. Um abraço não parecia tão mal assim, não é?
Um abismo chama outro.
Algumas semanas depois Lia era obrigada a dar beijos na bochecha, e logo depois vieram cheiros no pescoço... Lia era sujeita a essas coisas por não ter outra opção. A pobreza em sua vida sempre foi presente, a falta de algo e a tristeza por não ter a faziam triste e deprimida. Ela precisava fazer alguma coisa, estava passando o que passara anos antes, isso não podia se repetir, ela não poderia deixar que algo tão ruim lhe ocorresse novamente. Se sentindo na obrigação de fazer alguma coisa, Lia procurou um emprego. Ela tinha apenas doze anos, mas procurou um emprego. Emprego que a livraria de tudo o que mais odiava nessa vida.
Não foi tão fácil como ela pensou que seria. Ela limpava uma casa enorme pela manhã, para ganhar míseros cinco reais. Dava para comprar leite e biscoitos. Ela não precisava pedir mais. O tempo se passou, sua mãe também começou a trabalhar ali, lavando louças, já que as pessoas daquela casa vendiam marmita. Tinham muita louça e muita coisa para limpar. Um ano depois ela ainda trabalhava ali e sua mãe também. Ainda passavam necessidade, mas não era algo tão severo. Em 2015, sua mãe não aguentava mais trabalhar, estava cansada, ficava nervosa frequentemente e sempre estava com as mãos tremendo. Descobriu-se uma coisa que desabaria com a vida da nossa pequena família: o Mal de Parkinson.
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E A Garotinha Chorou (Concluído)
Kurzgeschichten"O estupro que Lia sofreu não causou somente dor física, ela sofreu depressão, tentou suicídio, se menosprezava e achava que tinha sido sua culpa, quando na verdade, o causador disso tudo dividia uma cama de casal com sua mãe." Um drama que te prend...