Desci para meu apartamento pouco antes do amanhecer. Por mais que não quisesse nem conseguisse encarar meus pais, ainda mais depois do que eu fizera, tinha convicção de que eles tinham o direito de me ver antes do Dia C. Até porquê, as gangues não aceitavam muito bem simplesmente não encontrarem os jovens quando as procuravam e, além do mais, eu garantir-lhes alguma recompensa financeira por me levarem era mais do que justo depois do que eu fizera.
Encontrei minha mãe aos prantos na sala, meu pai a confortava.
- Onde você estava, moleque?! – veio meu pai na minha direção, a mão erguida se preparando para encontrar meu rosto. Ele sabia. De alguma forma ele sabia que fora eu. Fechei os olhos à espera do golpe que não viera – Eu e sua mãe estávamos apavorados à sua procura! Você some sem dar notícias logo depois do dia da Coleta! – ele me segurou pelos braços – Olha pra mim! Você some por dias! Depois, entra no apartamento durante a noite para pegar comida! E agora volta no dia da Coleta!!! Onde você se enfiou, meu filho?! – me abraçou visivelmente abalado.
Ver o desespero deles reacendeu a minha angústia e dei vazão ao meu pranto novamente.
- Eu estou bem, pai! Eu fiz... Coisas... Para garantir que eu recupere a Yasmin, pai. – disse respirando fundo tentando me acalmar. Minha mãe se juntara a nós e estávamos os três abraçados de joelhos no chão da sala.
- Que tipo de coisas, meu filho?!
- Meu filho! – minha mãe me abraçou pelo pescoço.
- Eu vou resolver tudo, pai. – E, tão logo consegui me desvencilhar de meus pais, continuei. – Eu tenho um plano, pai, mãe. Eu vou resgatar a Yasmin, vou obrigá-los a entrega-la para seus pais. Mas... – fiz uma pausa, não tinha coragem de dizer, assim, omiti, julgando que eles saberiam do que se tratava. – Vocês vão ficar bem. Eu virei vê-los sempre que puder.
Minha mãe escondeu-se nos braços do marido novamente.
- NÃO! Eu o proíbo, filho! – gritou meu pai me segurando pela blusa - Foge! Sai daqui e foge! Eu tenho algum dinheiro no cofre da loja. Você sabe a combinação! Pega o que precisar e foge dessa cidade desgraçada! Mas você NÃO VAI fazer isso!
- Pai, você sabe que eu não conseguiria sequer sair do distrito antes que eles estivessem aqui na nossa porta. E você sabe o que eles fazem quando não encontram as crianças. Eu não vou aceitar isso. Esse é o único jeito.
Ele tentou me segurar, mas eu me esquivei. Fui até meu quarto e deixei um bilhete dizendo onde poderia encontrar a minha parte do dinheiro deles que eu havia roubado. Esperava que entendessem algum dia.
Deitei na minha cama à espera do gigante cara de gorila vir me buscar. Eu estaria preparado para ele e para o ruivo. Certificando-me de que a porta estava trancada, voltei para a cama e conferi uma vez mais as balas no tambor giratório da arma. Eu não poderia tremer nem fraquejar. Empurrei o tambor para dentro da pistola, travei e testei a mira algumas vezes mais, repassando sem produzir som a minha fala.
- Filho. Eles estão aqui.
Guardei a arma no bolso da calça de abrigo que vestia e saí. Olhei para o gigante ao lado do meu pai sem dizer nada. Beijei minha mãe e meu pai, e o acompanhei sob gritos de protestos dos dois. Na rua, para minha surpresa, não havia a caçamba de caminhão da outra vez, estavam alguns outros garotos da minha idade de pé direto no chão. Alguns estavam completamente nus, outros apenas de calça. O ruivo e uma mulher com cabelos cor de fogo examinavam os garotos; ele estava vestido como de costume; ela estava vestida como uma dançarina árabe, com calça de algum tecido semitransparente vermelho, um top igualmente vermelho cobria-lhe os seios fartos, e joias, muitas joias. O homem examinava os garotos de calça, ela examinava os nus, apalpando-os, percorrendo seus corpos com as unhas e fazendo comentários maliciosos. O gigante me colocou junto de outro grupo de garotos que ainda estavam vestidos.
Quando o exame dos primeiros terminou, eles haviam selecionado dois garotos com calça e três nus, o homem ordenou que fossem separados dos outros e foi a nossa vez.
- O que acha, garota? – perguntou o ruivo com uma expressão séria, a mão no queixo, examinando nosso grupo.
- Acho que aqueles três da ponta vão me servir, mestre. – ela apontou para mim e outros dois. – Além deles, aquele ali do meio e o último.
- Assim você me deixa sem nada, menina! – disse ordenando que os selecionados por ela tirassem a roupa. Quando chegou minha vez, ele me mandou esperar. – Espere um pouco. Tire apenas a camisa, garoto.
Obedeci e ele se levantou e andou na minha direção. Era minha chance, e eu sabia que não teria outra oportunidade. Ele deu uma volta ao meu redor, apertou meus braços, ombros. Quando voltou novamente para a frente a fim de se juntar à ruiva, eu vi que chegara minha chance. Saquei minha arma e encostei na cabeça vermelha. Ele não esboçou reação.
- Agora, seu filho da mãe, você vai me entregar minha amiga! – ordenei.
- Que amiga, moleque? Só temos nós aqui.
- A morena, da minha idade, cabelos curtos. Você a levou na coleta passada! Eu juro que vou estourar os seus miolos se você não der um jeito de trazê-la! AGORA!
Lentamente ele se virou para mim, me encarando com os olhos frios, fazendo pressão com a testa no cano negro da arma.
- Nem que eu quisesse, moleque. A essa hora, ela é a vadiazinha de alguém.
Engatilhei a arma e dei um passo atrás, segurando-a com as duas mãos. Minhas mãos tremiam de raiva e lágrimas corriam por meu rosto. – NÃO DIGA ISSO! EU A QUERO AGORA! – chamei a mulher – Você aí! Dá um jeito de trazer a minha amiga AQUI E AGORA!
A mulher também me olhou com desdém.
- Cuidado, moleque, você pode atirar no próprio pé com isso. Escuta. – esticou a mão para pegar a arma – gostei da sua iniciativa. Vou treina-lo pessoalmente.
Resisti em entregar a arma quando ele segurou o cano.
- O que você prefere, moleque? É vir comigo ou vir com ela e usar uma tanguinha. Mas você não vai matar ninguém hoje e você virá conosco. Seus pais já foram pagos, você é nosso.
Fechei os olhos e respirei fundo, me dando por vencido finalmente e soltando a arma. Se eles de fato já pagaram minha família como ele dizia, não tinha nada que eu pudesse fazer. Eu já pertencia a eles. Tudo o que eu fizera foi em vão. Um nó na garganta se formou e senti o ar fugindo do pulmão conforme a mulher me guiava pelo ombro até os outros. A sensação de derrota, a mesma que senti quando Yaya fora levada exatamente no mês anterior me assolou totalmente. Não só tudo o que eu fizera foi inútil, como eu roubei todas as economias da minha família por nada. E era isso. Agora eu seria membro de uma gangue.

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Cuidado, Moleque!
AkcjaRonald e Yasmin são amigos a tanto tempo quanto lembram. Porém, suas vidas tomam rumos diferentes quando chega o fatítico Dia C, o Dia da Coleta de Rat's Bay.