Encaro minha tia durante alguns segundos confusos, sem saber ao certo o que dizer ou como reagir, enquanto meu cérebro processa o que acabo de ouvir, registrando as informações.
Certamente, certamente, devo ter entendido errado, pois eu juro que escutei tia Dione dizer que...
— Diga alguma coisa, pelo o amor de Deus! — ela exclama num rompante, me puxando à força de meus pensamentos. — Não fique calado, isso me deixa agoniada.
Volto o olhar para vovó e tia Selma, tão silenciosas quanto eu. Percebo que nenhuma das duas me encara nos olhos, e ambas estão de cabeças baixas, fungando discretamente.
Minha boca está aberta e ofego sem parar, tentando absorver o que acaba de ser revelado, como se de certa forma o oxigênio pudesse me esclarecer tudo. Passo as mãos no rosto, enxugando as lágrimas que se acumulam no canto dos olhos, e volto a prestar atenção em tia Dione, em busca de explicações.
— Isso é uma brincadeira, né? — disparo, rindo sem humor algum. — Porque se for uma piada, não tem graça nenhuma, viu?
Tia Dione, mesmo aparentando estar incrivelmente abalada, se recompõe e volta a falar.
— Tu acha mesmo que a gente ia brincar com uma coisa séria dessas, Mateus?
Ao invés de responder, simplesmente viro a cabeça para o lado e fixo meu olhar no rodapé no canto da parede, batendo o pé descontroladamente e com as mãos suando frio.
— Acha? — tia Dione pressiona, ainda me encarando firme.
— Não. — Minha voz mal passa de um sussurro fraco, e não sei se ela ouviu minha resposta.
Um silêncio opressor toma conta do ambiente, e não consigo fazer nada além de tremer feito um condenado passando frio. Até que, de repente, a verdade me assola e me dou conta do que está acontecendo, caindo de cara na realidade.
— Eu vou mesmo pro Sul? — pergunto, tentando não vacilar a voz. — Eu vou mesmo viver com uma estranha?
— Sim, meu filho — vovó Lúcia responde. — Vai sim. E ela não é nenhuma estranha. Ela é a sua mãe.
— Uma mãe que me deu as costas quando eu ainda era um bebê! Nunca conversei com ela, nunca lhe dei um abraço. Não sei nada sobre ela! Então, sim, para mim ela é uma estranha! Eu não a conheço, e nem quero conhecer.
— Mateus, eu sinto muito, mas a decisão já foi tomada — tia Dione diz, sem rodeios, embora ainda muito abalada. — Pensamos em conversar com você a respeito e deixar que você mesmo escolhesse se queria ir ou não para o Sul, mas esse seu comportamento ultimamente não nos deixou opção.
Parece que alguém derrubou um balde de água gelada em cima de mim.
— Por quê? Por que vocês estão fazendo isso comigo? — indago, fazendo força para manter a voz audível.
— Porque a gente não sabe mais o que fazer — tia Selma desabafa, puxando uma cadeira e sentando-se à mesa conosco. — Juro que a gente tentou ao máximo, Mateus, mas parece que só isso não basta.
A incredulidade que eu sentia agora há pouco deu lugar à confusão. Do que ela está falando?
— Quer dizer o quê com isso? — Eu pergunto, um pouco mais agressivamente do que pretendia.
— O que eu quero dizer é que não sabemos mais o que podemos fazer por você! Já tentamos de tudo, mas parece que você prefere se isolar e se afogar sozinho do que aceitar nossa ajuda.
Dou um leve sobressalto na cadeira, como se tivesse levado uma bofetada na cara, surpreso pelas palavras de tia Selma.
— Aceitar ajuda? — repito o que acabo de escutar, tentando extrair algum sentido. — Por que é que eu preciso de ajuda? Posso saber?
Mas no exato instante em que digo isso, sei que não preciso de uma resposta, porque já tenho total consciência dos fatos e consigo reunir as peças para entender esse quebra-cabeça: elas três com toda certeza estão cansadas de me ter aqui e estão procurando por um motivo, qualquer que seja, para me expulsar de casa. E agora, aparentemente, encontraram a desculpa perfeita! Só pode ser isso. Querem se livrar de mim!
— Perguntar o porquê de você precisar de ajuda é mais um sinal claro de que você realmente tá precisando de ajuda, Mateus — tia Dione responde no lugar da irmã, cansada. — Parece que só tu não enxerga isso.
— Não enxergo o quê? Me diz, então, já que vocês sabem de tudo!
— Eu não disse que a gente sabe de tudo...
— Mas estão agindo como se soubessem! — disparo, sentindo a raiva começar a se inflamar dentro de meu peito. Minha frustração é tão grande que parece se alastrar dentro de mim, como pólvora sendo consumida por uma centelha de fogo e rapidamente se tornando um incêndio de proporções desastrosas.
— Mateus, se acalme! — vovó Lúcia pede, com a voz trêmula, porém altiva. — Escute o que suas tias têm pra dizer!
— Eu não quero ouvir mais nada! — exclamo, cruzando os braços e me jogando com tanta força nas costas da cadeira que quase tombo para trás.
— Mas você vai! — tia Selma retruca, e posso sentir que um conflito se forma dentro dela por conta do tom frágil de sua voz, como se ao mesmo tempo ela sentisse tristeza e raiva (que é basicamente o que também sinto nesse momento). — Você não pode ficar aí, todo emburrado, com raiva da gente, sem nem ao menos nos dar a chance de explicar, de falarmos nossos motivos.
Ouvir aquilo me enche de mais fúria ainda. Balanço a cabeça, incrédulo, dando um riso curto de desdém que mais parece um bufo de um touro.
— Eu não preciso de explicações porque já sei o motivo! — eu esbravejo. — Eu entendo suas razões bem demais, até. Acontece que vocês se encheram de mim e agora querem me jogar para morar lá onde Judas perdeu as botas com a mulher que me pariu e me abandonou um ano depois de eu nascer! É isso que tá acontecendo!
As expressões de minhas tias e de minha avó transmitem o mesmo choque: as três estão completamente sem reação, estupefatas, como se não acreditassem no que acabaram de ouvir. Parece que uma nuvem carregada de tensão e amargura se formou e está pairando sobre nós, tamanho é o desconforto que rapidamente se instaura. O clima fica pesado, como se o menor ruído pudesse nos destruir, estilhaçar. Fico em silêncio e fecho os olhos, puxando ar para os pulmões e torcendo para que tudo isso seja apenas uma fantasia que criei na minha mente conturbada.
— A gente entende que você esteja com raiva — tia Selma fala de maneira gentil, levando por água abaixo minha teoria de que tudo era apenas um devaneio —, mas, por favor, nos deixe falar. A gente vai explicar tudo que você quiser.
Me sinto tão furioso, mas estou tão deprimido com toda a situação, que não faço ideia do que dizer ou como reagir. Passado o choque surpreendente da revelação, não sei qual rumo seguir, não sei como devo agir.
Simplesmente não sei.
Não sei de nada.
Então dou de ombros e aguardo por aquelas explicações, torcendo para que elas sejam o suficiente para cessar a minha angústia.
Tia Dione pigarreia, limpando a garganta, e começa a falar.
— Tudo começou depois da... do... — Ela olha para tia Selma e depois para vovó, em busca de ajuda para conseguir concluir a frase. — Bem, depois do que aconteceu com o Pedro.
Depois do suicídio do Pedro, é o que ela realmente quer dizer. Penso em corrigi-la, apenas para implicar um pouco mais, mas sei que de nada adiantará. Portanto, deixo que ela continue a falar.
— Depois do acontecido, a gente notou o quanto tu ficou abalado, devastado, e isso é totalmente normal. É compreensível que você reaja ao luto dessa maneira, por isso não fizemos tanto alarde e preferimos te deixar sofrer a perda do seu amigo da sua própria forma, sem interferir.
Tia Selma assente com a cabeça, concordando com a irmã, e complementa:
— Partiu nosso coração te ver triste daquele jeito, calado, isolado, jogado pelos cantos sem conversar com ninguém, sem abrir a boca ao menos pra dizer um “oi” que fosse, mas a gente tentou a todo custo acreditar que aquilo era coisa de momento, que era passageiro, e que depois você fosse voltar a agir normalmente, que você fosse superar e seguir em frente.
Eu ouço tudo, absorvendo cada palavra, tentando compreender o real motivo de eu estar sendo mandado embora. Até agora, pelo que eu entendi, estou sendo enxotado do lugar onde nasci, cresci e passei dezessete anos da minha vida medíocre apenas por não ter superado que meu único amigo havia se matado! É inacreditável.
— Entendi — eu falo, enraivecido. — Vocês estão me expulsando porque não querem mais lidar comigo e com meus problemas, então ao invés de tentar me ajudar ou fazer algo a respeito vocês decidem me jogar fora, como se eu fosse um saco de lixo fedido ou um cachorro de rua pulguento!
— Não diga uma baboseira dessas, menino! — Vovó Lúcia me repreende, chocada, obviamente fazendo força para não cair aos prantos. — Não é nada disso que tu tá dizendo! Não é nada disso que tu tá pensando! Tente entender!
— Eu já entendi, eu já entendi tudo! Não preciso ouvir mais besteira nenhuma!
— Não, você não entendeu — tia Dione diz, claramente forçando uma calma e tranquilidade inexistentes, tentando se recompor e fazer com que a conversa flua num tom mais agradável e menos agressivo, levantando as mãos como se tivesse intenção de apaziguar os ânimos. — Você está usando sua raiva e a sua frustração para ter um motivo para se fazer de vítima, para não ter que encarar a realidade. Você prefere culpar a gente e nos odiar, porque isso é mais fácil do que se colocar no nosso lugar e tentar entender um outro lado da história que não seja o seu. — Ela diz isso um tanto severamente, abandonando a tentativa de parecer relaxada, o que me deixa abismado, sem palavras. Não sei o que dizer, muito menos o que pensar. — A verdade é dura, é difícil, mas mesmo assim precisamos dela. Às vezes dói falar, e dói mais ainda ouvir, mas realmente precisamos dela. — Minha tia deixa de lado sua personalidade durona e dirige seu olhar triste, porém gentil, para mim. — Eu sei, eu entendo que você tá chateado e confuso com tudo isso, meu sobrinho. Eu gostaria muito que houvesse um jeito fácil e menos doloroso de fazer tudo isso, mas não tem como, infelizmente. E é um direito seu estar com raiva da gente agora, mas isso não é justificativa pra tu não nos dar a chance de te fazer entender porquê tomamos essa decisão.
Eu me retraio em minha cadeira, querendo me afundar nela, torcendo para que o objeto me devore e me faça desaparecer dali, sumir aos olhos de todos e ressurgir em algum lugar mais tranquilo, repleto de paz, onde nenhum problema será capaz de me tocar, onde nada, nem ninguém, poderá me fazer mal outra vez.
As palavras de tia Dione penetram fundo em minha alma, mutilando todo o meu ser, dilacerando meu espírito com um milhão de cortes afiados e dolorosos. Será que ela está certa? Será que ela está com a razão quando diz que eu prefiro ficar me fazendo de vítima do que enfrentar meus problemas de frente?
Quanto mais penso naquilo, pior eu fico. No entanto, ao parar para refletir a respeito, deduzo que ela não pode estar mais enganada.
Eu não me faço de vítima.
Eu, de fato, sou uma vítima!
Meu melhor amigo está morto!
Minha mãe me abandonou!
Não sei quem é o meu pai!
A única família que conheço está desesperada para se ver livre de mim!
Como é que eu poderia não ser uma vítima?
Coisas horríveis acontecem comigo o tempo todo!
Coisas horríveis vêm acontecendo comigo desde o momento que nasci, para falar a verdade, e continuam até hoje.
Ela não entende.
Nenhuma delas entende.
A minha dor é tão grande, tão poderosa... Às vezes sinto que nunca mais serei capaz de ser feliz de novo. Tento olhar para a frente, visualizar um futuro para mim, mas ao fazer isso tudo que encontro é mais dor, mais sofrimento, uma porção a mais de tristeza para suportar. No meu ponto de vista, viver uma vida sem expectativas é o mesmo que estar vegetando numa cama de hospital sem nenhuma chance de recuperação: você está ali, continua existindo oco dentro de uma casca e respirando, mas a troco de quê? Nada nunca irá melhorar, mesmo. Porque no fundo você sabe que não existem mais esperanças, e tudo que deseja é a morte, um descanso definitivo.
Acho que cheguei em um ponto da minha vida em que a morte passou de um medo intenso para uma esperança desesperada.
Isso me deixa tão assustado.
Não gosto de pensar nesse assunto, mesmo que seja desse jeito que eu me sinta às vezes.
Quando estou sozinho com meus fantasmas, eles sussurram nos meus ouvidos que morrer é a única saída para resolver tudo.
Mas eu tento não lhes dar ouvidos, embora às vezes seja difícil. Em momentos como esse, no entanto, é árduo tentar manter o otimismo.
— Eu não quero ir embora — sussurro, com a mente trôpega e fragilizada. — Essa aqui é a minha casa.
Vovó Lúcia suspira e vejo seus ombros frágeis e velhos tremerem quando ela diz:
— Essa sempre vai ser a tua casa, cabritinho. Mas eu e suas tias estamos pensando no que é melhor para você, mesmo que não enxergue isso.
— Como é que me mandar pro Sul vai me ajudar em alguma coisa?
— Pra falar a verdade, a gente não sabe como você vai se adaptar a essa nova vida, ou o que vai acontecer daqui pra frente. Mas, Mateus, sabemos de uma coisa: permanecer aqui, nesse lugar, nessa casa, não vai ser bom pra você. Esse ambiente não te faz bem. Aqui, você vai viver sempre cercado de memórias ruins e nunca irá superar o que te atormenta. — Tia Selma diz num sussurro quase inaudível. — Já tá bem claro para todo mundo que você não está feliz aqui: você vive enfurnado dentro do quarto, não sai para lugar nenhum, não faz novos amigos, não conversa mais com a gente como antes, nos trata com grosseria. — Ela faz uma pausa, recuperando o fôlego e encarando as próprias mãos inquietas cruzadas sobre a mesa. — Você tem todos os motivos do mundo para estar infeliz, Mateus, mas isso não te dá o direito de descontar suas dores em cima da gente. Não somos seus sacos de pancadas. Desde que você nasceu, sempre nos dedicamos a você. A gente fez de tudo por você porque nós te amamos, e tentamos todos os dias, durante todos esses anos, suprir as necessidades que você tem de ter um pai e uma mãe ao lado. — Uma lágrima escorre pelo seu olho, o que me faz passar o dedo rapidamente pelo rosto apenas para garantir que não estou chorando. — A gente te educou, deu o que comer e vestir. Demos o nosso máximo. Até hoje, fazemos o possível e o impossível para te deixar feliz. Nós três amamos muito você.
Não digo nada. Apenas permaneço de braços cruzados, revezando meu olhar carregado de rancor e desprezo de uma para a outra.
Ao perceber que não estou nenhum pouco comovido, tia Dione dá prosseguimento ao discurso da irmã:
— Não sabemos mais o que fazer, Mateus. É isso. Não sabemos como te ajudar. Você está nos afastando, nos transformando nas suas inimigas, e isso dói tanto. Dói ver a falta de afeto nos seus olhares, dói sentir o desgosto que você transmite pra gente quando estamos por perto. Toda vez que alguma de nós tenta se aproximar, para conversar ou tentar te oferecer algum conforto, você vem com quatro pedras nas mãos, pronto pra nos atacar. Não aguentamos mais isso, e nem merecemos receber esse tipo de tratamento. — Minha tia funga, esfregando o nariz com as costas das mais. — A gente não consegue lidar com seu desprezo, não sabemos mais como lidar com você. Sinto muito por isso. Sinto muito por não sabermos mais o que fazer por você.
— Já conversamos, inúmeras vezes, sobre procurar ajuda profissional para você — tia Selma confessa, me surpreendendo. — Pensamos em ir atrás de um psicólogo, um psiquiatra, um terapeuta, ou qualquer outro tipo de especialista que fosse, que pudesse te ajudar a melhorar. Até entramos em contato com alguém uma vez, e ficamos esperançosas durante um tempo...
— Mas essa esperança foi por água abaixo, porque a gente sabia exatamente como você reagiria caso disséssemos que tínhamos arranjado um médico especialista pra te examinar. — Tia Dione fala isso me encarando com um olhar penetrante, como se de certo modo me desafiasse a contradizê-la. Embora eu tenha muita vontade de fazer isso, fico quieto, porque ela está coberta de razão. Se alguma delas tivesse sequer mencionado que marcaram uma consulta para mim com um desses “ médicos ”, eu com certeza iria pirar na hora e soltar os cachorros em cima delas, sem me importar com as consequências.
Meu rosto fica quente e cerro os punhos com força, me sentindo totalmente tomado pela raiva.
— Eu não acredito que vocês fizeram isso! — Disparo, praticamente aos berros. — Não acredito que vocês tentaram mesmo me empurrar para esse tipo de gente! Eu não sou louco!
Tia Selma suspira e esconde o rosto entre as mãos, enquanto vovó Lúcia apenas abaixa a cabeça, ao passo que tia Dione responde simplesmente:
— Ninguém aqui acha que tu é louco, Mateus. Longe disso, menino!
— Então por que vocês procuraram esses médicos aí, hein? — questiono, dando bastante ênfase à palavra “ médicos ”, carregado de ironia.
— Porque é tão importante zelar da saúde da sua mente quanto zelar da saúde do resto do seu corpo. Todo o mundo precisa cuidar dos dentes, da visão, da pele, da alimentação. Mas de que adianta tudo isso se esquecemos de cuidar também da nossa saúde emocional? Ela é tão importante quanto todo o resto.
Olhando por essa perspectiva, tenho que admitir que minha tia está novamente certa, mas é claro que não direi isso em voz alta; não irei lhe dar esse gostinho.
Não.
Ao menos essa vitória será minha.
— No final das contas, decidi deixar isso pra lá, porque eu tinha certeza absoluta que você não iria aceitar — tia Dione conclui.
E não aceitaria mesmo. Se alguém tivesse chegado para mim e fizesse a leve sugestão de que eu precisava de um psicólogo, eu teria reagido da pior maneira possível. Sei disso porque conheço muito bem meu lado raivoso, já que ele toma conta de mim na maior parte do tempo. Tenho total consciência de que eu teria me transformado num lunático escandaloso e descontrolado se minha família me revelasse que pretendia me levar para fazer terapia, acompanhamento psicológico ou seja lá qual for o termo correto que usam para nominar essas bizarrices. Ao desconsiderar a ideia, tia Dione nos poupou de conflitos e dores de cabeças maiores, sem mencionar que com toda a certeza teve que lidar com a culpa por, de certo modo, “ ter me negado ajuda ”, além do fato que eu jamais iria falar abertamente sobre meus problemas pessoais com uma pessoa estranha.
— Se vocês pensam que isso é o bastante para me fazer perdoar vocês, saibam que não é — disparo. — Nenhum pouco. Isso não melhora em nada essa situação. Vocês me traíram. Vocês tomaram uma decisão pelas minhas costas, sem nem ao menos me consultar, ou pelo menos ter conversado comigo a respeito antes...
Vovó Lúcia balança a cabeça, desgostosa, e faz um gesto agitado com as duas mãos, indicando que quer que eu pare de falar.
— Como eu e suas tias podíamos conversar com você? — ela questiona, deixando de lado a tristeza de minutos atrás e adquirindo uma postura mais branda, quase desafiadora. — Como a gente podia conversar contigo, se toda vez que uma de nós tentava se aproximar você se calava, se fechava? Deus sabe como eu tentei, Mateus, mas de nada adiantou. Você preferiu se esconder no seu quarto e guardar suas dores para si ao invés de compartilhar com nós, que sempre te apoiamos e estivemos do seu lado. Acho que você nunca nem parou pra pensar no quanto a sua dor, o quanto o seu sofrimento, também afeta e machuca a gente, não é?
Me encontro sem argumentos diante desse desabafo. Nunca pensei que minha família pudesse ser tão observadora dessa maneira, ao ponto de perceber com tamanha precisão tudo que venho enfrentando nos últimos meses. Passei tanto tempo olhando para o meu próprio umbigo e me lamentando por conta da minha infelicidade que nunca, jamais parei para pensar no que vovó ou minhas tias sentiam em relação àquilo tudo. Deve ser horrível ver alguém que você ama e se importa se afogando num poço de infelicidade e não poder fazer nada para ajudar, ficando assim impotente e com o peso da culpa no peito.
Eu entendo isso, mas também entendo que não tenho obrigação nenhuma de ficar pensando nas feridas dos outros quando tenho que cuidar e dar atenção às minhas próprias. Não sou responsável pelo bem-estar dos outros. Sou responsável por tudo que diz respeito a mim. Somente, apenas e exclusivamente a mim.
Como não dou nenhuma resposta, vovó fala por mim:
— Não, é claro que você não parou por um instante sequer para pensar a respeito disso. Você não fez isso porque você pensa que apenas a sua dor importa, que apenas o seu sofrimento importa. — Ela balança a cabeça, desapontada, e alguns fios de cabelo branco começam a cair sobre seus olhos leitosos. — Mateus, entenda uma coisa: seus problemas não são maiores do que os de ninguém! Pode até ser que as outras pessoas enfrentem outros tipos de dificuldade, que lutem outros tipos de batalha que para você possam parecer mais simples. Mas isso não anula o fato de que elas também têm problemas, que elas também sentem tristeza e medo, igualzinho à você! — Minha avó enruga a testa, salpicadas com manchas marcadas pelo tempo. Seu olhar, que ainda há pouco estava um tanto rígido, adquire agora um semblante gentil, amoroso, e ela prossegue a conversa com seu típico tom de voz maternal: — Só porque você está se sentindo mal não significa que as pessoas ao seu redor estejam bem. Muito pelo contrário. Você pode até pensar que tudo está perfeito na vida dos outros e que somente a sua está ruim, mas a realidade é que nem todos estão felizes, também. Você não é a única pessoa no mundo que está enfrentando dificuldades.
— A mamãe tá certa, Teus — tia Dione diz, fungando. — Quando estamos tristes, temos a mania de pensar que só a gente sofre e que o resto do mundo está feliz e colorido, enquanto o nosso fica cada vez mais cinza e triste.
— E claro que não é assim que as coisas são na vida real — tia Selma fala, com a cabeça baixa e esfregando os polegares um no outro nervosamente sobre as mãos juntas cruzadas em punho. — Não é só porque eu estou na pior que você está na melhor. Às vezes, você e eu estamos passando por coisas difíceis, mas não conseguimos enxergar isso porque estamos ocupados demais lidando com nossos próprios demônios para conseguirmos olhar para os problemas que o outro enfrenta. E se não pudermos ao menos tentar ver a dor do outro, não conseguimos enfrentar os demônios.
Vovó Lúcia ofega, chocada, e dá um forte tapa nas costas de tia Selma.
— Ai, misericórdia, mainha! Pra quê isso, meu pai do céu? — Minha tia grita.
— Pra ver se assim tu aprende a não ficar falando o nome do coisa ruim aqui dentro de casa! — Vovó Lúcia dispara, benzendo-se diversas vezes com os olhos fechados. — Perdoa, Senhor! Vai afastando todo o mal dessa casa, expulsa toda a maldição que aqui habita, em nome de Jesus!
Tia Dione e eu trocamos olhares cúmplices, fazendo força para não rir, enquanto tia Selma exclama indignada:
— AGORA FOI QUE DEU A MULESTA MESMO, EU HEIN!
Vovó Lúcia encara a filha com uma expressão feroz.
— Baixe seu tom de voz pra falar comigo, Selma Maria! Eu não sou suas “ pariceiras ” não, viu? Eu ainda sou a tua mãe, posso te dar umas palmadas das boas. Tô velha mas ainda não tô morta!
— Pelo o amor de Deus, mainha, “ demônios ” é só uma expressão nova que esse povo descolado de hoje em dia arrumou para dizer que têm “ problemas ”. Entendeu?
— Hum, entendi. Pois a partir de agora pode começar a chamar os problemas de problemas. Essa gente inventa cada coisa que só Jesus na causa pra ter misericórdia!
Não dá outra: eu começo a rir. Segurar a gargalhada numa situação dessas é inevitável, e logo vovó e minhas tias começam a dar risadinhas também. Entretanto, o momento não dura por muito tempo. O clima de humor e descontração rapidamente se dissipa, se vai tão veloz quanto veio. A tensão começa a jogar suas teias sobre nós novamente, nos prendendo.
Começo a reproduzir em minha mente mais uma vez tudo que já foi dito até agora, do começo até o momento presente. Cada palavra proferida ecoa na caverna que é a minha mente.
Quanto mais paro para pensar, com mais raiva fico. É tanto ressentimento que mal cabe em mim, e o rancor se pondera de mim.
Para elas, é muito fácil falar todas essas coisas, vir com esse discurso de que “ eu não sou a única pessoa a sofrer em todo o mundo ”, porque elas não estão no meu lugar. Não são elas que sentem o que eu sinto. Não são elas que carregam o fardo que eu carrego. Não são elas que suportam essa dor terrível. É muito fácil falar sobre qualquer tipo de dor que seja quando não é você a pessoa que está sentindo. Julgar é simples porque você não faz ideia do que a pessoa enfrenta, de fato. Você pode até chegar a ter uma idéia, pode chegar a ter uma mínima noção do tamanho do desastre, mas nunca irá compreender totalmente o que se passa.
Ao chegar a essa conclusão, penso seriamente em dizer o que acho realmente sobre isso tudo, mas a parte racional do meu cérebro insiste em me manter na realidade e dizer de que não adiantará de nada debater, nem discutir o assunto. Eu sei, lá no fundo, que a decisão já foi tomada. Não há mais nada que eu possa fazer. Não sei o que dizer para convencê-las a mudar de ideia e me deixar ficar.
Eu vou embora para o Sul.
Eu vou morar com a minha mãe.
Pior de tudo: eu vou conhecer a minha mãe.
Não sei se estou preparado para isso. Não sei se estou pronto para finalmente conhecê-la.
Durante todos esses anos, nunca pensei muito no paradeiro dos meus pais, embora às vezes eu me perguntasse o que os havia levado a me abandonar aos cuidados de minha avó e minhas tias.
Acho que a ausência de uma mãe e de um pai só não me doeu tanto até o presente momento porque eu tinha um melhor amigo que sempre estava ao meu lado e uma família pequena, mas feliz, que me dava tanto amor, carinho e atenção quanto se espera dos pais.
Agora, não tenho nada.
Meu amigo se foi, e estou prestes a perder a única família que tenho, também.
Está tudo desmoronando rápido demais; não sei como lidar com isso. Não aprendi a ser forte. Não nasci com um espírito de guerreiro, que pode enfrentar tudo para no fim sair vitorioso.
Não.
Sou o oposto de tudo isso.
— No que está pensando? — tia Dione pergunta, com cautela, me puxando de volta para a realidade.
Dou de ombros. Me sinto tão esgotado emocionalmente que sinto a raiva me abandonar pouco a pouco, me deixando vazio e abrindo espaço para a tristeza entrar mais uma vez; não sei como fechar a porta e impedi-la de entrar.
Esse é um grande defeito meu: nunca estou vazio. Ao invés disso, sempre estou preenchido por alguma coisa, seja raiva, tristeza, mágoa, rancor, solidão, saudade ou o que quer que chegue até mim primeiro.
— Só quero entender tudo isso. — É o que respondo, sem saber ao certo se ainda quero compreender aquilo. Pelo visto, eu vou mesmo embora, e não acho que entender as razões vá servir ou me ajudar em alguma coisa à essa altura do campeonato.
Tia Dione suspira, como se estivesse se preparando para revelar um grande segredo.
— Alguns dias depois da... — ela hesita em continuar, olhando para mim, como se esperasse que eu pudesse ler as palavras em seu olhar.
— Da morte do Pedro? — sugiro, sem emoção alguma.
— É, sim... Depois disso, entrei em contato com a sua mãe para contar o que aconteceu, e ela ficou em choque...
— Eu não sabia que vocês ainda mantinham contato. Pensei que nem se falassem. Há quanto tempo vocês têm conversado?
— Sua mãe começou a nos ligar já faz mais ou menos um ano, poucos meses antes de Pedro falecer. Ela queria saber da saúde da nossa mãe, queria saber de nós, suas irmãs... E queria saber de você, também.
Me espanto, chocado com mais essa surpresa. Eu poderia jurar que minha mãe não queria ter mais nenhum tipo de relação com a gente. Pensei que ela tivesse abandonado a todos nós definitivamente e que nunca mais fosse dar notícias suas, ou perguntar sobre nosso bem-estar e nossas vidas.
— Se ela tem conversado com vocês durante todo esse tempo, por que ela nunca pediu para falar comigo? — questiono, tão magoado que nem quero pensar em sentir raiva outra vez. Acho que cheguei ao meu limite; não tenho mais a força necessária para sentir ódio.
— Por uma série de motivos: medo de ser rejeitada, arrependimento, culpa, remorso. Toda vez que ela telefonava, eu insistia para que ela conversasse com você, mas parece que quanto mais eu fazia isso, mais ela recuava assustada. — Tia Dione dá de ombros, como se quisesse expressar através daquele gesto toda a impotência que sentia. — Houveram ocasiões em que eu ameacei passar a ligação para você, mas a Paola dizia que se eu fizesse isso, que se forçasse vocês a conversarem contra a vontade, ela nunca mais ligaria de novo, então preferi não arriscar.
Um estalo de repente me ocorre e me lembro das conversas sussurradas entre minhas tias e da ligação que tia Selma havia recebido mais cedo naquele dia. Então tudo começa a fazer sentido.
— Era ela o tempo todo! — exclamo num rompante, virando meu olhar e dando atenção para tia Selma. — Hoje mais cedo a senhora recebeu uma ligação no celular e não atendeu porque era minha mãe ligando, não é?! Por isso que vocês não atenderam! Porque não queriam falar com ela na minha frente! — Aos poucos tudo se encaixa, enquanto as lembranças das conversas misteriosas ficam cada vez mais claras. — E mais de uma vez eu já ouvi vocês três falando baixinho pelos cantos, quando pensaram que eu não estava por perto, conversando coisas do tipo “ ele não se dá bem com ela ”, “ a escolha é dele ”, “ não temos opção ”.
As três compartilham da mesma expressão de surpresa, como se não esperassem ser pegas em flagrante.
— Eu não fazia ideia de que você estava ouvindo essas conversas... — tia Dione sussurra, sem acreditar. — Não era pra você ter escutado...
Por incrível que pareça, fico agradavelmente satisfeito com o rumo que toda essa situação está tomando. Posso dizer que cumpri com meu objetivo de descobrir qual era o motivo de tantos segredos, mesmo que eles fossem a meu respeito e que minha avó e minhas tias tenham tramado meu futuro pelas minhas costas por sabe-se lá quanto tempo. Mesmo que uma parte de mim esteja indignada, a outra até que está em paz por ter desvendado um mistério, por assim dizer.
— Se vocês estavam falando com minha mãe em segredo e planejando os detalhes da minha mudança, mesmo que pelas minhas costas, eu tinha todo o direito de saber — respondo, triunfante, ignorando que é minha vida que está em jogo. — Vocês arrumaram cada detalhe em relação ao meu futuro e esconderam de mim por qual razão?
— Porque ainda não tínhamos nada resolvido — tia Dione explica. — Antes do Pedro falecer, sua mãe já vinha falando sobre a hipótese de você ir morar com ela. No começo, fiquei irritada e com ódio por ela sugerir aquilo. Mas depois de conversar com a mamãe e com a Selma com calma, concordamos que ela tem o direito de te querer perto dela. Afinal, você é filho dela. — Tia Dione suspira, como se desejasse estar em qualquer outro lugar, menos ali. — Então, depois que o Pedro se foi, ela começou a ligar com mais frequência, praticamente três ou quatro vezes por dia, até hoje. Ela só perguntava de você, se estava tudo bem, como você estava se sentindo, e a partir daí ela começou a insistir cada vez mais para que você fosse viver com ela. — Ela para, apoiando os cotovelos sobre a mesa e usando as mãos abertas para esfregar o rosto. — Quanto mais ela insistia nisso, mais víamos você ficar deprimido e solitário. No início, pensamos em conversar com você a respeito e dizer toda a verdade de uma vez, mas o tempo foi passando e você se tornou agressivo, distante, temperamental. Então eu sugeri que nós mesmas encontrássemos uma solução para te ajudar, para que você não precisasse ir embora. Queríamos provar para a sua mãe que você só estava passando por uma fase difícil e que logo estaria bem de novo. — Uma única lágrima silenciosa escorre pelo rosto da minha tia e vejo que ela está implorando pelo meu perdão em segredo. — Mas o tempo passou, e ao invés de melhorar, você parece estar ficando cada vez pior. E não pense que estamos te expulsando de casa, ou que nos cansamos de você ou que não te amamos mais. Não pense isso nunca! A única razão de estarmos fazendo isso é porque a gente acredita de verdade que isso vai te fazer bem, meu sobrinho. Todo mundo aqui acredita que você pode ter a chance de ser aquele garoto feliz, alto astral e de bem com a vida que costumava ser antigamente. Tanto nós quanto a sua mãe só queremos te ajudar. Só queremos o que é melhor para você. — Ela começa a estender a mão, provavelmente para me alcançar, mas acaba hesitando e deixando-a cair na mesa outra vez. — Mesmo que ela tenha se recusado a conversar com você pelo telefone, tenho certeza que ela também está ansiosa pra te conhecer e quem sabe, talvez, recuperar de algum modo esses anos que ela passou longe de você. Não sei como minha irmã vai fazer isso, mas confio que ela vai dar um jeito de te conquistar.
Não estou convencido, e sinto que o rancor que estou nutrindo dentro de mim em relação a minha mãe acaba de se intensificar mais um pouco.
— Deixa eu ver se eu entendi: minha mamãe querida me deixa quando ainda sou apenas um bebê, passa anos sem dar notícias, começa a conversar com vocês e do nada ressurge das cinzas pedindo para que eu me mude para morar com ela? — esbravejo, sentindo uma incredulidade das grandes.
Vovó Lúcia se apressa em me acalmar:
— Ela não quis falar contigo por sentir vergonha das coisas que fez. O arrependimento dela era tão grande que só Deus sabe como o coração da minha menina estava angustiado.
Cerro os olhos, cético. Duvido que seja por isso que ela se recusou a conversar comigo.
— Isso mostra, mais uma vez, o quão covarde ela é! — Digo praticamente aos berros. — Ela foi covarde há dezessete anos atrás, quando me pariu e me deixou para vocês criarem. Ela foi covarde durante todo esse tempo, quando não entrou em contato comigo uma única vez sequer, nem que fosse para me desejar um feliz aniversário, se é que ela sabe quando é meu aniversário, e está sendo covarde agora, por ter a oportunidade de me conhecer e se recusar por medo de ser rejeitada! — Agora estou gritando, mas não me importo. Se não posso gritar na cara da minha mãe diretamente, vou fazer isso com minhas tias e minha avó, por estarem tentando defender as coisas horríveis que ela me fez e continua fazendo. Vou gritar e gritar, na esperança de descontar toda a minha raiva e pôr o que guardo no peito há tanto tempo para fora. — Ela nunca se importou comigo. Ela nunca foi minha mãe! Será que ela já parou para pensar na dureza que foi crescer sem o carinho de uma mãe e a proteção de um pai? Será que ela tem alguma noção da dor que foi crescer sabendo que fui abandonado, não por maldade do destino, e sim por uma escolha que ela mesma fez? Eu poderia estar muito bem hoje em dia se soubesse que meus pais morreram durante minha infância, por exemplo. Seria muito mais fácil. Seria mais suportável ser órfão do que ter que lidar com o fato de que tanto meu pai quanto minha mãe me descartaram porque quiseram! — Eu paro de falar, porque sinto que meu coração está muito acelerado e minhas mãos tremem, assim como meus lábios; meu corpo todo treme, para ser sincero. Tento me recompor e prosseguir o assunto com uma calma que não tenho. — Ela poderia ter falado comigo. Ela deveria ter falado comigo. Eu não sei se isso adiantaria, não sei se resolveria ou me ajudaria com alguma coisa, mas ela tinha que ter conversado comigo.
— Mateus, sua mãe não quis falar com você justamente por saber que era assim que você iria agir. Ela tinha medo dessa reação. Acredite em mim quando digo que sua mãe já se tortura e já se culpa o suficiente. Você não precisa tornar as coisas ainda mais difíceis. Todo esse rancor e essa amargura só vão servir para machucar vocês dois ainda mais. — Tia Selma ralha. — Isso pode até não ser uma boa justificativa, mas talvez o medo dela tenha sido maior do que a vontade de te conhecer. Eu lamento por isso, mas entendo que ela teve lá os seus motivos.
— Motivos para quê? Para me abandonar ou para não querer conversar comigo? — faço a pergunta com todo sarcasmo que consigo reunir.
— Para os dois. Eu não sei quais são, e nem preciso saber, porque não são da minha conta.
— Mas deveriam ser, sim. Tanto da conta de vocês quanto da minha. Afinal, estamos falando de uma mulher que é irmã e filha de vocês, e que por sinal também é minha mãe — protesto, inconformado que ninguém mais esteja revoltado com a situação. — Isso tem tudo a ver com a gente.
Vovó Lúcia sorri, mas não há graça alguma nesse gesto. Ela inspira profundamente, e está serena e comedida quando diz:
— Antes de ela ser minha filha, antes de ser irmã das suas tias ou de ser a sua mãe, Mateus, ela primeiramente é humana, acima de tudo. Ela também é uma pessoa com qualidades e defeitos, falhas e acertos, vontades e motivos. Não cabe a ninguém aqui entender ou julgar as escolhas da Paola. A vida e as decisões são dela, e só.
Balanço a cabeça, querendo expulsar da minha mente tudo que acabei de ouvir. Não é possível que elas estejam defendendo a irresponsável, egoísta e cretina da minha mãe! Tudo bem que elas são família, que nós somos, e devemos apoiar e proteger a família apesar de tudo, mas algumas coisas simplesmente não são corretas e nem justificáveis. Não é correto deixar que o amor nos deixe cegos e tire nossa capacidade de julgamento, de discernir o que é certo e o que é errado. Algumas coisas não devem ser aceitas nem perdoadas. Ponto final.
— As decisões dela são da nossa conta a partir do momento em que começam a interferir em nossas próprias vidas — retruco. — Não é justo nós termos que arcar com as consequências das escolhas que ela mesma fez!
— Tem razão, mas você deve ter esquecido que é impossível para qualquer pessoa passar pela vida sem machucar alguém. Nós, no papel de seres humanos, estamos sujeitos a falhar, a cometer erros, e por vez acabar por magoar inocentes. — Há sabedoria no olhar velho e cansado da minha avó, e suas palavras me atingem de tal maneira que posso literalmente sentir a verdade e a emoção por trás delas. — As escolhas que Paola fez não dizem respeito a você, Mateus, apenas a ela. Mesmo que essas escolhas tenham te afetado, te magoado e tudo o mais, não significa que você seja culpado de alguma coisa ou que tenha feito algo errado. Você apenas foi atingido pelas consequências das escolhas feitas por alguém que está ligada diretamente em sua vida, em sua história. — Estou tão absorto em meu próprio mundo, tão confuso em relação a tudo, com uma batalha sendo travada dentro de mim, e apenas as palavras de vovó Lúcia fazem sentido; apenas a sua longa experiência de vida me prende à realidade. — É justamente por estarmos todos conectados em uma só história que sentimos a alegria, a tristeza e a dor um do outro. São os laços de companheirismo que fazem uma família. Então, eu não peço que você a perdoe ou aceite a Paola de braços abertos logo de cara. Peço só que você entenda que ela tem motivos para ser do jeito que é, e tem motivos para fazer as coisas do jeito que faz. Cada pessoa é um conjunto infinito de motivos. Nem sempre precisamos entender cada um deles; precisamos apenas respeitar e colocar na nossa cabeça que cada um é do jeito que é para ser, e não há nada de errado nisso. — Então ela finaliza, olhando para mim de um jeito tão penetrante que me sinto quase nu, como se ela não estivesse vendo meu corpo, e sim minha alma: — Não existe nada de errado ou vergonhoso em ser quem você é de verdade. Errado seria fingir ser algo que não é só para agradar alguém que não seja você mesmo.
Sinto um nó na garganta, pois sinto que ela está se referindo à minha orientação sexual, que luto incansavelmente para manter em absoluto segredo; todos os dias tomo o maior cuidado para que ninguém desconfie que na verdade sou gay. Penso bem antes de falar qualquer coisa, tomo todo o cuidado para não dar pinta ou qualquer outra razão para que desconfiem de mim.
Ainda não estou pronto para que saibam, e também não tenho tanta ansiedade assim para contar.
Eu sei que sou gay, e isso para mim já basta.
Eu me aceito.
Já é o suficiente para mim saber o que sou.
O único problema em relação a tudo isso é que, sim, eu sei o que eu sou, mas em grande parte do tempo não faço a menor ideia de quem eu sou.
É como se eu estivesse vivendo e dançando conforme uma música tocada por terceiros, como se eu fosse o personagem de um filme, que não tem vontade própria, nem sonhos ou desejos, e espera somente o futuro que o roteirista reservou para ele, pronto para interpretar o papel.
Deixo minhas paranóias a respeito da minha sexualidade para lá, empurrando-as para um canto afastado dos meus pensamentos e deixando-as isoladas na minha mente.
— Espero que isso tudo que a mamãe acabou de falar te faça refletir, sobrinho — tia Dione fala. — Pode não parecer, mas a gente tá fazendo isso pelo teu bem.
— É, Mateus, é verdade — tia Selma se manifesta. — Pense só em como vai ser bom mudar para um lugar novo! Você vai ter uma casa nova, amigos novos... Uma chance pra recomeçar a vida!
Olho para ela, e tenho quase certeza que estou fazendo uma careta. Torço o nariz quando respondo:
— Mudar de casa, cidade, estado, país ou até mesmo de planeta não vai me ajudar em nada. Ir embora daqui não vai fazer meus problemas desaparecerem.
— Eu sei disso. Não dá pra fugir dos problemas, porque eles vão aos montes na bagagem. Mas ao menos no Sul você vai ter coisas para se distrair, vai ter a oportunidade de recomeçar, de se reinventar! — É óbvio pelo olhar da tia Selma que ela realmente acredita em tudo que está falando. — Acredito em você, e acredito que logo, logo você vai estar acostumado com essa nova realidade. Além do mais, ouvi dizer que lá no Sul chove e faz frio praticamente o ano todo! Dá certinho com você, que odeia calor e sol e vive reclamando do clima daqui do Nordeste.
Dou uma risada curta. É verdade: odeio ficar suado, odeio calor e temperaturas altas, o que é uma grande ironia, de certo modo, já que eu adoro ir à praia. Curioso também é o fato de eu sempre ter gostado de dias nublados, de neblina e chuva. O clima frio definitivamente é o grande amor da minha vida.
— Chuva e frio não são motivos bons o bastante para me convencerem — respondo simplesmente.
— Eu sei que não são. — Tia Dione concorda. — Os motivos bons o bastante para te convencer são esses: Paola, sua mãe, quer ter a chance de ter você ao lado dela, mudar de cidade e conhecer novas pessoas irá te ajudar a se recuperar de suas tristezas, seu último ano do ensino médio será em uma escola nova, já que você odeia a que estuda hoje em dia, — ela sorri para mim — e por último, mas não menos importante, nós três sempre estaremos aqui por você e para você, sobrinho. Iremos manter contato, vamos nos preocupar com seu bem-estar e com sua felicidade, porque aonde quer que você esteja, continuaremos amando você! Sei que talvez você não entenda nosso lado, que esteja com raiva e que nos odeie agora... E mesmo que eu queira que isso seja mais fácil e menos doloroso, não tem como fazer isso. Não tem. Mas independente disso, saiba que nos importamos e nos preocupamos com você. Tudo que fazemos é pensando no que é melhor pra você, e no momento, mandar você para viver com sua mãe é o melhor que podemos fazer por você. E espero que seja o suficiente.
Eu não respondo nada. Simplesmente me levanto da cadeira bem devagar, com as mãos apoiadas na mesa; a madeira polida do tampo está fria sob as pontas dos meus dedos. Ando pela cozinha e caminho até a sala de estar, anexada ao cômodo, de modo que fico de costas para a minha família e começo a me ocupar em encarar os cômodos, os corredores e os móveis da única casa que já conheci.
— Mateus... — a voz fraca e rouca de tia Dione está carregada de hesitação, como se ela não soubesse o que dizer, ou se não soubesse até mesmo se deveria dizer alguma coisa.
Mesmo estando ali, de pé, de costas para ela a somente alguns centímetros de distância, sinto que não estou ali de verdade. É como se meu espírito estivesse se teletransportando para anos atrás, para o passado, no tempo em que eu ainda era uma criança. Me vejo com precisa clareza: o pequeno eu correndo pela sala aos gritos, brincando com seus bonecos e carrinhos no tapete, pulando no sofá, assistindo televisão e rabiscando as paredes com lápis de cor. A vida do pequeno eu era boa, era feliz.
Eu, com toda certeza, fui muito feliz aqui.
Mas agora não sou mais. E não posso continuar fingindo o contrário.
As lembranças do passado estão ficando mais intensas, revivo nas minhas memórias os momentos mais alegres da minha vida, e de repente percebo que recordações não são o suficiente para me devolver aquele deleite primoroso que só a inocência da infância pode nos oferecer.
Tudo era tão fácil, tão simples.
Tudo estava ótimo até o Pedro partir. A morte dele foi o estopim de tudo, e graças à isso meu mundo desabou e eu perdi meu chão.
Bem aqui, nesta casa, vivemos grandes coisas juntos: minha família o adorava quase tanto como eu, e ele era praticamente de casa.
Passamos horas, e dias, e semanas, e meses, e anos esparramados no sofá, ou na varanda da frente nos refrescando com a brisa, ou no meu quarto conversando sobre nada e fazendo guerras de travesseiro quando estávamos entediados demais para estudar.
Pedro ainda está presente nessa casa.
O cheiro dele continua aqui, em cada móvel, em cada cômodo. Não tem um dia sequer em que eu viva sem pensar nele.
Talvez minha família tenha razão.
Talvez eu não consiga superar o trauma se continuar vivendo aqui, se tiver que encarar dia após dia as lembranças e a dor que elas implicam.
Eu tenho total consciência de que me mudar não fará com que eu me esqueça do Pedro, mas ainda assim eu continuo tendo a oportunidade de melhorar, de voltar a ser a pessoa que era antes de tudo isso acontecer.
— Vocês já arrumaram a minha passagem? — Eu sussurro, ainda de costas para elas. Meu olhar vaga perdido pela sala.
Há uma breve pausa, até que tia Dione responde:
— Não. Paola mandou a gente ligar para ela só quando você decidisse qual rumo tomar.
— Então quer dizer que, afinal de contas, eu ainda tenho uma escolha? Eu posso escolher entre permanecer aqui ou ir para o Sul?
— Mateus, mesmo que nós três aqui concordemos em que o melhor pra você é se mudar, não podemos te forçar a nada.
— Na verdade, podem sim. Eu ainda não completei 18 anos. Se vocês quiserem me colocar à força dentro de um avião e me despachar para qualquer lugar que seja, a lei estará ao lado de vocês e ninguém vai poder fazer nada para impedir. — Não falo de maneira brusca, não sou rude. Apenas esclareço os fatos de maneira formal.
— A gente nunca faria isso com você!
— Nem morta! — tia Selma exclama, aparentando estar indignada com a hipótese que acabei de propor.
— É que pelo modo nada sutil que vocês abordaram o assunto, acabaram deixando a entender que eu não tinha mais opção nenhuma além de ir embora e pronto, fim de papo.
Ouço as pernas da cadeira se arrastarem pelo chão com um baralho rascante, mas não me viro para olhar.
— Lamentamos por isso — tia Dione se desculpa. — Forçar você a ir contra a sua vontade nunca esteve nos nossos planos. Por isso que preferimos conversar com você a respeito, na esperança de que conseguíssemos te convencer a enxergar as vantagens de ir morar no Sul.
— Então, se eu pedisse, vocês iriam me deixar continuar morando aqui? — questiono, com a voz um tanto rouca.
— Claro que sim — a voz de vovó Lúcia se faz ouvir, imperativa e cheia de autoridade, não permitindo objeções. — Já falei e repito: essa é e sempre será a sua casa, independente de qualquer coisa. Se você quiser, pode continuar morando aqui, e deixe que eu me resolvo com sua mãe.
O comentário me faz sorrir, porque faz com que eu sinta que ainda sou amado por elas, e que continuo sendo uma pessoa importante. Estou um pouco alegre por saber que elas não seriam tão cruéis a ponto de me obrigar a fazer algo que eu não queira.
— Teus, independente de você escolher entre ficar ou partir — tia Selma fala às minhas costas —, saiba que iremos aceitar e respeitar sua decisão. Se você ficar, daremos um jeito de resolver as questões em aberto com a Paola. Você sempre será nosso menino. — Escuto seus passos, e sei que ela está se aproximando de mim. — Mas, se você for, se você decidir dar uma chance para sua mãe e para si mesmo, continuaremos aqui, torcendo e rezando por você, para que tudo dê certo. Sei que a ideia de recomeçar é assustadora, que o desconhecido é apavorante, mas você não estará sozinho. Mesmo distantes, iremos cuidar de você, como sempre fizemos. — Ainda bem que estou de costas para elas e ninguém pode ver a única lágrima solitária que permito escorrer livremente pelo meu rosto. — Vamos te ligar todos os dias, te mandar mensagens, fazer essas vídeo chamadas moderninhas e tudo o mais. Não iremos te abandonar. Mesmo longe da gente, você não estará sozinho, e nem irá nos perder.
Ouço um fungado, e tenho a impressão de que uma das três está chorando, até que me dou conta de que fui eu mesmo que o fiz.
— Tu não precisa ficar lá pra sempre — vovó me encoraja. — De jeito nenhum. Você pode voltar pra cá se ou quando quiser. Vamos estar de braços abertos para te receber de volta. Sempre estaremos aqui, pelo tempo que nosso bom Deus há de permitir.
— Pense nisso como uma... Experiência — tia Dione prossegue. — Você passa um tempo com a sua mãe, tenta se adaptar, e se sentir que não consegue mais fazer isso, que não tem mais jeito, é só entrar em contato com a gente que vamos voando pra te resgatar e trazer você de volta pra debaixo das nossas asas.
Eu começo a rir com a idéia, e me sinto reconfortado por saber que todas estão falando a verdade: se eu for para longe e disser que não aguento mais a minha nova realidade, elas irão mover céus e terras para me trazerem de volta. Nenhuma delas nunca me deixou passar por qualquer necessidade que fosse, e sempre estiveram ali, do meu lado, me dando apoio, amor, carinho e atenção em qualquer situação que fosse. Elas nunca me abandonaram, e parando para pensar nisso, sei que não o irão fazer agora.
Elas não vão largar a minha mão.
— Liguem para a minha mãe — eu digo, passado um longo tempo. — Falem para ela enviar a minha passagem. — Então me viro em direção às escadas e começo a subir os degraus.
— Mateus, espere! — Tia Dione pede, surpresa. — Aonde você está indo?
Me apoio no corrimão e dirijo o olhar para baixo, encarando as três mulheres perplexas que me encaram embasbacadas.
— Vou arrumar as malas, é claro. — Respondo, com um sorrisinho breve e discreto. — Tenho uma viagem para fazer. — Dito isso, volto a subir as escadas indo em direção ao meu quarto, me preparando a cada batida do meu coração para dar um passo imenso que não faço ideia de para onde irá me levar.
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O Garoto dos Cachos Azuis [EM PAUSA]
Romance[HISTÓRIA EM PAUSA] Após a repentina e misteriosa morte de seu melhor amigo Pedro, o jovem adolescente Mateus vê sua monótona vida tomar rumos inesperados e virar de cabeça para baixo: ele muda de escola, de cidade, de rotina e precisa enfrentar o a...