QUATRO

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​Eu cheguei em casa um pouco depois das 6h da tarde. Minha mãe estava sentada na mesa da copa corrigindo provas e meu irmão brincando com um cubo mágico. Ele movia as cores do quebra-cabeça de um lado para o outro, deitado sobre o sofá. De todo jeito que fazia, não dava certo, então levava as mãos ao queixo, pensava e voltava a movimentar o brinquedo para ver se conseguia.
Minha mãe é professora de Literatura Francesa, o que explica muito sobre a postura altiva dela. Não é fácil para um estrangeiro, principalmente um brasileiro, alçar tal posto em Paris. Passei pela copa para ir até à cozinha pegar um copo de água. Ela simplesmente me olhou por sobre os óculos com uma expressão de curiosidade e disse: "até essa hora na rua?". Em seguida, passou uma das folhas da prova, me encarando fixamente, aguardando uma resposta. "Estava com minhas amigas", respondi. Peguei a água e fui para o quarto.
Assim são os diálogos em minha casa: troca de palavras monossilábicas, muita coisa subentendida e uma presumindo a intenção da outra. Não gosto de falar de minha relação com minha mãe. Acho que sempre vai parecer que estou puxando a sardinha para o meu lado ou me fazendo de vítima, mas a verdade é que nosso relacionamento nunca foi fácil.
​Meus pais se divorciaram quando eu tinha cinco anos de idade e meu irmão ainda era um bebê. Apesar de minha pouca idade, as cenas que levaram à separação não saem de minha mente. Dizem que as crianças não esquecem nunca e que são os adultos que têm memória fraca. Acho que é verdade.
​Lembro-me como se fosse hoje da tia Marisa entrando lá em casa.
​- Cadê a minha princesinha Sophie?!
​Tia Marisa era minha babá, uma latina de quarenta e poucos anos, seios muito fartos, que falava alto, usava roupas justas, batom vermelho e ria compulsivamente. Os brasileiros têm o costume de ensinar crianças a chamar professoras e qualquer outra pessoa mais velha de tia.
​- Sophie, a tia vai fazer uma sopinha para você e depois te colocar para ver desenho!
​Eu ficava a tarde e a noite com ela, enquanto minha mãe trabalhava. Meu pai sempre passava lá em casa quando eu estava sozinha com a tia Marisa. Nesse dia, lembro que ele chegou com um algodão doce para mim, me deixou em frente à TV, e os dois entraram no quarto de minha mãe.
​Isso acontecia frequentemente. Os dois se trancavam lá e, meia hora depois, meu pai ia embora. Então tia Marisa voltava a me dar atenção. ​Neste dia, minha mãe apareceu do nada, pois, devido a uma paralisação no metrô, não havia conseguido chegar ao trabalho.
Ela estranhou que eu estivesse sozinha na sala e foi até o quarto. Desse instante eu nunca me esqueço. Comecei a ouvir os gritos e o choro da minha mãe. "Cafajeste. Você é um cafajeste. Como pode fazer isso comigo dentro da nossa própria casa?"
​Em seguida, ouvi tapas e coisas quebrando. Minha mãe saiu do quarto puxando o cabelo de tia Marisa e meu pai tentando apartar a briga. Seminua, ela gritava "me solta, ai, ai, ai". Quando as duas se soltaram, tia Marisa vestiu sua roupa e foi embora.
​Minha mãe sentou-se no sofá, com as mãos no rosto, abaixou a cabeça e chorou compulsivamente. Meu pai sentou-se em frente a ela, mas não dizia nenhuma palavra. Ela estava desolada, parecia querer colocar o mundo de volta em seu lugar, mas não conseguia.
Quando, finalmente, conseguiu recuperar o fôlego do choro, com a voz cortando, conseguiu falar. "Não dá mais, Paolo. Não dá mais".
​Meu pai, mudo, apenas tentou consolá-la com as mãos.
​"Tira as mãos de mim... Tira as mãos de mim..." ela gritou, fuzilando-o com o olhar. Você acha que eu nunca vi as mensagens nos guardanapos? Você acha que eu nunca senti o perfume das vadias na sua roupa? Que eu nunca vi a marca de batom no colarinho da sua blusa?"
​Ela voltou a abaixar a cabeça e um breve silêncio se fez entre os dois. De maneira calma, compassada e dotada de razão, continuou o discurso, dessa vez de maneira suave.
​"Sabe, Paolo, eu sei que não existe homem fiel. Até acho que todo homem é canalha, mas eu esperava pelo menos que você fosse um canalha honesto".
​Minha mãe chorava.
​"Paolo, se você me traísse escondido, como sempre fez, o amor que sinto por você até poderia suportar. Mas isso que você fez foi demais. Dentro da minha própria casa, perto dos nossos filhos, em cima da minha própria cama?! Isso não é traição. Isso é humilhação, e o amor é um sentimento que não aceita desaforo".
​Meu pai esfregava as mãos nas coxas, olhando fixamente para os pés. Minha mãe se levantou do sofá, dessa vez com a voz firme e a postura altiva de sempre.
​"Eu quero você fora da minha casa, eu quero você fora da minha vida, eu quero você longe dos meus filhos".
​Nesse momento, meu pai chorou. Nunca tinha o visto chorar. Ele tentou esconder as lágrimas entre os dedos e saiu de fininho. Não pediu perdão, nem disse que nos amava. Simplesmente virou as costas e foi embora para nunca mais voltar.
​Depois desse episódio, minha vida nunca mais foi a mesma. Minha mãe nunca mais foi a mesma. E desse dia em diante, os monólogos sempre fizeram parte de nossa casa.

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