Eu e minha avó não conseguimos dormir naquela noite. Nós ficamos rodando pela casa até quando percebemos que o sol já estava nascendo.
Tudo havia perdido a cor no dia seguinte. Pela primeira vez em toda a minha vida, eu saí para a varanda pela manhã e fiquei triste por não ver o homem que eu mais amei, no lugar em que ele mais amava.
A cadeira estava vazia. As flores que ele regava pareciam estar tristes. O tapete estava com a mancha do café e a caneca que ele usara estava pousada sobre uma pequena mesa de centro.
A minha avó perdeu um marido, e eu, perdi um pai (novamente), um avô, um mentor, um sábio. Tudo o que eu mais queria era ouví-lo dizer um "bom dia", mesmo com o mau hálito matinal. Mesmo se ele estivesse sem sua dentadura ou sem tomar banho. Eu só queria tê-lo aqui comigo, e eu sei que minha avó pensava da mesma maneira.
Me sentei naquela cadeira de balanço feita de uma madeira antiga, fechei os olhos e me lembrei dos verões da minha infância, em que acampamos à sombra de uma árvore imensa, na beirada de um lago de água cristalina. Naqueles dias, até os ventos sopravam a favor da gente, da nossa alegria e união.
- Por quê você sorri? - ouvi uma voz grave, porém, suave. Não consegui reconhecer, nunca tinha ouvido aquela voz em toda a minha vida. - Garoto tolo, ainda não consigo acreditar que Eli te deixou para mim. Terei de refazer a sua mente...
- Quem é você? - por mais que eu tentasse, não conseguia abrir os meus olhos e nem me levantar da cadeira, eu estava em estado de transe, sem conseguir voltar para a realidade.
- Quem sou eu? - a voz ecoou por todo o meu cérebro - QUEM SOU EU? - gritou. - Durante toda a miserável vida do seu avô, eu venho obrigando-o a dizer à você os mistérios que revelei à ele, mas o amor não combina comigo, nem com aqueles que me seguem.
- Meu avô era um bom homem.
- Um homem egoísta, isso sim. O seu avô negou passar o conhecimento dele adiante. Não quis que você soubesse o universo de segredos que mostrei à ele.
- Tenho certeza que ele teve os seus motivos para não fazer isso.
- Garoto tolo, o seu avô escolheu ser contra mim, agora ele jaz aqui comigo e a culpa é do amor que ele sentia por você.
- O que é você para dizer isso do meu avô? Uma entidade querendo me deixar mais abatido do que eu já estou?
- EU SOU O DESTINO. - gritou com ferocidade - Você vai fazer o que eu mandar, ou vai ser contra mim?
- Eu não vou escolher.
- Você terá de escolher. Te espero em uma semana, e você virá com a resposta... garoto tolo.
Fui puxado daquela cadeira sem perceber, e quando eu abri os olhos, minha avó estava à minha frente e me olhava com seriedade.
- O que ele te disse? - ela perguntou, preocupada.
- Ele? Quem?
- Ele... - ela voltou o olhar para a cadeira vazia - o... destino... o que ele te disse?
- Você acredita mesmo nisso, vó? Acredita que o "destino" falou comigo?
- Sim, eu acredito... vamos para dentro. - Entramos rapidamente e enquanto eu me sentava, ela trancou a porta da frente.
- Desde quando você acredita nessas coisas? - perguntei sem dar à ela alguma chance de me atacar primeiro.
- Esse legado está nesta família há anos, Josh.
- Legado? Que legado?
- De acordo com os livros, a cada milênio, o destino escolhe uma família para partilhar seu conhecimento, que será passado de pai para filho até o último da geração, que no nosso caso é... você. Essa pessoa com quem ele compartilha tais coisas, é chamada de Hope, que quer dizer esperança.
- Esperança? - perguntei com ironia.
- Ele revela para o Hope coisas importantíssimas para o equilíbrio da nossa natureza e sociedade, como por exemplo: se um político que vence uma candidatura tem um coração corrupto, o destino revela isso ao Hope, que tem por obrigação, "desmascará-lo".
- Então o Hope é um fantoche nas mãos do destino? - perguntei, também, com ironia - e fala sério, vó, essa é a sua idealização de destino? Ele é o quê, uma vozinha que fica dizendo pra alguém o que fazer e o que não fazer?
- Ele é uma entidade sombria que detesta o amor e manipula as pessoas a fazer o que ele quer.
- Tá. Digamos que eu não queira fazer o que ele diz. O que acontece?
- Esse é o pior erro que você poderá cometer, filho. Se ele é quem diz que é, você não pode lutar contra ele, é suicídio.
- Nós estamos mesmo tendo essa conversa?
- Você ouviu com os seus próprios ouvidos, Josh. Ele é real e quer que você cumpra a tradição de família.
- Se isso é uma tradição de família, o vovô teria que ter passado o conhecimento dele para o meu pai, não para mim.
- O seu pai está morto, Josh. Você não entende que isso liga o seu avô à você e te torna o único que pode receber informações dele?
- Isso é demais para mim, acha que eu vou conseguir fazer as coisas sobre pressão e logo após a morte do homem que eu mais amava? Acha mesmo que isso vai dar certo? É muita besteira tudo isso, vó. - ela começou a chorar - eu preciso muito esfriar a mente.
Peguei um casaco qualquer que ficava atrás da porta e saí sem saber para onde ir. Em pouco tempo, o vento gélido daquela manhã tomou conta de todo o meu corpo.
Parei em um parque e me sentei no banco mais próximo, sem acreditar no que havia acontecido a uma hora atrás.
- Isso tem que ser uma pegadinha. - eu sussurrava para mim mesmo incontáveis vezes - isso tem que ser uma pegadinha, tem que ser... tem que ser.
- Tem que ser o quê, sad boy? - Sofia se sentou ao meu lado, jogando uma mochila no chão e colocando um pequeno case em seu colo.
- Não é nada, esquece. Por quê não está na escola?
- Eu estava, mas fui expulsa.
- Sério? - sorri - e o que aconteceu?
- Eu estava indignada porque não me deixaram jogar futebol, só porque sou uma menina, acredita? Então, eu consegui comprar uma bomba caseira de um dos traficantes que frequentam nossa escola.
- Céus, o que você fez?
- Eu acendi e joguei no vestiário masculino... mas me entregaram. Agora eu estou mais indignada ainda. E você, não foi por quê?
- Minha avó pediu para ficar com ela.
- E por quê não está com ela?
- Nós nos desentendemos. Precisei esfriar a mente, então eu saí de casa.
- Ainda bem que te achei aqui, se eu voltar para casa antes do horário, minha mãe vai ter um surto psicótico.
- A sua mãe é tão maluca assim?
- Você não tem ideia.
- Posso te perguntar uma coisa muito estranha?
- Claro, o que quer saber?
- O que você acha do destino?
- O destino... acho que ele não existe.
- Não acredita em destino?
- Não acho que você é destinado a algo. Antes desse "algo" ser concretizado, você precisa ter decisões para tomar, e é nisso que eu acredito.
- Acho que... não entendi.
- Olha, antes de alguma coisa acontecer, você precisa fazer escolhas, tomar atitudes, e depois disso, vem as consequências dos seus atos. E é nisso que eu acredito.
- É como se fosse ação e reação?
- Exato.
- Entendo.
- Mas por quê a pergunta?
- Não é nada.
- Acho que terei de enfrentar a minha mãe agora.
- Como assim?
- Está muito frio, eu preciso ir para casa.
- Podemos ir para a minha... se você quiser, é claro.
- Depende... o café da sua avó é bom?
- O melhor.
- Então vamos.
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O ÚLTIMO HOPE
Science FictionO que fazer quando você é o último Hope que restou da sua geração? O que fazer quando o destino te escolhe como receptor de informações e te manda fazer coisas que, às vezes, aos seus olhos, parecem erradas? Sei que é difícil de acreditar e entende...