Duas semanas se passam desde o dia da minha mudança e as coisas ainda estão longes de entrar no lugar.
Um dia depois que cheguei, Paola me arrastou até uma série diversificada de lojas voltadas para artigos do lar, de modo que acabamos comprando os móveis restantes que faltavam para o término da arrumação do meu novo quarto, e, em seguida, fomos até uma papelaria para podermos comprar meu material escolar, já que dali a alguns dias eu estaria prestes a começar meu último ano letivo.
Embora estivéssemos conversando formalmente e tolerando a presença um do outro com demasiada civilidade, ainda estamos muito distantes de ter uma relação comum entre mãe e filho; aceitamos a presença um do outro, convivemos no mesmo ambiente e vez ou outra nos falamos e jogamos conversa fora, mas nada além disso. Eu passava (e continuo passando) metade dos meus dias trancado dentro do meu quarto, pois esta foi a forma mais segura que encontrei para me isolar, saindo apenas para ir ao banheiro, me alimentar ou ir para a sala assistir um pouco de televisão, de vez em quando.
Ao decorrer dos dias, a Paola caiu na real e se tocou que eu não estava nenhum pouco interessado em ter papo com ela, e isso resultou em um afastamento ainda maior entre nós. O contato e a conexão, que já eram escassos, agora são quase inexistentes.
Por outro lado, à medida que vou me distanciado cada vez mais da minha negligente mãe, vou me reaproximando pouco a pouco da minha avó e das minhas duas tias: todos os dias, independente do horário, eu entro em contato com minha família, lá no Nordeste, e nos comunicamos com alegria e entusiasmo, seja por ligações, mensagens ou ocasionalmente chamadas de vídeo.
Confesso que, bem no início, fiquei receoso de que fôssemos perder o contato que nos restava. Entretanto, eu estava completamente precipitado em relação a isso: as mulheres honraram a promessa que me fizeram de sempre estar ao meu lado em todos os momentos, e mesmo com a distância e todas as barreiras impostas entre nós, ainda assim sou capaz de sentir o amor, o carinho e a proteção que somente essas três guerreiras incríveis são capazes de me proporcionar. E o mais engraçado em toda essa história é que eu só consegui me dar conta do quanto eu as amo e sou grato por tê-las depois que as perdi. Mas, analisando essa mesma situação por uma perspectiva diferente, eu consigo enxergar com verdadeira clareza que as pessoas estão certas quando dizem que só aprendemos a valorizar o que — e quem — temos depois de perder. Eu, por exemplo, só fui cair na real e me dar conta do quanto adoro minha pequena e não tão perfeita família após 17 anos, e tudo isso graças a uma inesperada reviravolta em minha vida que me pegou de guarda baixa e inteiramente desprevenido, o que me fez concluir de fato que alguns males vêm para o nosso bem.
Se não aprendemos pelo amor, a vida se encarrega de nos ensinar através da dor.
Agora, só consigo pensar nisso enquanto me reviro na cama, bagunçando as cobertas e formando um emaranhado de lençóis. Estou tentando dormir há cerca de duas horas, ou mais, pois a manhã seguinte dará início ao meu primeiro dia de aulas. Dizer que estou ansioso é pouco, dizer que estou em pânico é modéstia. O que estou sentindo ainda não tem nome.
Em algum momento da noite devo ter caído no sono, depois de tanto me mexer inquieto na cama, pois quando o sol nasce eu acordo, ainda um tanto atordoado, e ao invés de ficar deitado mais um pouco até recobrar a consciência, me levanto em um pulo e vou correndo para o banheiro. Tiro as roupas da noite anterior, deixando-as formando uma pilha sob meus pés, entro no box e ligo o chuveiro. A água fria que cai em uma torrente forte no meu rosto me faz despertar de imediato, levando consigo o torpor e o cansaço da noite anterior. Meus ossos viram gelo, o que faz com que eu deixe de me sentir grogue. Olho para baixo e vejo os resquícios da noite passada escorrer pelo ralo junto com a água, e um inebriante perfume de rosas silvestres e frutas vermelhas toma conta do banheiro quando passo um delicado sabonete pelo meu corpo.
Após o banho matinal, volto correndo para o quarto e rapidamente visto o uniforme discreto, porém elegante, da minha nova escola: ele consiste basicamente em uma camiseta branca de algodão com a insígnia da instituição, uma calça jeans e um casaco azul marinho, também com a insígnia da instituição gravada no tecido, como se fosse um tipo de brasão ostensivo. Depois que me visto, desço as escadas em direção à cozinha, onde Paola está na mesa, pondo o café da manhã.
— Bom dia — ela cumprimenta, sucinta, enquanto enche uma tigela de porcelana com cereal integral e uma porção generosa de leite.
— Bom dia — eu respondo cordialmente, sentando numa das cadeiras e começando a comer o cereal.
— Quer uma maçã, uma banana ou alguma outra fruta para acompanhar?
Faço que não com a cabeça e continuo a comer.
— Está muito empolgado para o começo das aulas?
Dessa vez faço que sim, mas continuo comendo. Se eu permanecer com a boca cheia de comida, significa que não preciso conversar com ela. Essa foi apenas uma das inúmeras táticas de evasão que comecei a aderir para evitar diálogos desnecessários e vazios, e até agora este truque está funcionando muito bem, obrigado.
— Bom, quando você estiver pronto, eu mesma irei te levar até a escola. Preciso resolver algumas coisas no centro da cidade e a escola fica no caminho. — Paola fala tudo com calma e naturalidade, levantando as delicadas mãos até os cabelos e habilmente fazendo um coque elegante no alto da cabeça, com algumas madeixas castanhas soltas que emolduram o seu belo rosto, que geralmente está quase sempre com expressão tensa e preocupada.
Concordo com a cabeça pela última vez, terminando a refeição. Arrasto a cadeira com força para trás, pego a tigela, levo até a pia, lavo a louça que sujei e subo as escadas novamente para ir até o banheiro. Enquanto escovo os dentes com força o suficiente para machucar o interior da minha boca, olho meu reflexo no espelho e só consigo pensar em quais surpresas o dia de hoje me reserva. Imagino como será a escola, como serão os professores e, principalmente, meus novos colegas. No meu colégio antigo, nunca me meti em problemas grandes demais, pois as únicas infrações que eu cometia era matar algumas aulas chatas para ficar conversando com o Pedro nos corredores ou em alguns lugares específicos onde quase ninguém ia, além de sempre entregar os livros da biblioteca além do prazo estipulado. Fora isso, nunca me envolvi em encrencas, nem levei advertências. Eu não era um aluno exemplar que se destacava por bom comportamento e notas altas, mas conseguia me manter na média o máximo que pudia. Sempre tentei não chamar as atenções para mim, e me mantive tanto à margem de tudo e todos que durante todos os anos do ensino fundamental e médio, o Pedro foi meu único amigo. Claro que eu me comunicava com alguns dos meus colegas de classe e ocasionalmente interagia com estudantes de outras turmas, mas nada além disso. E acho que foi assim, me escondendo e evitando contanto humano em excesso, que sobrevivi àqueles anos passados de escola. Foi assim que evitei o bullying, todas as brincadeiras de mau gosto e os conflitos que são inevitáveis nesta fase da vida de qualquer adolescente. Para alguns, a escola é o paraíso, para outros, o inferno. Para mim, era apenas uma parte da minha rotina que não tinha nada de especial, mas que também não chegava a ser necessariamente horrível. Era só... um lugar que eu frequentava porque era isso que eu devia fazer. Porque era isso que esperavam que eu fizesse. E eu fiz. Até quando eu não queria. Frequentei a escola durante todos aqueles anos, sem nunca me queixar, sem nunca sair da linha, sem nunca me desviar do único objetivo que eu tinha de me formar, embora eu também guardasse secretamente, em meu íntimo, o imperativo e ardiloso desejo de fugir e nunca mais voltar. No entanto, eu consegui ser forte e persisti até o fim, deixando aquela vontade rebelde de lado. Mesmo vendo diariamente as garotas chamarem umas às outras de vadias ou xingamentos piores por conta de namorados, mesmo vendo os garotos populares humilhando os outros alunos que não tinham tanto prestígio assim simplesmente porque estavam entediados e podiam fazer isso, mesmo vendo alguns meninos tendo suas cabeças enfiadas dentro dos vasos sanitários dos banheiros imundos e sendo alvos de piadas e brincadeiras maldosas apenas por serem umas bichinhas, mesmo vendo os professores sendo desrespeitados dentro das salas de aula e até mesmo sendo vítimas de violência apenas por estarem tentando exercer sua profissão de ensinar...
E, mesmo assim, eu sobrevivi. Fui testemunha de todas essas coisas e sobrevivi. Me manter nas sombras teve suas vantagens. Se eu consegui passar despercebido por todo esse tempo sem nunca ser incomodado por ninguém, provavelmente se eu fizer a mesma coisa agora pode ser que eu consiga concluir mais um ano sem ser notado, e consequentemente sem ser importunado por um bando de garotos idiotas que pensam que estão acima do bem e do mal e que podem fazer tudo que quiserem com quem bem entenderem na hora que acharem melhor. Não deve ser tão difícil quanto parece.
Tudo bem, as chances não estão a meu favor: sou um novato, entrando no terceiro ano, vindo de outro estado. Isso até que pode atrair alguns olhares curiosos para cima de mim, mas se eu continuar me mantendo reservado e me mostrar fechado para qualquer tipo de contato que seja, pode ser que se cansem de mim e partam para a novidade seguinte do momento, e algum outro pobre infeliz seja a vítima das fofocas em meu lugar. Pois é, não acho que seja o melhor plano do mundo, mas é o único que consigo bolar no momento.
Depois de escovar os dentes, vou até o quarto, verifico se todos os livros e cadernos estão dentro da mochila e desço as escadas novamente, onde encontro a Paola pegando sua bolsa e indo em direção à porta da casa. Antes de sair, ela se vira para mim e pergunta:
— Não está esquecendo de nada?
Tento recordar se deixei algo passar batido, mas não consigo lembrar de nada. Meu material inteiro está na mochila, minha carteira está no bolso, assim como o celular.
— Não, acho que não tô esquecendo nada não.
Ela sorri.
— Ótimo, então podemos ir.
Nós saímos em direção à manhã gélida de terça-feira. Nuvens cinzentas flutuam vagamente pelo céu escuro feito chumbo, porém não há sinal aparente de chuva. As folhas das árvores dispostas pela rua estão em um tom berrante de verde que entra em contraste com a palidez da atmosfera ao redor de nós, e fico observando a brisa suave que sopra balançar a folhagem das plantas dos jardins impecavelmente bem cuidados dos meus novos vizinhos enquanto a Paola sai com o carro. Entro no veículo pelo banco de trás, tiro meu celular do bolso e conecto os fones de ouvido enquanto o automóvel ganha vida. Afivelo o cinto de segurança, encosto a cabeça na janela, fecho os olhos e deixo a música dominar minha mente. Começar o dia ouvindo as vozes melódicas da dupla Anavitória realmente me acalenta.
O trânsito está relativamente caótico a essa hora, cheio de carros, motos, pedestres e alguns ciclistas, mas Paola é uma motorista hábil que rapidamente contorna todos os contratempos, além de ser uma exímia conhecedora de atalhos que permitem cortar o caminho e chegar aos nossos destinos com mais facilidade. Depois de mais ou menos uns 15 minutos de estrada, finalmente estacionamos na frente do Instituto Educacional Belaneves, um imponente prédio de quatro andares que ocupa metade do terreno disposto no quarteirão. Olho através das janelas de vidro do carro e vejo várias pessoas da mesma faixa etária que eu, tanto meninos quanto meninas, se abraçando, pulando nos braços um dos outros e rindo histericamente: a típica cena que vemos todos os anos quando as férias terminam e retornamos à escola após meses longe dos nossos amigos. A calmaria que eu estava sentido enquanto dirigíamos até aqui se evapora, deixando no lugar um incômodo frio na barriga, um gelo que percorre minha espinha e me faz tremer com um súbito arrepio de nervosismo.
— Bem, chegamos... — Paola diz, se virando para mim e abrindo um sorriso cúmplice. — Nem posso imaginar o que você está sentindo agora. Ter que iniciar o último ano letivo numa escola nova, com rostos desconhecidos e nenhum amigo para te apoiar não deve ser fácil. — Consigo virar meu rosto em direção à Paola com uma expressão carrancuda gravada no rosto. Ela está querendo me ajudar ou me deixar ainda mais apavorado? — Mas, de uma coisa eu sei — ela continua, alargando ainda mais o sorriso. — Você teve força, coragem e bravura o suficiente para se mudar da sua casa, em outro estado, para vir morar aqui. Se você foi valente o bastante para recomeçar sua vida do zero, em um lugar totalmente diferente e longe das pessoas que te criaram, e se você teve a ousadia de sair da sua zona de conforto e abandonar a vida que conhecia e estava acostumado, com certeza você também poderá enfrentar e vencer isso. Tudo que precisa fazer é ir com calma. Dar um passo de cada vez, certo?
Um passo de cada vez.
Um passo de cada vez.
Um passo de cada vez.
Eu só preciso dar um passo de cada vez.
O primeiro é sair do carro.
O segundo é entrar na escola.
O terceiro é encontrar minha sala de aula.
Só preciso fazer isso.
O restante só irei descobrir depois.
Mas, por hora, tudo que preciso fazer é isso.
Sair do carro.
Entrar na escola.
Encontrar minha sala de aula.
Me preocupo com as outras coisas depois.
É isso.
Não adianta me preocupar por antecedência.
Antecipar a tragédia não vai me trazer nada de bom.
Inspiro.
Expiro.
Me sinto um pouquinho melhor.
Num rompante imprevisível que não consigo controlar, olho com inesperada gratidão para a hesitante mulher sentada no banco do motorista à minha frente e sussurro um quase inaudível:
— Obrigado.
Em resposta, ela sorri e acena com a cabeça.
Desafivelo o cinto, pego a mochila jogada no banco ao meu lado, abro a porta do carro e ponho o pé direito para fora. Inspiro profundamente mais uma vez, fechando os olhos e ouvindo as batidas rítmicas do meu coração, como se ele estivesse tocando uma balada desenfreada. Então abro os olhos, ponho o outro pé na rua abarrotada de jovens felizes e fecho a porta do carro atrás de mim.
— Se você quiser, posso vir te buscar quando a aula terminar. É só me ligar, ou mandar uma mensagem, que venho te buscar.
Olho para ela e faço que sim com a cabeça, forçando um sorriso e sem dizer nada. Depois, direciono o olhar para a entrada da escola, onde centenas de alunos estão passando pelos portões de braços cruzados, conversando animadamente ou até chorando, como é o caso de alguns.
Antes de dar partida no carro novamente e sair em direção ao centro da cidade, posso jurar que ouvi a Paola sussurrar um discreto "boa sorte" para mim, mas não tenho certeza.
Ela se foi, e agora estou sozinho na calçada do colégio, paralisado e cercado de pessoas que não me enxergam, ou fingem não me enxergar, enquanto andam ao meu redor, para lá e para cá, como um bando de formigas estúpidas trabalhando numa maldita obra.
Um passo de cada vez.
Respiro fundo. Posso lidar com isso. É só enfrentar.
Eu sigo em frente, hesitante.
Cabeça erguida, olhar fixo e coração descontrolado. Passo pelos portões, adentrando a escola, me preparando a cada segundo para enfrentar o que quer que me aconteça.
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O Garoto dos Cachos Azuis [EM PAUSA]
Romance[HISTÓRIA EM PAUSA] Após a repentina e misteriosa morte de seu melhor amigo Pedro, o jovem adolescente Mateus vê sua monótona vida tomar rumos inesperados e virar de cabeça para baixo: ele muda de escola, de cidade, de rotina e precisa enfrentar o a...