VII

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Minhas lágrimas se tornaram em raiva no caminho de casa. Eu não estava errada, estava? O que havia de errado em sair com Gael? Por que Amábile reagira daquele jeito? Não podia ser minha culpa...

Durante toda a minha vida me senti culpada. Pelo abandono de meu pai, pois não fui o suficiente para que ele ficasse; pelos abusos de Tomás, pois achava que eu o havia provocado de alguma forma; pela relação conturbada que tinha com Luther, pois eu, irmã mais velha, não consegui protegê-lo.

Sentia-me tão culpada e ao mesmo tempo tão sozinha. Sem proteção. Sem um porto-seguro. Tão desamparada que mais de uma vez quis me matar. Em uma delas quase consegui, mas nem nisso fui bem sucedida. Nem a morte me queria. Eu precisava de ajuda, mas ela não veio. Ninguém nunca veio.

Meus atos foram etiquetados como rebeldia. Como alguém que está desesperado por atenção. O discurso foi martelado tantas vezes nos meus ouvidos – e nos de minha mãe – que em algum momento acreditei que tudo era só minha culpa.

Se era minha culpa, seria eu a resolver.

Sozinha.

Dizia que não precisava de ninguém, e achava que realmente não precisava, pois não tinha conhecido alguém que tivesse cuidado de mim. Todos me decepcionaram. Até mesmo minha mãe, que só não via o que acontecia, pois não queria acreditar. Não queria destruir mais um casamento.

E então Amábile aconteceu. Apesar de tudo, eu me senti querida, até mesmo protegida. Ela quis tomar uma atitude por mim , diminuir minhas dores, encontrar uma forma de me ajudar. E eu destruí isso.

Não.

Não podia ser tudo minha culpa. Eu não participei das decisões. Todas elas foram tomadas por mim. E quanto à Amábile, ela me atacou primeiro. Não tenho responsabilidade sobre os sentimentos dela por mim ou pelo irmão.

— PORRA!

Após o berro veio uma sensação de alívio, como se eu tivesse colocado para fora toda a raiva que tinha dentro de mim. Só então percebi que estivera desenhando sentada no chão do meu quarto. Garranchos e garranchos formavam a imagem de uma casa em chamas, com uma versão de mim assistindo a explosão. Se o desenho não era um sinal, o estado do meu quarto o era: eu tinha derrubado tudo. Quebrei, destruí... Libertei-me...

Meu calendário, sortudo, continuava pendurado na parede. Uma data circulada em vermelho. O dia seguinte era o dia. Era o dia de quebrar as correntes. Era o dia de lutar.

Eu não precisava de mais ninguém: eu sabia me defender.



Minha casa estava vazia na manhã do grande dia. Estava tudo conforme o planejado: à tarde, Luther estaria em seu treino de basquete, minha mãe no trabalho. Apenas Tomás estaria em casa. Meu álibi também: todos estavam avisados que eu estaria com Gael e Amábile. Era mentira, mas eles não sabiam.

Nos momentos finais de preparação, antes de sair e manter meu álibi, me dei o direito de salvar algumas coisas tanto de Luther quanto de minha mãe. Não poderia carregar muito. Algumas fotos, as baquetas de Luther, algumas quinquilharias... Coloquei o que consegui dentro da minha mochila. O plano inicial era salvar mais coisas. Levaria uma caixa para a casa de Amábile, mas com ela fora do plano, mais precisamente fora da minha vida, teria que improvisar.

Estava nos acertos finais quando a campainha tocou. Por um momento, congelei, mas respirei fundo. Talvez fosse apenas o carteiro, nada que atrapalhasse meu plano. Nada que estragasse meu álibi. Ainda sim, abri a porta temerária.

Era Amábile.

— Você precisa de um tratamento de raiva, sabia? – disse ela, com um sorriso sarcástico no rosto. Era sua forma de pedir desculpas e não havia o que eu pudesse fazer além de aceitar. Era só o que eu queria.

— Eu não preciso de tratamento de raiva. Eu preciso que as pessoas parem de me irritar – respondi e ela riu, dando uma piscadela carinhosa, quase orgulhosa. Provavelmente foi a primeira vez que a vi demonstrando carinho além daquele beijo.

Achei que pararia aí, mas então ela me abraçou apertado, como se ela própria não estivesse satisfeita com a cena. Seu abraço me deu força, me motivou a continuar. Se eu já estava decidida, com Amábile ao meu lado, tinha certeza que alcançaria meu objetivo.

Assim que o abraço terminou, a cena comovente se foi também, trazendo de volta a comum expressão de sarcasmo que eu tanto gostava ao rosto dela.

— Soube que hoje é dia de explodir uma casa. Ainda estou convidada? – perguntou, passando por mim para entrar.

— Não conseguiria pensar em outra pessoa para dividir esse momento.

Amábile correu os olhos pela sala. Era a primeira e última vez que veria minha casa.

— Se formos pegas, lembre-se: você é surda e eu não falo português.

— Você é uma pessoa peculiar, sabia? – disse eu, rindo.

— Fico feliz que notou.

AmábileOnde histórias criam vida. Descubra agora