Eu e o sr. D ficamos em silêncio todo o percurso que o ônibus fez.
O clima estava estranho. No fim da tarde, o vento voltara a ficar gélido quando eu e mais alguns alunos descemos no ponto frente a minha casa.
Andei até parar na varanda, fiquei ali alguns segundos observando a cadeira de balanço se mexer conforme o vento colidia com sua estrutura. Me lembrei dos dias em que eu voltava da escola e o meu avô me esperava sentado naquele mesmo lugar. O clima poderia estar chuvoso, poderia estar quente, poderia até nevar. Ele sempre estava sentado naquela cadeira velha.
Olhei para o céu, as nuvens cinzas-escuro tomaram conta de toda aquela imensidão onde, normalmente, deveria predominar o crepúsculo. Fechei meus olhos. Suspirei aquele ar frio. Entrei em casa.
Recebi uma pancada de ar quente em todo o corpo, despi o casaco e fiquei parado, esperando aquela massa quentinha me envolver por inteiro.
- Josh, você está aí? - minha avó apareceu da cozinha enquanto segurava um envelope laranja - o resultado chegou.
- Nunca pensei que você fosse tão ingênua, vó. - comecei a subir as escadas.
- Não entendi o que quis dizer. - ela parou ao pé da escada, me observando.
- Só quero dizer que... nós dois sabemos o que aconteceu. E... e eu nem sei como você se sente com esse tsunami de informações que estão devastando as nossas mentes. Dentro desse envelope só tem um monte de baboseiras que aqueles caras não souberam explicar mas que nós sabemos como. Nós temos as informações. - joguei a mochila no chão - Nós somos as informações. Esse piso em que nós estamos sobre, essas paredes que por muitos anos armazenaram fatos verdadeiros e incríveis que o sr. D revelou ao meu avô
- Ainda não entendi o que você quis dizer.
- É só que... - as lágrimas rolaram - Você não precisa de um envelope para saber o que aconteceu com ele. O que sabemos sobre ele não está lá fora. Não está aí em suas mãos, vó. O que nós sabemos sobre ele não é nem um terço do que ele realmente era.
- Eles escreveram que o resultado foi inconclusivo. - ela falou, chorando - não souberam o que aconteceu com ele.
- Nós sabemos o que aconteceu, e é isso que importa.
Ela assentiu, enquanto segurava o envelope com força; eu detestava vê-la daquele jeito.
Me joguei na cama do meu quarto, fiquei encarando o teto por vários minutos.
Pensei no Asher, e em como ele deveria estar com raiva de mim por levá-lo ao hospital. Pensei na Sofia, e no quanto eu estava com raiva dela por ter feito aquilo comigo. Pensei em minha avó, e no estado emocional dela. Por fim, depois de quase trinta minutos pensando neles, pensei em mim. E refleti na decisão que eu deveria tomar (sobre o sr. D).
"Não pode ser tão ruim assim" - pensei - "ele me fez tirar drogas de um usuário, o que eu deveria ter medo. Um usuário tem uma natureza perigosíssima, eu poderia ter sofrido agressão ali e..."
- Você quer acalmar esses seus pensamentos? - o sr. D falou, depois de muito tempo. - Você pensa em coisas demais, vai acabar fritando seu cérebro.
- Você ainda não viu nada, sr. D - falei enquanto me sentava - minha mente costuma ser um amontoado, um caos.
- Você têm pensado em tudo, Josh. - disse ele - menos em minha proposta.
- Eu ainda tenho que verificar as suas regras.
- Ah, é claro. - ele começou a se animar - eu estava esperando você falar neste assunto.
- O que quer que eu faça agora?
- Entre no quarto 099.
- O sótão? Não mesmo, obrigado. O meu avô vivia me falando que esse cômodo era proibido para mim e que eu me arrependeria se entrasse lá.
- Não tem nada demais, Josh. O sótão era o lugar em que eu e seu avô discutíamos sobre diversos assuntos.
- E como é que eu vou saber que não está mentindo? Que está dizendo isso para me matar lá em cima?
- Josh, não. Você é o último da sua geração, não faz sentido te matar agora.
- Ah, faz sim. Se você me matar, pode escolher outra família.
- Não, eu não posso.
- Ah, pode sim.
- Eu fiz as regras e tenho que seguí-las, assim como você também vai.
- Lá tem fotos do meu avô?
- Sim. O sótão é um lugar fascinante. Você vai encontrar livros escritos pelos seus ancestrais que foram meus escolhidos, e neles, as coisas que eu fiz. Você vai encontrar fotos de cada um deles, desde o primeiro, até o último, que foi o seu avô. Todos eles foram grandes homens.
Subi a escadaria de madeira velha e corroída que levava ao sótão, cada degrau era um rangido.
Lá fora, o vento ficava cada vez mais forte, e o sótão era o lugar esquecido da casa, ou seja, nada de cobertura, só telhas.
Parei frente a porta algum tempo depois, e, se comparando a madeira dela com a madeira das escadas, era uma porta novinha em folha, havia também, uma placa feita de um metal paretado indiscernível, com o número 099 dourado, assim como a maçaneta.
Meu coração acelerou. Eu estava prestes a descobrir o que os meus ancestrais faziam de tão importante, e se valia mesmo a pena fazer o que o sr. D pedisse. Limpei o suor das minhas mãos em minha calça, virei aquela maçaneta cintilante, e entrei.
As luzes já estavam acesas, e o lugar era bastante grande, não era a visão que eu tinha de um sótão comum.
Três prateleiras enormes cobriam as paredes de todos os lados daquele lugar, no centro, uma escrivaninha velha e empoeirada, sobre ela, havia um pequeno abajur, um tinteiro, penas e um pedaço de pergaminho. Foi quando reparei que não haviam livros nas prateleiras... no lugar deles, o que preenchia todo aquele espaço eram pergaminhos antigos e muito bem cuidados. Atrás da escrivaninha, uma poltrona de couro (bem cuidada, também).
- Confortável. - falei ao descansar o meu peso sobre ela.
- Sim, o seu avô adorava dormir nela.
- Foram os meus antepassados que fizeram tudo isso, sr. D?
Daquela cadeira, a visão era panorâmica e linda. Pude perceber que acima da porta estavam pendurados vários retratos minúsculos e era quase impossível reconhecer alguém que estivesse lá.
- Sim, Josh. Desde o Goetsky até o Eli. Todos ajudaram muito na construção desse, vamos dizer, templo.
- Quem é Goetsky?
- Foi o primeiro Hope. Um homem de sabedoria esplêndida. Eu sei que você está pensando que o nome dele é muito estranho. Ele não é da sua nacionalidade, Goetsky nasceu no interior da Alemanha, veio parar aqui por meio das grandes navegações que faziam na época. Ele se apaixonou pela cultura, culinária, clima, animais, vegetação, e, especialmente, por Kari, uma nativa desta região. Depois que ele conseguiu conquistar Kari, tentou levá-la para a Alemanha, mas, ela recusou o pedido porque a viagem era muito longa... e ela estava grávida.
- Do Goetsky?
- Infelizmente não. Por fazer parte da plebe, ela não tinha muito valor na sociedade, por isso, um grupo de homens a estuprou. Foi muito triste. Goetsky a acolheu. Levou-a para o outro lado do Reino, e ali, constituíram uma família, ambos conseguiram trabalhar, e, juntos, viviam em uma casa até confortável. Askar foi o sucessor de Goetsky. Ele era um desmiolado sem noção, assim como você.
- Eu não sou um desmiolado sem noção.
- Os pergaminhos que Goetsky escreveu estão na fila 1 da prateleira A. Os que Askar escreveu, estão na fila 2, da prateleira A.
- Quem foi o filho de Askar?
- Askar ainda era jovem quando eu decidi recolher Goetsky. Ele tinha apenas vinte anos quando se tornou o segundo hope. Casou-se aos vinte e quatro com uma mulher dócil e de bom coração, chamada Freya. Eles viviam na mesma casa em que Askar cresceu. Ambos trabalhavam. Tiveram uma filha chamada Kayla. Ela foi a primeira e única mulher com quem eu trabalhei. Depois disso, eu só permiti que tivessem primogênitos homens.
- Kayla te dava muito trabalho?
- Ah, com certeza. Ainda mais quando ela estava de mal humor. Mas nós dois até que conseguimos fazer muitas coisas juntos. Os pergaminhos que ela escreveu estão na fila 3, prateleira A.
- Tudo o que os Hopes fizeram foi para o bem da humanidade, não é?
- Ah, claro. Todos eles conseguiram provar tudo o que eu lhes dizia. Fizeram um alvoroço na época medieval.
- Mas, sr. D, você deveria ter escolhido outra família. Você não troca de família a cada milênio?
- Garoto, eu percebi que não posso fazer isso até quando o último Hope da sua geração não tiver filhos. Se a sua geração for contínua, eu não posso simplesmente parar no meio de uma história gigante e começar outra do zero. Entende?
- Acho que sim.
- Então, Josh, você aceita fazer parte desta história incrível, colocar seus próprios pergaminhos nas prateleiras e pendurar uma foto sua na parede?
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O ÚLTIMO HOPE
Science FictionO que fazer quando você é o último Hope que restou da sua geração? O que fazer quando o destino te escolhe como receptor de informações e te manda fazer coisas que, às vezes, aos seus olhos, parecem erradas? Sei que é difícil de acreditar e entende...