O plano de Gael era trabalhoso. Envolvia uma explosão. Envolvia a destruição da minha própria casa usando o gás de cozinha. Era perigoso, mas alguma coisa em mim estava acesa. Existia algo até poético no plano: eu destruiria tudo que me fez mal. Junto ao meu padrasto, destruiria o símbolo de todos aqueles anos de abuso. De ambos, só restariam cinzas.
Contudo, precisava ter certeza de que ninguém mais estaria em casa além dele. Já bastaria destruir tudo que minha mãe e Luther tinham, não precisava também matá-los. Meus dias, a partir de então, se resumiam em parte em fazer anotações sobre as rotinas de todos. Longas páginas de anotações, até com as exceções...
A outra parte era gasta cada vez mais com Gael. Depois de incluí-lo no plano, ele se tornou ainda mais próximo. Apesar de curioso, nunca me forçou a falar sobre o motivo pelo qual queria me livrar de Tomás. Uma vez perguntou como ele era. Quando respondi que era um monstro, ele não questionou.
No mais, Gael queria saber quais eram meus gostos. Não eram muitos, mas mesmo assim demorou até que eu contasse que gostava de desenhar. Gael gostava de escrever, ele disse quando contei, e sempre quis aprender a desenhar para colocar no papel os lugares encantados de suas histórias.
A primeira vez que pediu, não deixei que olhasse meus rascunhos. Estava com vergonha, com medo de ele me julgar. A maior parte dos meus desenhos eram retratos do meu estado emocional. Mas ele não desistiu. Uma das tardes em sua casa, ele surrupiou meu caderno enquanto estava distraída.
— Desculpe por ter mexido nas suas coisas, mas você tem um dom. – Ele atrapalhou nossa conversa naquele dia. Amábile revirou os olhos, claramente desconfortável. Até mesmo com raiva. Eu não consegui ficar brava diante do sorriso que ele me direcionou, apesar de entender o que ele tinha feito.
Gael gostava dos meus desenhos, mesmo os mais sombrios. Toda vez que ia à sua casa, ele pedia o caderno e os olhava por horas. Em parte, eu ficava encabulada; sentia como se ele estivesse olhando por dentro de mim. Por outro lado, era como se algo em mim estivesse se reconstruindo aos poucos. Por dezessete anos, acreditei que nada em mim era bom... que ninguém jamais gostaria de mim.
Era mentira.
Amábile gostava da minha companhia. Gael gostava do meu interior.
Minha surpresa foi encontrar, um dia, um pequeno papel com o número do celular dele dentro do caderno. Amábile não deveria saber, ele pediu no bilhete. Ela ficaria brava, ele comentou em uma de nossas primeiras conversas eletrônicas.
Era bom passar minhas tardes com Amábile e minhas noites em trocas de mensagem com Gael. Ele estava no primeiro ano da faculdade. Tinha tirado um ano de folga entre o ensino médio e a faculdade, em parte porque estava esperando a Amábile se formar para os dois entrarem juntos, em parte porque precisava respirar um pouco. Ele mesmo tivera um ano conturbado, mas nunca quis falar a respeito.
Era fácil conversar com ele. Gostava de escutá-lo contando sobre suas histórias, seus personagens. Seus universos imaginários onde a mocinha derrotava o vilão e salvava o príncipe encantado... Mais fácil foi me apaixonar por ele. Não demorou muito até que os celulares ficassem de lado quando estávamos juntos, e muitos vezes, as mensagens de Amábile eram ignoradas, não por querer... Apenas acontecia.
Amábile estava mais uma vez se afundando em notas abaixo da média, o que provavelmente a acarretaria mais um ano de reprovação e a fúria de seus pais. Enquanto eu e Gael encontrávamos cada vez mais motivos para passar tempo juntos, ela se viu obrigada a fazer aulas particulares todas as tardes. Também não podia sair de noite enquanto não melhorasse as notas. Nosso contato era limitado a mensagens e as poucas vezes que seus pais deixavam que eu a visitasse.
Apenas a situação de cativeiro educacional, como ela chamava, já era o bastante para deixá-la irritada. Descobrir que eu dividira um sorvete de menta com gotas de chocolate com seu irmão foi o estopim para sua explosão.
— Qual é o seu problema, garota? Acha mesmo que vai me usar desse jeito, sua vadia? – Ela não se deu ao trabalho de mostrar seu desagrado. Ela o deixou bem claro quando me empurrou contra a parede assim que entrei em sua casa acompanhada de Gael. – Eu posso te matar sem deixar nenhum vestígio...
— Amábile, calma. – Gael entrou entre nós duas, mas sua irmã continuou avançando em minha direção. Em minha defesa, caminhei para trás, saindo da casa. Os olhos dela pareciam querer me matar. Não apenas querer... Amábile iria me matar.
— O que foi que eu fiz?
— Você não sabe? Quer mesmo que eu diga? – Deveria ter respondido qualquer coisa. Deveria ter impedido que ela continuasse jorrando palavras. Talvez isso teria evitado o que veio depois. – Você se aproximou de mim só para dar sua buceta arrombada para o meu irmão. Se você tá afim de dar pra alguém, vai dar pro seu padrasto ou pro seu Lutherzinho. Eles com certeza vão querer te comer. O Gael não pega gente da sua laia.
Senti subindo. Senti um calor queimando-me a garganta e a cabeça. Era algo desconhecido por mim até então. Era como fogo. Queimou-me as veias... Forçou minha boca a falar. Não consegui controlar. Não sabia como...
— Você precisa de tratamento, garota. Você é louca. E não é uma louca legal.
— Cala a boca que eu não falo vadiês.
— Você é doente. Tem uma obsessão doentia por mim e por seu irmão. Gael nunca vai te querer e nem eu. Vai se tratar. Doente! – As palavras rasgaram pela minha garganta antes que eu percebesse seu significado. Quando me ouvi, Gael já tinha baixado o braço que estava entre nós duas e a mão de Amábile já tinha batido em meu rosto.
Com o rosto ardendo do tapa e virado para o lado, não vi a expressão de Gael, mas escutei seu suspirar desapontado e seus passos para longe, deixando-me a sós com Amábile, que ainda estava atônita quando a olhei.
Mais surpresa estava eu. Não apenas surpresa, mas decepcionada. Comigo, com Amábile, com todo o universo. As coisas estavam boas demais para ser verdade. Nada de bom acontecia comigo. Eu consegui estragar a primeira – e talvez única – coisa boa que os cosmos me deram.
— Desculpa, desculpa. – Minha voz se misturou a um choro dolorido. Não precisava de muito entendimento sobre amizade para saber que aquele era o fim da nossa. – Você é minha melhor amiga. Eu não pretendia...
— Vai embora. Não quero você perto de mim ou do meu irmão, nunca mais.
— Não achei que você ficaria tão brava. Foi só um sorvete, nada mais. Por favor, eu preciso de você – Esperei pela resposta, mas ela não veio. – Você tá me ouvindo?
— To te ouvindo; só não estou prestando atenção. Boa sorte com seu padrasto. Vocês dois vão virar cinzas – Ela bateu a porta na minha cara antes que eu pudesse dizer qualquer outra coisa.
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Amábile
Short StorySe eu tivesse que escrever sobre mim, sobrariam linhas. Só precisaria de uma palavra: invisível. Aos dezessete anos, havia pouco a se saber sobre alguém como eu. Em resumo, desenhos... e acabava nisso. Eu não tinha vivido muito e nem queria. A única...