Capítulo 5 (Parte 1)

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Isa pegou a primeira carta de Bene.

8 de Julho de 1945 

À bela de vestido azul,

Pedi que lhe entregassem este bilhete na esperança de que também tenha me notado na festa ontem à noite.

Sou o soldado com sotaque brasileiro que passou a noite toda com uma morena de vestido amarelo, mas que não conseguiu tirar os olhos de você e do seu vestido azul, o conjunto era belo demais para um pobre mortal. Espero que não pense que estou sendo atrevido, não estou, e a respeito muito. Só não tenho tempo a perder com cortejos longos e cansativos; acho que a guerra nos faz ver que as horas são preciosas.

Aceita tomar um gelato comigo hoje à tarde?

Te espero no Palazzo del Fredo.

Bene

Isa ficou surpresa com a nova informação que descobriu sobre ele: Bene era brasileiro. Ainda assim, achou que havia tanto para descobrir.

Contemplou o papel e se perguntou como um soldado brasileiro falava italiano tão bem? Ou ainda, como conseguia se expressar com as palavras daquele jeito poético e apaixonado?

Logo, logo, sua imaginação foi longe e Isa decidiu que Bene deveria ser algum intelectual que foi obrigado a desistir de sua arte para defender os interesses de países que não faziam a menor diferença em sua poesia. Pelo que ela se lembrava das conversas que tinha com os veteranos do bairro, os soldados brasileiros se comunicavam através de mímica, sempre tinham um sorriso no rosto e não se importavam em dividir as refeições com os sobreviventes famintos; ninguém jamais comentou sobre brasileiros letrados em italiano, e amantes das palavras.

Uma pena que esses também não tenham entrado para a história. 

Ao fim do bilhete, Isa percebeu em como teria sido fácil se apaixonar por Bene. Ele sabia usar as palavras e, no lugar da bela de vestido azul, ela teria respondido que sim com a mais absoluta certeza. Ela imaginou Bene, e revirou os olhos quando a imagem de Luca apareceu vestido de soldado, com os braços na cintura de uma bela morena, mas sem desviar os olhos do outro lado do salão onde a bela de vestido azul, muito parecida com Isa, sorria e colocava o cabelo para trás da orelha, seduzindo-o sem qualquer esforço. Parecia tão bom amar no passado, os dramas eram simplesmente por amar demais, de menos ou por alguém que não aceitava seu amor.

Parece até fácil para quem está de fora, né?

Isa suspirou, esticou os braços acima da cabeça e leu a próxima carta.

9 de Julho de 1945   

Anna,

Passei a noite lendo Gabrielle D’Annunzio. Sei que ele lutou pela Itália, que perdeu a vista e que ainda assim conseguiu colocar em palavras sentimentos tão sinceros e não relacionados à dor, mas, como eu lhe disse ontem, você insiste em não aceitar o meu ponto de vista.

Continuo a afirmar que a guerra muda às pessoas de maneira que só quem esteve naquele cotidiano consegue entender. No mais, preciso devolver seu livro, ou talvez essa seja só uma desculpa para te ver por dois dias seguidos. Abaixo, uma pequena parte da minha noite mal dormida. Já peço desculpas pelas linhas piegas que irá ler:

Tão bela que não deixa o anoitecer fazer o sono chegar

Mas esqueces, linda loira, que só te tenho ao meu lado quando consigo sonhar.

Com carinho,

Bene

Isa riu. Talvez a melhor gargalhada em muito tempo e, de imediato, desejou que aquelas três últimas linhas fossem para ela. Anna, a bela de vestido azul, provavelmente leu cada uma das linhas com um sorriso no rosto, relembrando o gelato que tomaram juntos.

Ficou evidente que Bene não tinha medo de dizer quem ele era ou o que ele estava sentindo, pois só se passaram três dias desde que haviam se encontrado pela primeira vez e ele já estava fazendo poemas para Anna. Ela era uma sortuda! Não se fazem amores como antigamente.

Ou melhor, a gente que acha que tem tempo demais para não amar daquele jeito.

Isadora passou as próximas horas, envolvida na história dos dois amantes, em cada uma das cartas e bilhetes, que eram diários e, muitas vezes, três ou quatro por dia. Às vezes ele só mandava um poema, noutras ele mesmo escrevia versos e pedia desculpas pelas rimas pobres e pela "vontade constante de demonstrar o quanto gostava dela". Nas cartas mais longas, Bene mencionava, com detalhes, conversas e discussões, lugares em que foram juntos e coisas que fizeram. Como a vez em que Anna chegou atrasada para o jantar porque eles passaram a tarde toda caminhando pelo centro histórico de Roma e brincando de dizer uma palavra para o outro recitar uma frase ou poema célebres. Isa se divertiu com as aventuras dos dois e ficou rindo sozinha quando Bene confessou que inventou a maioria das frases que ele havia dito. Ela pensou em como Anna também deve ter inventado as suas. 

Mas nem tudo narrado era apaixonante e divertido. Nas cartas e bilhetes em que ele mencionava o cenário do pós-guerra, Bene sofria com as dores que os dois viam pelas ruas, a fome e a vontade de ajudar, ele comentou sobre a semana em que ficaram trabalhando como voluntários em um abrigo; em um dos poucos recados que não continham juras de amor, Bene se mostrou confuso e chateado com a família de Anna, principalmente com o pai dela, pois ele a proibiu de continuar ajudando as pessoas. "Não entendo porque vocês se preocupam em mandar comida e roupas, mas não sorrisos e carinho para as crianças deformadas ou sem membros", ele havia dito.

Isa suspirou.

A realidade daquele mundo não era tão diferente assim dos dias de hoje. Ela mesma fazia doações no Brasil, quando seu salário permitia, mas nem mesmo sabia o nome das crianças que ajudava. Ela achava que fazia o bastante, mas quem é que define o bastante? Guardou o bilhete na caixa e prometeu, em silêncio, que iria tentar fazer mais pelas pessoas. Mesmo que fosse um sorriso ou um bom dia.

Bocejando, ela continuou espiando a vida de seu casal preferido. Suas cartas favoritas estavam relacionadas aos momentos íntimos dos dois, como o primeiro beijo deles, que aconteceu em frente a Fontana de Trevi... 

Duas Vezes em RomaOnde histórias criam vida. Descubra agora