Não esboço reação alguma. Ao invés de fazer ou falar algo, simplesmente fico ali, parado, de pé, me sentindo tão chocado que nem consigo pensar em palavras precisas o suficiente para descrever o quanto estou atordoado.
Através da névoa inebriante que está entorpecendo meus sentidos e sabotando meu raciocínio lógico, posso distinguir uma mulher alta, bonita, na faixa dos trinta e poucos anos de idade, me encarando com um um semblante tão espantado quanto tenho certeza que o meu também está. Olhar para ela é como ver meu próprio reflexo num espelho, só que na versão feminina: temos os mesmos cabelos encaracolados castanhos e desgrenhados, a mesma pele acobreada beijada pelo sol e os olhos claros como mel.
Só uma palavra passa pela minha cabeça a cada átimo de segundo sem formar nenhum sentido real para mim: mãe.
Mãe.
Mãe.
Mãe.
Minha mãe.
Eu estou diante dela.
Não é um sonho.
Não é minha imaginação fértil me perturbando e fazendo com que eu veja coisas que não existem.
Não é miragem.
Realmente está acontecendo.
Descarto de uma vez por todas a possibilidade de estar delirando quando sinto a mulher feita de carne, ossos e verdade me tocar com suas mãos de verdade e em seguida me puxar para um improvável e inesperado abraço também de verdade. O aperto dela é forte, e ao reconhecer sua pele em contato com a minha, eu percebo que a névoa que me envolvia e me impedia de pensar com clareza está agora se dissipando, finalmente me deixando livre para que eu possa me sentir capaz de recobrar os sentidos.
A primeira coisa que sinto é confusão, como esperado: por que ela está me abraçando? Por que não diz nada? Está chovendo aqui do lado de fora ou essas gordas gotas de água que estão molhando os ombros da minha camisa são lágrimas?
Depois, vem a incerteza: o que será que eu devo fazer? Devo falar alguma coisa? Retribuir o gesto?
Então, por fim, meu cérebro resolve trabalhar e enviar sinapses para o resto do meu sistema nervoso e alguma coisa adormecida dentro de mim desperta e me faz tomar coragem para agir.
Sem ter noção de qual atitude tomar para sair desta situação, decido pelo mais clichê: começo a pigarrear, como se estivesse com uma horrível inflamação na garganta. Dou uns tapinhas desajeitados nas costas da mamãe urso que me aperta contra si de forma implacável e aguardo impacientemente até que ela caia na real e me largue logo de uma vez.
Percebo que ela hesita por um instante até finalmente me soltar. Quando nos afastamos e estabelecemos uma distância considerável entre nós, eu me ocupo em encarar o chão, enquanto a mulher olha para o ar, como se uma brisa do vento gelado da noite pudesse soprar e sussurrar-lhe as coisas corretas a serem ditas, o que me faz pensar se de fato existe algo certo a ser falado em uma ocasião semelhante a esta.
O que eu posso dizer?
“Então, o que você tem feito durante todos esses anos desde que me abandonou quando eu era só um bebê?” Ou então, que tal perguntar “o que mais você gosta de fazer, além de abandonar o filho para outras pessoas criarem enquanto some do mapa e passa anos sem dar notícias?”
Pois é.
Nenhuma das alternativas me parece uma boa escolha para se iniciar uma conversa.
Entretanto, são exatamente essas coisas que tenho vontade de dizer.
Tipo, fala sério!
Essa situação toda é no mínimo, na melhor das hipóteses, totalmente bizarra.
O que você fala para a mãe que te deixou quando finalmente fica cara a cara com ela?
Deveria existir algum manual de instruções para nos preparar para isso, sei lá.
Mas enfim, já que nada brilhante passou pela minha cabeça, me limito a dizer apenas um:
— Oi.
Ao passo que ela responde toda sorridente:
— Olá.
— Eu sou o Mateus — digo.
— Eu sei. Eu sou a Paola — ela responde.
— Eu sei.
E é isso.
Após esses cumprimentos geniais, ficamos um olhando para a cara do outro, desconfortáveis (bem, pelo menos eu estou, e muito). No entanto, antes que um clima tenso possa começar a tomar forma, ela quebra o gelo e indaga:
— Precisa de ajuda com as malas?
— É, seria bom — respondo automaticamente, como se eu fosse a droga de um robô.
— Tudo bem!
Sorrindo animada enquanto me auxilia com as malas, ouço a voz do vizinho da casa ao lado gritar:
— Até que enfim tu criou coragem, guri! Achei que você fosse congelar até a morte antes mesmo de bater na porta!
Minha nossa, que garoto irritante dos infernos! Eu já imaginava que os sulistas seriam chatos, mas não pensei que fossem tanto. Estou prestes a mandá-lo para o raio que o parta, porém sou interrompido pela Paola.
— Ah, oi, João Carlos! — ela fala, alegre. — Nem te vi aí.
— Então quer dizer que esse filho de uma égua tem nome, afinal — resmungo baixinho.
— O que disse?
— Falei que eu tô morrendo de frio, na moral.
João Carlos, o vizinho chato, se debruça no parapeito da janela para poder conversar melhor.
— Quem é esse garoto, Paola? — o sotaque carregado dele fere meus ouvidos de tal forma que não consigo evitar fazer uma expressão facial de puro deboche.
Ela olha para mim e hesita antes de tomar coragem para responder:
— Esse aqui é o Mateus. Ele é o meu filho.
Eu noto uma expressão de choque passar rapidamente pelo rosto quadrado de João Carlos quando vejo seus pequenos olhos cor de âmbar se arregalar com a notícia. Ele arqueia as sobrancelhas muito bem feitas, aparentando estar intrigado com o que acabou de ouvir.
Mas por quê?
Por que essa surpresa?
Vejo também que algo mudou em suas feições, e ele abandona a pose esnobe e debochada para se tornar sério e comedido.
— É, pois bem... — João Carlos gagueja, tentando controlar o nervosismo. — Acho que ouvi alguém me chamar lá no andar de cima. Tenho que ir.
O garoto, então, fecha o zíper do agasalho que está usando até o pescoço, abaixa o compartimento de cima da janela de vidro com estrépito, fechando-a com mais força que o necessário e desaparece no interior pouco iluminado da casa, me deixando sozinho com uma atônita Paola.
— Qual é o problema dele? — disparo a pergunta, sem conseguir me conter.
— Como assim? — ela devolve.
— Não tinha ninguém chamando por ele, e quando você disse que eu sou seu... é...
— O meu filho?
— É... isso... ele saiu espantado, correndo igual ao diabo fugindo da cruz.
Ela dá uma risada de escárnio e gesticula com as mãos, zombando de mim e descartando minhas dúvidas.
— Não seja bobo — ela diz, arrastando minhas malas para dentro da casa —, não foi nada demais. João Carlos é um doce de menino, e alguma coisa me diz que logo, logo vocês dois se tornarão grandes amigos.
— É mais fácil chover dinheiro do que eu fazer amizade com uma peste dessas — murmuro para mim mesmo enquanto carrego o resto das minhas bagagens para dentro da vistosa residência.
A minha animosidade para com o meu novo vizinho se esvai assim que ponho os pés no interior da casa — embora seja relativamente modesta, ela também é extremamente elegante e sofisticada. Há três sofás reclináveis na cor cinza dispostos às laterais e à frente de uma enorme TV de tela plana de só Deus sabe quantas polegadas, além de um elegantíssimo tapete ornamentado com desenhos e uma mesinha de centro escura decorando a sala de estar. As paredes brancas revestidas de quadros, pinturas e um discreto espelho com moldura dourada adicionam mais beleza ao recinto. Há também uma escada que certamente leva aos quartos e banheiros no andar de cima e uma cozinha-americana, parecida com aquelas que costumamos ver nos filmes e nas séries estrangeiras que assistimos.
Nem preciso dizer que estou maravilhosamente encantado com a inegável beleza do imóvel.
— Sua casa é muito, muito legal — eu falo sem pensar, tropeçando nas minhas próprias palavras. — Sério, é uma das casas mais incríveis que já vi.
Paola é pega de surpresa por poucos segundos; eu acredito que ficou espantada com meu elogio (isto é, se falar bem da casa de uma pessoa for considerado uma forma de elogio, enfim).
— Oh, eu fico feliz que tenha gostado — ela responde de uma forma um tanto eufórica. — Fico feliz que tenha gostado porque a partir de agora esta é a sua casa, também. — Paola profere as palavras com tanto entusiasmo, com tanto vigor e energia, que até parece que ela está esperando que uma banda marcial apareça do nada tocando músicas, espalhando confetes e estourando fogos de artifício; eu acho que ela espera ver uma reação vibrante e feliz da minha parte, uma reação contente semelhante a dela. Entretanto, o que faço é repuxar os cantos da boca na tentativa de forçar um sorriso e franzir as sobrancelhas para o alto.
Minha falsa animação deve ter conseguido enganá-la, porque só o simples gesto de dar um tímido sorrisinho constrangido e sem nenhuma sinceridade foi o suficiente para fazê-la desatar a falar sobre como as acomodações são ótimas, sobre como o bairro é tranquilo e o quanto vou adorar viver ali. Eu já estou convencido a respeito das duas primeiras partes; quanto a terceira, já não tenho tenta certeza. Para ser honesto, não tenho nenhuma.
Só irei descobrir isso, e uma porção de tantas outras coisas, com o passar do tempo.
Ele é o meu melhor aliado neste momento.
O único.
E, do fundo do meu coração, desejo com todas as forças que ele possa me ajudar.
— O seu quarto fica ali em cima, na primeira porta à esquerda — ela indica o alto das escadas com a cabeça. — Se quiser, pode ir levando suas bagagens para lá enquanto eu arrumo a mesa para o jantar.
— Tá certo — concordo de imediato, me sentindo grato por ter um pretexto para escapar dali.
Eu pego minhas malas e as arrasto degraus acima enquanto Paola carrega minhas mochilas, e ela as põe no chão com todo o cuidado antes de descer de volta para a cozinha.
— Espero que goste — ela diz olhando para a porta e desaparecendo nas escadas logo em seguida, me deixando sozinho no corredor igualmente elegante como a sala de estar logo abaixo. Dou um longo suspiro antes de abrir a porta.
Assim como o resto da casa, o meu novo quarto é completamente branco e muito espaçoso. Tipo, ele é consideravelmente bem maior que o meu antigo. E fora o guarda-roupa enorme com um gigantesco espelho de corpo inteiro, uma cama king size e uma escrivaninha com um notebook de última geração aberto sob sua superfície, não há mais nada no cômodo: nenhum quadro, cadeiras, cesto de roupas ou quaisquer tipos de decoração.
Ao deixar minhas coisas num canto e me aproximar da cama, vejo uma pilha de papéis amontoados sob o colchão, mas logo depois percebo que não se trata de papéis, e sim dos mais variados tipos de pôsteres. Sério, a cama está repleta deles: há pôsteres de Harry Potter, Jogos Vorazes, Percy Jackson, Game of Thrones, True Blood, Grey’s Anatomy, Crepúsculo, Senhor dos Anéis e As Crônicas de Nárnia por todos os lados, além de lindas colagens da Lana Del Rey, minha cantora favorita no mundo inteiro. Quando me dou conta, percebo que estou sorrindo alegre feito uma criança cujo o aniversário chegou mais cedo. Todavia, aquela felicidade infantil logo se torna efêmera quando paro para pensar em como minha mãe sabe exatamente de todos os meus gostos. Como ela pode saber tanto a meu respeito se nós nunca havíamos sequer nos falado antes deste dia?
Então, tão rapidamente como a dúvida surgiu em minha cabeça, uma resposta começa a tomar forma e clareia minha mente, espantando quaisquer perguntas que eu ainda tenha: de repente, começo a lembrar de uma conversa que tive algum tempo atrás com minhas tias e a vovó, quando elas me revelaram que minha mãe havia entrado em contato com elas e as quatro conversavam em segredo com certa frequência. Provavelmente, em algum desses diálogos, alguma das minhas tias, conhecendo bem minhas preferências para músicas, livros e filmes, deve ter dito à minha mãe a respeito dos meus gostos pessoais, e ela, por sua vez, deve ter providenciado todos aqueles papéis de parede no intuito de me surpreender durante a minha chegada.
E se a intenção dela era me mimar e tentar fazer um agrado, lamento em dizer que de nada adiantou. Continuo com a mesma impressão que tive dela desde sempre, mesmo antes de conhecê-la pessoalmente: que ela é uma covarde egoísta e fútil, que abandonou o próprio filho em troca de uma casa bonita em um bairro chique em outro estado do país. Este é o pensamento que tenho a respeito dela, e se ela está pensando que esses presentinhos estúpidos vão mudar meus sentimentos, está totalmente enganada.
De repente, me sinto sufocar por uma aterradora avalanche de rancor e mágoa que de pouco a pouco foi se formando e se avolumando, e o motivo disso é que eu me dei conta de que a minha mãe só sabe coisas sobre mim porque alguém lhe reportou, e não porque ela mesma me criou para saber tudo a meu respeito por conta própria e ir me descobrindo a cada dia da minha vida, desvendando minhas camadas de evolução e amadurecimento.
Ao longo do tempo, já ouvi muitas mulheres dizerem orgulhosas que uma das melhores partes de ser mãe é poder acompanhar cada passo do seu filho, e vê-lo de bebê mudar até se tornar homem.
E parando para refletir sobre isso, me dói saber que minha mãe não esteve perto de mim esses anos todos para me ver crescer. E dói também saber que isso foi uma escolha que ela mesma fez, sem pensar nas consequências que essa decisão traria para mim.
Durante muito tempo, eu não permiti que o abandono da minha mãe me causasse danos mais graves e irreversíveis porque até então eu não a conhecia; ela era apenas uma hipótese, uma possibilidade, uma incógnita, por falta de expressão melhor. Portanto, justamente por eu nunca ter tido proximidade alguma para com ela, era mais simples para mim lidar com o fantasma desconhecido e sem rosto que ela costumava ser até então. É praticamente impossível você sofrer por causa de alguém que nunca chegou a ver, que nunca chegou a conhecer; é apenas a ideia que fazemos em cima da pessoa que pode nos machucar.
Mas isso tudo era antes.
Agora as coisas estão bem diferentes.
As coisas estão diferentes porque agora eu a conheço.
Diferentes porque eu vi seu rosto, a toquei e falei com ela.
As coisas estão diferentes porque a partir deste exato momento eu passo a viver aqui, e agora ela deixou de ser um mistério para se tornar no futuro, quem sabe, uma resposta.
Fecho os olhos por um segundo apenas, e naquele momento fugaz que se inicia com uma estrondosa batida do meu coração e se encerra com um forte sopro do ar da vida, me faço o seguinte questionamento: se ela tivesse sido presente desde o começo, será que eu seria uma pessoa melhor do que sou hoje em dia?
E depois eu mesmo me respondo: agora é tarde demais para saber, e ficar se perguntando “o que poderia ter acontecido?” ou “quem eu poderia ter sido?” de nada adianta. Não dá para voltar no tempo para descobrir quais rumos minha vida teria tomado caso as experiências que me moldaram durante toda a minha existência tivessem acontecido de outro modo.
Eu jamais vou saber quem eu poderia ter sido.
Para o meu próprio bem, é melhor eu começar a me conformar e aceitar as coisas como elas são.
Me aceitar como eu sou.
Mesmo que isso seja difícil.
— Mateus — a voz da Paola me chama lá de baixo, me fazendo literalmente pular de susto. — Desce para comer.
— Já tô indo — grito de volta, procurando entre minhas malas com as roupas outro casaco para eu colocar por cima deste que estou usando. Visto a peça e saio do quarto, fechando a porta atrás de mim e descendo um degrau de cada vez, ainda escutando o martelar ensurdecedor das vozes discutindo entre si dentro da minha cabeça.
— Eu fiz uma lasanha de carne moída — Paola anuncia, tirando uma travessa de vidro cheia da comida de dentro do forno do fogão inox. Sinto o cheiro do queijo derretido e do presunto, o que faz meu estômago instantaneamente roncar de fome. — Também fiz arroz com milho verde e ervilhas para acompanhar. — Com a mão livre, ela abre o microondas e tira de lá uma tigela transparente cheia de grãos de arroz cozinhados, refogados com um turbilhão de milho e ervilha. O cheiro está excelente, e mal posso esperar para provar.
Os pratos, talheres e copos estão dispostos sobre a mesa. Paola põe os dois recipientes com a nossa refeição sobre o tampo de mármore escuro da mesa e some dentro da cozinha de novo, buscando algo na geladeira. Em seguida, ela reaparece na sala de jantar segurando uma garrafa de dois litros de refrigerante Fanta sabor uva.
Eu puxo uma cadeira e me sento o mais longe dela que posso. Se ela notou minha tentativa de distanciamento, pareceu não se importar, pois ela começa a me servir com um sorriso satisfeito no rosto. Depois do prato cheio, Paola o empurra na minha direção e eu começo a comer enquanto ela se senta na cabeceira da mesa e começa a servir o próprio prato.
Dou a primeira garfada e mastigo devagar, fazendo força para não gemer e revirar os olhos.
Essa é a melhor lasanha que já comi. Meu Deus.
A comida está realmente deliciosa, e faço um tremendo esforço para comer lentamente para não engasgar.
— O que achou do seu quarto? — ela pergunta, sem tirar os olhos do prato.
Bebo um grande gole do meu refrigerante e quase dou um grito quando sinto o gás misturado com gelo descer rasgando pela minha garganta.
— Legal — eu falo, com a voz levemente rouca. — Muito legal.
— Fico feliz que tenha gostado.
— Uhum.
Dou o assunto por encerrado e volto a comer.
— Amanhã podemos sair para comprar o restante das coisas que estão faltando.
Levanto os olhos para ela e encaro Paola com curiosidade.
— Como assim? — pergunto, levemente confuso.
— Bom, eu comprei apenas a cama, o guarda-roupa e o computador porque sei que são coisas essenciais na vida de qualquer pessoa no mundo, e resolvi esperar até você chegar aqui para decidir quanto ao resto.
— Que resto?
— Ora, o resto... A cômoda, a estante para os seus livros, a tinta para as paredes, as prateleiras... Esse tipo de coisa. Você escolhe como quer montar seu próprio quarto.
— Ah.
É tudo que eu consigo dizer.
Fui pego de surpresa.
Eu realmente não esperava por nada disso.
— Então, se você quiser, podemos ir ao shopping ou em alguma outra loja no centro comercial para comprar o que falta — ela diz, sorrindo.
Me sinto numa encruzilhada.
O que devo fazer? O que devo fazer? O que devo fazer?
Digo que sim? Ou recuso a proposta?
Isso é tão estranho.
Por que ela está sendo tão legal?
Será que está arrependida?
Será que está tentando comprar minha afeição?
Qual é o jogo dela, afinal?
Sinto que minha cabeça vai explodir.
Minhas têmporas começam a pulsar, e uma dorzinha de cabeça chata começa a me incomodar. Faço uma leve massagem perto dos meus olhos com as pontas dos dedos.
— Eu estou muito cansado por conta da viagem — eu respondo, tentando não soar rude demais nem dócil demais. — Foram horas dentro do avião, e depois ainda tive que pegar um carro para chegar aqui. Provavelmente, passarei o resto do dia de amanhã mortinho da Silva. Não sei se vou ter disposição para fazer qualquer outra coisa além de ficar na cama.
Ela leva o copo até os lábios, dá um pequeno gole no refrigerante e assente com a cabeça, sorrindo.
— Claro, claro — Paola fala, fazendo de tudo para esconder a decepção em sua voz, mas seu olhar não mente. — Foi só uma sugestão. Não precisamos fazer nada que você não queira. Pode ficar e descansar quanto tempo quiser. Eu só achei que seria uma boa ideia você vir comigo para que você mesmo escolhesse suas próprias coisas. Afinal de contas, o quarto é seu.
— Bom, de qualquer jeito, eu gostaria de lhe agradecer pela gentileza — eu falo formalmente, esperando assim ter colocado um ponto final nesse assunto.
O resto do jantar ocorre tranquilamente. Comemos em silêncio na maior parte do tempo, e vez ou outra Paola me faz perguntas para saber como estão a vovó, tia Selma e tia Dione, como andavam as coisas lá no nordeste, o que eu tinha achado logo de cara do sul e se eu estava gostando do clima frio, totalmente oposto ao que eu estou acostumado. Eu respondo a todas as suas perguntas educadamente, sem me aprofundar muito para não dar brecha para que ela continue falando comigo. Tudo o que eu quero é terminar de comer em paz para poder me retirar dali e fugir para o quarto para ficar sossegado e longe dela, de preferência.
Quando termino de comer, pego o meu prato e o copo, levo-os até a cozinha e ligo a torneira, fazendo menção de lavar a louça.
— Não precisa se incomodar — Paola diz, gesticulando. — Deixe que eu mesma lavo...
Porém, eu a ignoro e continuo lavando vagarosamente, só de birra, para que fique bem claro que ela não pode me dizer o que fazer. Termino de lavar e ponho o prato, o copo e os talheres no escorredor de louças ao lado da pia.
— Espero que ainda tenha um espaço aí na sua barriga para a sobremesa que eu preparei — Paola fala enquanto se apressa em comer o resto da lasanha em seu prato para me acompanhar, quase engasgando. — Eu fiz um pavê de chocolate com lascas de nozes...
— Na verdade, eu já estou satisfeito — eu a corto, dando tapinhas em minha barriga para indicar que já não tenho mais fome, mesmo sendo mentira. Cara, eu faria de tudo para comer uma travessa inteirinha de pavê sozinho. Porém, não sei se consigo ficar mais um minuto na presença dessa mulher asquerosa. — Já enchi o bucho. Agora vou subir para o quarto e tentar falar com a vó Lúcia e as tias. Boa noite.
— Pensei que pudéssemos assistir a um filme ou conversar mais um pouco antes de você ir para a cama.
Paola se levanta da mesa com estrépito, quase derrubando-a. Desta vez, ela não está tentando esconder o quão magoada está.
— Quem sabe outro dia — eu respondo, viro-lhe as costas e subo as escadas, deixando-a em pé, com a boca aberta e silenciosa, como se estivesse procurando as palavras certas para me fazer ficar. Pensei que eu me sentiria melhor se a deixasse triste, nem que fosse um pouquinho, mas estou longe de me sentir bem.
Tranco a porta do quarto ao entrar, sento na escrivaninha em frente ao notebook e vejo que ele já está conectado a internet, então simplesmente acesso um programa de chamadas de vídeo e faço uma ligação para casa.
Após um minuto inteiro se passar, o rosto espantado e sorridente da tia Dione aparece na tela.
— Mateus! — ela exclama, maravilhada.
— Oi, tia!
— Meu Deus! Selma? Selma? SELMA!
— O QUE FOI, DIABO? — escuto a voz de tia Selma gritar ao longe, em algum cômodo da casa.
— O MATEUS TÁ AQUI! — cubro um dos ouvidos com a mão para protegê-lo dos berros das duas irmãs.
— DEIXA DE HISTÓRIA, MENINA! O MATEUS TÁ LÁ NO SUL CONGELANDO O RABO DELE A UMA HORA DESSAS!
— ELE TÁ AQUI NO COMPUTADOR CONVERSANDO COMIGO, SUA ABESTADA!
Começo a rir quando vejo pela tela do notebook tia Selma correr pela sala, vestindo um pijama cor de rosa e com uma máscara de abacate cobrindo todo o seu rosto, sem mencionar as mechas de cabelo presas com clipes.
— Oh, Mateus, é tu mesmo! — tia Selma ri.
— Sim, sou eu — eu digo, rindo também, feliz por estar vendo minha verdadeira família. — Cadê a vó?
Tia Dione e tia Selma trocam olhares por apenas um segundo, então tia Dione fala:
— Ela estava cansada e foi se deitar. Deve estar no quarto, dormindo.
— Ah — eu falo, decepcionado. — Quando ela acordar, digam que eu mandei um abraço.
— Diremos sim, pode deixar.
— Agora nos conte, como estão as coisas aí? — Tia Selma pergunta, empolgada. — Paola está bem?
— Sim, ela está.
— E o que você está achando do sul? Como foi a sensação de viajar dentro dum avião?
Aí eu desato a falar tudo: como foi a viagem até aqui, minhas primeiras impressões da região, como é a casa, meu quarto. Conto sobre absolutamente todas as coisas, até mesmo sobre do porre do João Carlos. Elas ouvem tudo com atenção, como se tudo que estou relatando fosse a coisa mais fascinante que já tivessem escutado.
— Comemos lasanha no jantar, e tenho certeza que ela comprou uma daquelas prontas em algum supermercado qualquer — eu cochicho, olhando para a porta para ver se não a deixei aberta por acidente.
— Não seja maldoso, menino, não foi essa a criação que a gente te deu — tia Selma repreende.
— Mas é a verdade! Se ela já foi capaz de me abandonar, espero de tudo e mais um pouco. E ela ainda encheu a boca de orgulho pra dizer que tinha feito com as próprias mãos.
— Paola sempre gostou de cozinhar, e a comida dela é maravilhosa. Tenho certeza que ela mesma fez tudo sozinha, no maior capricho, só pra te receber bem e agradar você — tia Dione defende a irmã.
— Pois eu duvido — eu falo, irredutível. — Aliás, além de ter comprado a lasanha pronta no supermercado e ter dito que a fez com as próprias mãos, ela também me convidou para sair pra comprar as coisas aqui pro meu novo quarto. E claro, eu não aceitei.
— Por que não? — as duas perguntam ao mesmo tempo.
— Porque é óbvio que ela tá tentando me comprar — eu explico, exasperado. — Vocês não conseguem ver isso? Ela é horrível. Cada coisa que ela faz e fala é no intuito de tentar me comprar.
— Na verdade, só o que estou vendo é uma mulher arrependida dos erros que cometeu tentando consertar tudo para se redimir — tia Dione ralha comigo.
— Mateus, você tá forçando esse pensamento que sua mãe é esse monstro horrível e calculista para alimentar ainda mais essa ideia errada que tu mesmo criou dela — tia Selma fala asperamente. — Como você espera superar tudo se não está dando um chance para que ela prove que é sim digna do seu afeto?
Cruzo os braços e fecho a cara.
— Se ela é mesmo esse anjinho que vocês querem que eu acredite, então por que tenho a sensação de que ela está tentando me comprar me dando todas essas coisas legais?
Tia Dione balança a cabeça antes de responder, categoricamente:
— Porque talvez ela não conheça outro jeito de tentar chegar até você. Talvez ela esteja tentando te conquistar do modo dela, mesmo que você veja isso como uma tentativa de te comprar. Paola tá tentando conseguir seu carinho e está jogando com todas as armas que tem. Então você não pode culpá-la por estar tentando.
— E o que vocês sugerem que eu faça? — pergunto, sem saída, porque eu realmente não sei o que fazer.
— Aceite o convite dela — tia Selma fala de imediato. — Compre as coisas para o seu quarto. Dê a ela a chance de ser uma mãe, de ser sua amiga. Deixa ela provar que é digna.
Faço que sim com a cabeça, já que não tenho outra alternativa a não ser concordar.
— Tudo bem, eu vou. Obrigado pelos conselhos.
Conversamos durante mais alguns minutos antes da chamada de vídeo se encerrar. O computador desliga e fico olhando meu reflexo no espelho negro, reunindo coragem para falar com minha mãe novamente.
Desço as escadas e ela está lá, na cozinha, guardando a louça do jantar nos armários.
— A proposta de sairmos amanhã para comprar as coisas para o meu quarto ainda está de pé? — pergunto. Ela se vira para mim com uns pratos na mão e abre um sorriso surpreso.
— Sim, está sim.
— Então eu gostaria de ir, sim.
Ela ri, contente.
— Certo, então iremos!
— OK. Vou beber um copo de água antes de ir deitar.
— Fique à vontade — ela diz enquanto termina seus afazeres.
Pego um copo no armário, abro a geladeira e encho o copo de água. Aproveito que estou ali e dou uma espiada na cesta de lixo próxima à pia. Lá dentro, posso ver embalagens de macarrão para lasanha, de queijo, presunto e carne moída, além de um saco vazio de arroz e uma lata de milho verde e ervilhas.
Eu estava errado, pelo visto.
Ela realmente se deu ao trabalho de fazer o jantar para mim com as próprias mãos.
Bem, é cedo demais para dizer, mas talvez ela tenha acabado de ganhar um pontinho comigo por ter feito uma refeição tão deliciosa para nós.
Acho que é o mínino a ser feito depois de tudo que ela me faz passar.
Vou para o quarto novamente, tiro a roupa que estou vestindo e ponho uma calça moletom. Escolho um agasalho bem quente e o visto por cima da camiseta. Apago a luz, deito na cama e puxo os cobertores até o queixo, formando um casulo.
O ar por aqui é úmido, pesado e rarefeito demais. Estou sentindo minhas narinas ficarem entupidas, e algo me diz que pegarei um resfriado muito em breve.
Mas, tirando o clima gélido, o vizinho pé no saco, a mãe desnaturada e a casa totalmente estranha, acho que vou conseguir me adaptar aos poucos. É claro que não é como se eu fosse acordar no dia seguinte e me sentir no meu lar de uma hora para outra, mas eu tenho fé que, com muita resiliência, persistência e paciência vou conseguir me refazer e construir uma nova vida para mim.
É com esse pensamento esperançoso confortando meus nervos que adormeço, repleto de expectativas.
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O Garoto dos Cachos Azuis [EM PAUSA]
Romance[HISTÓRIA EM PAUSA] Após a repentina e misteriosa morte de seu melhor amigo Pedro, o jovem adolescente Mateus vê sua monótona vida tomar rumos inesperados e virar de cabeça para baixo: ele muda de escola, de cidade, de rotina e precisa enfrentar o a...