Capítulo 2

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Abro a porta do meu quarto e fico parado na soleira, observando em silêncio. Está tudo uma bagunça, como se um furacão tivesse passado por ali menos de um minuto atrás: há peças de roupas espalhadas por todos os lados, DVD’s jogados no chão, copos e colheres sujos, papéis e embrulhos largados. Minha cama, que está exatamente do mesmo jeito que a deixei quando acordei, é um emaranhado de lençóis e fronhas. A única parte relativamente organizada do meu quarto é minha estante de livros, que está sempre em perfeita ordem.
Olho aquele ambiente caótico, onde durmo diariamente e onde passo grande parte dos meus dias, absorvendo cada detalhe dele, e mesmo com toda a desorganização me sinto em casa; o caos está se tornando meu lar. Estou apenas fazendo jus à ele.
Entro, trancando a porta atrás de mim, e me jogo sob a cama, com sandálias e tudo, sem me importar se vou sujar os cobertores ou não. Fico encarando o teto, sem fixar o olhar em nenhum ponto específico, e fecho os olhos.
Meus nervos agora estão mais calmos, e o surto que tive enquanto estive fora de casa existe apenas em minhas memórias, o que não chega a ser exatamente um alívio. Espero nunca mais sentir algo do tipo; foi uma sensação sufocante, cruel, como se o pânico estivesse fechando suas paredes impiedosas sob mim, me esmagando com sua força implacável sem piedade alguma, e tudo que eu podia fazer era ceder aos seus caprichos e me permitir ser dominado pelo medo.
Quando sinto que lágrimas estão prestes a escorrer de meus olhos, afasto os pensamentos da cabeça e abro os olhos.
Eu não vou, não quero e não preciso carregar mais esse peso nas costas, penso comigo mesmo. Já tem coisa demais acontecendo.
Viro para o lado na cama, ficando de costas para a parede, encarando o mural de fotos que fica do lado oposto do quarto. Me levanto, atravesso o cômodo arrastando os pés, para assim poder ficar de frente às fotografias e ter uma visão mais clara dos momentos mais felizes do meu passado.
Há uma infinidade de fotos e colagens presas ao mural com uma mistura de alfinetes e adesivos, e em todas elas há um padrão de apenas cinco pessoas, incluindo a mim: tia Selma, tia Dione, vovó Lúcia e Pedro.
Vejo uma foto minha, de quando eu ainda era criança, na primeira vez que fui ao parque com minhas tias; em outra, vovó Lúcia e eu estamos fazendo pose na minha formatura no jardim de infância. Ao lado, tia Dione dá gargalhadas ao me ver chorar desesperado enquanto observo uma cobra numa jaula no zoológico.
Dou uma risada ao me lembrar daquele fatídico dia, tantos anos atrás. Acho que é por isso que tantas pessoas adoram tirar e guardar fotografias; porque através delas conseguimos guardar momentos incríveis que sabemos que não irão voltar, porque elas possibilitam que lembremos com carinho das coisas que já passaram e possamos recordar com clareza de detalhes todas as emoções boas que já sentimos.
Passo a mão pelas fotos, sentindo com as pontas dos dedos suas texturas nostálgicas, até que paro em uma das inúmeras fotos do Pedro que preenchem meu mural. Abro a mão e deixo a palma aberta, me apoiando na foto, como se através dela eu pudesse tocá–lo, como se através dela eu pudesse puxá–lo de lá e trazê–lo de volta para mim.
Sinto um peso no peito ao ver Pedro deitado na areia da praia, relaxado, com um sorriso enorme no rosto; sua pele morena vivia constantemente queimada de sol, seus braços, fortes e definidos por conta de tantos exercícios. Seus olhos sorriam como todo o resto de seu corpo.
Pedro passava mais tempo em praias, surfando e tomando banho de mar, do que na própria casa. No dia em que tirei aquela foto, sem ele saber, estávamos a caminho da escola, quando de repente paramos no meio do caminho e ele me convenceu a matar aula para darmos um mergulho no mar. Como eu não estava nenhum pouco a fim de estudar naquele dia, aceitei a proposta prontamente, e nos divertimos sozinhos, na praia, pelo resto do dia.
Sinto tanta saudade dele. Tanta saudade que chega quase a ser uma dor física.
Eu acredito que todo mundo tem aquela pessoa: aquela pessoa que te liga quando você chega em casa apenas para saber se você está bem, aquela pessoa que encontra algo e te diz “ ei, eu vi isso e lembrei de você ”, aquela pessoa que sempre está ali do seu lado, não importa por qual razão, que te apoia independente de qualquer motivo.
Pedro era essa pessoa.
Ele era tudo para mim.
Depois que ele se foi, eu me perdi, fiquei sem rumo, sem propósito.
Porque ele era o sentido da minha vida.
Era por ele e para ele que eu vivia.
Pedro era a minha pessoa.
Depois que eu o perdi, acabei perdendo a mim mesmo também.
Agora ele se foi, me deixando aqui, sem nada a que me agarrar, sem nenhuma esperança.
Ele me monopolizou de um jeito tão avassalador que nunca cogitei a idéia de viver uma vida sem tê–lo por perto, e agora que já não o tenho mais, está parecendo cada vez mais impossível superar e me recuperar desse choque.
Quando você ama alguém e perde essa pessoa, não há nada, nada, que possa amenizar a dor; tudo que você pode fazer é definhar, se arrastar, empurrar a vida como pode até o momento do tormento finalmente chegar ao fim.
Desvio os olhos e começo a ver outras fotos, de outros momentos, de outros tempos: da festa de aniversário de 15 anos de Pedro, da nossa primeira noitada em uma balada, do dia em que fomos ao cinema ver um filme de terror, do nosso último dia de aulas no ensino fundamental.
São tantas lembranças, tantas vidas, tantas alegrias, que ainda não consigo acreditar às vezes que tudo isso chegou ao fim; parece que aquelas recordações, que aqueles momentos, pertencem a outra pessoa, como se não fosse eu que tivesse vivido tudo aquilo de verdade, porque aquela felicidade de antigamente já não me pertence mais.
É como se eu fosse um desconhecido em minha própria vida.
Não me reconheço.
Não sei mais quem sou.
Olho essas fotos e não me vejo mais nelas, porque eu não sou mais aquela pessoa. Ao invés disso, encontro um estranho.
Fico de frente para o mural, pensando apenas uma coisa: que a morte de Pedro é minha culpa, total e completamente. Eu sou a razão do meu melhor amigo ter cometido suicídio, mesmo que tente negar esse fato com todas as minhas forças.
Me perco nas boas lembranças daquelas fotos, passeando com os olhos por cada uma delas, tentando reviver ao máximo aqueles dias de glória em minha cabeça, torcendo para que aquela luz tão agradável das recordações seja capaz de afastar essa escuridão amarga que habita em mim, torcendo para que o passado tenha a força para combater e vencer as dificuldades que estou vivendo no momento presente.
Então, este é o meu mural de fotos, esta é a minha história de vida, e as pessoas que sempre estiveram presentes são unicamente estas: tias Dione e Selma, vó Lúcia e Pedro. Minha mãe e meu pai não estão marcando presença também, porque, basicamente, eles me abandonaram quando eu ainda era uma criança. E não sei o motivo até hoje. Tudo que sei é que meu pai nos deixou antes mesmo que eu nascesse, e um ano após me dar a luz, minha mãe viajou e estabeleceu moradia permanente em alguma parte na região Sul do país, me largando aos cuidados de vovó e minhas tias, suas irmãs mais velhas. Não tenho notícias de ambos há mais de dezessete anos.
Ouço batidas na porta. Rapidamente me recomponho e vou ver quem é, passando da tristeza à raiva por estar sendo incomodado em meu próprio quarto: fala sério, inferno, não posso ter um pingo de paz nesse lugar? Não posso nem sofrer com o mínimo de sossego?
— O que foi? — pergunto, irado, enquanto abro a porta, sem nem ao menos ver quem está por trás dela.
— Suas tias já estão fazendo o almoço, e vim perguntar se tu quer que a gente prepare alguma coisa especial — vovó Lúcia pergunta, se encolhendo de medo ao ouvir meu tom de voz agressivo e hostil. Instantaneamente sinto vontade de dar murros fortes na minha cara até tirar sangue! Minha avó está sempre toda preocupada comigo e me enchendo de mimos quando pode e quando não pode, e é assim que eu a trato. Ela é a última pessoa do mundo que merece ser tratada com grosseria.
Dou um suspiro e mudo meu tom de voz, falando com toda a gentileza que consigo reunir.
— Não, vó, quero nada não. Qualquer coisa que vocês fizerem pra mim tá ótimo.
— Arre égua, deixe de marmota, menino! Tu tem um buraco nesse bucho, que eu sei! Deixe de presepada e diga logo o que tu vai querer comer.
Começo a rir diante de seu alvoroço, achando graça do jeito exagerado que ela sempre se preocupa com meu bem–estar.
— Deixe de relinchar aí e me responda logo — vovó me pressiona. — Cuide, se avexe.
— Ave Maria, meu Deus!
Ela me dá um tapa leve no braço.
— Mateus, Mateus! Tu sabe que num deve usar o nome de Deus em vão! — Vó Lúcia repreende. Ela é extremamente religiosa e paranóica com essas coisas.
Apenas reviro os olhos e murmuro tá, tá, tá.
Vou querer um purêzinho de batata com carne de sol, pode ser? — respondo quando ela me questiona novamente sobre o que vou querer comer no almoço.
— Pode, cabritinho, pode sim — ela diz, afobada, e começa a descer as escadas em direção à cozinha, onde sinto o aroma da comida e onde tenho certeza que minhas tias estão conversando aos sussuros novamente.
Fecho a porta do quarto atrás de mim de novo, cheio de remorso por ter descontado minha frustração em cima de vovó, e vou para a cama, na intenção de tirar um cochilo até dar a hora do almoço.
Pelo menos dormindo não estou vivendo.

O Garoto dos Cachos Azuis [EM PAUSA]Onde histórias criam vida. Descubra agora