IV

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Não consegui pensar em muito mais depois que Gael saiu de casa para tentar reconquistar a ex-namorada. O marrom de seus olhos não desgrudava da minha cabeça. Sequer prestei atenção no filme. Assim que ele terminou, a única coisa que eu queria era que Amábile falasse sobre ele. Sentia-me uma criança, mas era verdade. Quando os créditos começaram a correr pela tela, Amábile acendeu a luz e se levantou.

— Hora do jogo da verdade. Mas antes, álcool... Estamos muito sóbrias para essa conversa. – Ela me deixou sozinha na sala por alguns instantes e depois voltou com uma garrafa de vinho aberta e duas taças.

— Acho que eu não deveria...

— Vai ser só uma taça. Eu cuido de você.

Eu peguei uma das taças e a assisti servir. O vinho desceu vermelho sangue pela taça em uma imagem bonita de se ver. Eu sabia que não deveria, mas até queria.

Em algum momento entre as taças minha visão ficou mais alegre, em cores diferentes. O mundo todo parecia outro. Até eu me sentia outra. Diga-se de passagem, quando passei no banheiro e me olhei no espelho, eu parecia mais bonita. Mais sensual. Mais parecida com Amábile do que comigo. Talvez fosse apenas o fato de ela ter colocado roupas dela em mim, como se eu fosse sua Barbie em tamanho real. Até maquiagem ela fez questão de colocar em meu rosto.

Amábile por sua vez estava rindo e cantando no sofá, divertindo consigo mesma. Era engraçado. Era isso que as pessoas faziam com seus amigos? Beber e rir... Se era, queria fazer mais vezes. Deitei minha cabeça no ombro dela, escutando-a cantar uma música que eu não conhecia. Eu me sentia bem, como nunca me senti na vida.

O braço de Amábile passou por sobre meus ombros e o calor dela era reconfortante. Tirei aquele momento para agradecer por não ter negado os convites dela. Então a mão dela virou meu rosto em sua direção. Antes que eu pudesse entender, ela já estava me beijando.

Talvez em virtude do álcool, talvez pelo fato de eu nunca ter beijado, demorei a afastá-la. O gosto do vinho ainda estava em sua língua e não era ruim... Mas não estava certo. Algo em mim não estava confortável... Quando empurrei seu ombro para longe, ela me olhou curiosa.

— O que foi?

— Eu não sou lésbica... – Minha voz saiu mais aguda e mais arrastada do que eu queria. Será que eu estava ficando bêbada?

— Não tem problema. Eu também não. Só quero fornicar um pouco.

— Fornicar?

— E eu que sou a burra... Fornicar, sexo, buceta com buceta, bora? – Ela avançou em minha direção para me beijar de novo, ao que eu desviei.

— Eu... – Amábile revirou os olhos, percebendo minha negativa não expressada em palavras, e se jogou de volta no sofá.

— E você se pergunta por que ainda é virgem... – Eu não me perguntava. Aliás, eu sabia as verdadeiras respostas àquela afirmação e Amábile não gostaria de ouvir. Ninguém gostaria. Ninguém ouvia de qualquer forma. Ninguém nunca ouviu – Prefere com o Gael junto? Eu posso conseguir isso.

— N-não...

— Ah, para. Você deve ter ficado toda molhadinha quando o viu. – Afastei-me de Amábile, ofendida, ficando de costas. Não pelo beijo, mas pelo seu comentário. Esse era um dos motivos pelos quais não ter amigos não era um problema para mim. As pessoas nunca entendiam. Diziam merda uns aos outros sem pudores. – Não seja pudica. Vai ser gostoso, eu prometo.

Ela se aproximou, massageando-me os ombros. Meu corpo ficou rígido. Medo correu pelo meu sangue.

— Não! – Mexi o ombro para que ela me soltasse.

— Bom, então vai ficar virgem para sempre, é isso que você quer? Eu não me importo mesmo.

—Eu não sou virgem. – Minha voz saiu baixa. Eu estava falando mais para mim do que para ela, pois não queria que ela realmente escutasse. Mas o álcool estava latejando dentro de mim, trazendo de volta coisas que eu queria esquecer.

— O que você disse?

— Eu não sou virgem.

Essas são as coisas que eu sabia: minha mãe traiu meu pai, o que gerou o nascimento de, Luther, meu meio-irmão. Meu pai descobriu e a abandonou. Aos dois anos, fui abandonada por consequência.

Meu padrasto abusou de mim por dez anos. Ele era tão doente que forçava meu meio-irmão a fazer o mesmo. Os abusos duraram até Luther conseguir se opor aos abusos. Ele até tentou me proteger, mas meu mundo todo já estava destruído. Nossa casa virou um campo de batalha. Tomás alegava ser apenas a adolescência como forma de alienar minha mãe de seus filhos. Se contássemos a alguém, Tomás a mataria.

Eu não confiava em ninguém. Também não haveria como. Confiança exige segurança e essa é uma palavra que eu jamais conheci. O único lugar seguro que eu conhecia eram meus desenhos. Eram minha válvula de escape até que eu atingisse a maioridade e fugisse para longe.

Viva ou morta.

AmábileOnde histórias criam vida. Descubra agora