1- No qual eu fico feliz por conselhos tutelares ainda não existirem

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- Por que se importa tanto comigo? - perguntei ao pequeno estendendo a mão para minha figura coberta de sangue. Um riso seco escapou meus lábios, acompanhado de uma tosse.   
Eu estava no chão, com uma espada na barriga, no meio de uma plantação. Faria sentido ele querer me ajudar se fosse por instinto ao ver uma pessoa ferida, mas eu era uma bruxa. Por mais que minhas roupas escuras estivessem encharcadas pelo líquido vermelho, não era exclusivamente meu. Além do mais, uma ferida boba dessas não me mataria, mas eu estava cansada depois de ser atacada por tantos idiotas da caça às bruxas.
O garoto deveria aproveitar minha falta de forças e se afastar, se tivesse algum juízo.
E no entanto, ele insistia em tentar me ajudar. Não conseguia entender o porquê. Ele tinha conhecimento de minha capacidade de fazer o mal, e ainda assim seus olhos não carregavam medo. Eles brilhavam como dois rubis. Seria isso por pura inocência infantil?
- Não posso? -  ele retrucou, como se eu fosse a criança ali.
- Não deveria. Você viu quando eu destruí sua vila. - tentei lembrá-lo, sentindo mais dor com isso que do buraco atravessando meu corpo. Não que ele doesse muito.
- Mas eles teriam me matado. - Ele baixou a cabeça, fazendo seus olhos serem cobertos pelos fios albinos cortados desigualmente. Ninguém devia se importar de cortar por ele e o pequeno tinha que se virar sozinho. - E matado você também.
Isso era verdade. A memória ainda estava fresca: Ele era tratado como escravo na própria vila, por sua aparência incomum. Rejeitado pelos pais, mas ainda uma força de trabalho valiosa. Quando eu cheguei, após alguns dias hospedada o defendi de um abuso por algo trivial que acabou me envolvendo, e quando suspeitaram que eu era uma bruxa, ele foi condenado também. O acusaram de ter relação comigo por ter me defendido.
Todos os outros habitantes decidiram me queimar na fogueira. O pobre garoto foi o único sobrevivente porque foi amarrado numa árvore para ser atacado pelos lobos. Enquanto a vila estava em chamas, lhe encontrei chorando no meu caminho de partida. Quantos anos ele devia ter naquela época? Quatro?
Eu nunca gostei de humanos. Não teria sido problema meu se eu o tivesse abandonado ali, porque ele havia sido abandonado pelos seus... mas eu não podia deixá-lo sozinho sabendo o porquê. O simples fato dele ser diferente lhe fez ser tachado como algo ruim, a ponto dos próprios pais o verem como menos que humano.
Ah, como eu odiava humanos.
Mas ainda assim eu me vi tirando aquela criança das cordas e o levando nos meus braços. Ao lhe dar tapinhas nas costas pra acalmar o choro, me caiu a ficha de que eu não fazia a menor ideia do que fazer com um humano em miniatura, então o levei pra onde soubessem: um orfanato.
Como não queria que ele sofresse tamanha discriminação de novo, já que seria um desperdício dos meus esforços, passei boas semanas viajando com ele procurando um lugar seguro. Semanas nas quais eu observei outras miniaturas sendo cuidadas e tentei seguir o exemplo. Foi terrível. Ainda me lembro de quase tê-lo afogado ao tentar dar banho, ou do desastre que eu chamei de corte de cabelo. Eu suspeito que ele seguiu meu exemplo pra continuar cortando.
A única coisa boa que deve ter saído disso foi quando eu notei que mães humanas liam histórias pra suas crianças dormirem. Eu estava viva há muito tempo, então não lembrava se algum dia isso fora feito pra mim, mas sei que ele ficou muito feliz e o fez dormir sem pesadelos. Ele até gostou tanto de uma das histórias dos livros que consegui, a de um garoto Peter pan, que passei a chamá-lo de Peter. Ele não tinha nome antes disso, então não estranhou quando eu disse que fui chamada de muitas coisas, mas não tinha um também. Desde então, ele decidiu que eu seria TinkerBell. Um nome ridículo para uma bruxa, mas não consegui recusar.
Receosa de onde isso poderia acabar, encontrei um lugar pra ele antes que nos apegássemos demais.
Tal era o orfanato em que ele vivia agora. Acostumados a todo tipo de crianças rejeitadas, pelo menos não pretendiam matá-lo. E sim, isso foi o melhor que eu consegui numa época que mulheres eram jogadas na fogueira porque sabiam um pouco demais sobre medicina.
Pensei em deixá-lo seguir sua vida, mas acabei achando um passatempo em fazer limpezas de bandidos pela região. Não eram pessoas que faziam falta ao usar em meus experimentos, e além do mais, pareciam ter um estranho interesse em vender uma certa criança albina para o entretenimento de alguns nobres... Quando eu vi, estava usando esse tipo de gente como adubo para minhas plantinhas mágicas.
Não é de se surpreender que isso tenha chamado a atenção dos caçadores de bruxas depois de três anos, mesmo que eu tenha tentado ser discreta. Nos últimos meses ele vieram me atacando, e no bendito dia o cansaço me causou mais um descuido. Nada que já não tivesse acontecido antes. Pelo menos com cicatrizes não tinha que me preocupar, com minhas poções que davam um jeito num estalar de dedos.
Mas é, antes eu precisava me levantar. Não estava com pressa.
- Não esperava que lembrasse. - murmurei, considerando se deveria arrancar a espada na frente dele ou não. Talvez eu devesse esperar até chegar em casa, não era uma experiência muito agradável voltar jorrando sangue e com um rombo na barriga. - Você era tão pequeno.
- Eu nunca esqueceria de você. É meio difícil, pra falar a verdade, já que você parece estar sempre por perto... - Ele levantou a cabeça pra me encarar. Há! Não adiantava olhar no fundo dos meus olhos, eu nunca admitiria que realmente estive por perto.
A mão dele continuou estendida pra mim. Uma mão tão pequena, mas já cheia de calos. Se não mandassem ele colher enquanto o sol ainda estava tímido pra sair, acredito que não teríamos nos encontrado mais uma vez.
Suspirei, e me contendo pra não fazer cara feia, me coloquei de pé sem aceitar a mão dele.
- Não preciso da sua ajuda. - declarei.
- Eu não estava oferecendo ajuda. - Ele respondeu com uma voz neutra, mas pareceu empolgado com alguma coisa. Franzi as sobrancelhas. - Eu sei que isso não é suficiente pra te derrubar. O que eu quero é que você me leve com você.
- Huh?! Levar pra onde, tá louco? Onde que eu tenho cara de quem sabe cuidar de criança? – Não me ofendi com a parte dele não ter intenção de me ajudar, mas lancei um olhar irritado para Peter, o qual ele respondeu com um sorriso capaz de derreter um lago durante o inverno e pegou uma de minhas mãos sujas de sangue.
- Eu não pertenço aqui, Bell. – Seus olhos fixos nos meus carregavam tamanha esperança que me deixaram atordoada demais para me incomodar com o apelido. Três anos atrás eu disse que TinkerBell não combina com uma bruxa, então ele havia brotado com algo pior ainda. – Você entende, não é? Mesmo que não digam na minha cara, eu consigo ver no rosto dos outros que acham isso também... Que sou louco, esquisito, monstro... Só porque não entendo tanta coisa sobre o que é “normal”... Mas não querem que eu faça perguntas. Você também não entende, não é? Eu sei disso, e eu prefiro viver com Bell! Mesmo que Bell decida me cozinhar que nem a bruxa de João e Maria... É melhor do que eu continuar aqui. Me leve com você.
Eu mesma achei que ele tinha uns parafusos soltos por dizer isso pra uma bruxa com uma espada na barriga, mas deixei passar. Mais importante...
Eu puxei a orelha dele.
- Aaai!
- Não saia por aí dizendo pra uma bruxa que ela pode te cozinhar! Tu és burro? E se não fosse eu?! A panela já poderia estar no fogo!
- Ai ai ai... – Ele massageou a orelha depois que eu soltei. – Mas...
- Sem “mas”. Se dê mais valor! Eu até sei como isso deve ter passado pela sua cabeça, mas o mundo não é só tudo ou nada! – Fumeguei. Para distrair minha raiva, puxei a espada fora, causando uma grande perda de sangue como eu esperava. Até ele acabou sendo manchado, mas a visão de seus cabelos brancos com o vermelho do sangue, sua pele pálida contrastando com os olhos rubros... era tão harmoniosa que não podia ser normal. Seu rosto carregava um pouco de mágoa, mas eu estava certa que era pela orelha puxada. Ele parecia completamente indiferente à minha ferida grotesca.
Apontei a espada em sua direção. Nem um piscar de olhos a mais. Nem mesmo confusão. Ele parecia entender muito mais o que eu estava fazendo e por que estava fazendo que eu mesma. Será possível que ele achava que eu tinha direito de puni-lo com morte? Ou ao menos atacá-lo com a espada porque ele fez algo errado? Só de pensar me deixava aflita.
- É bom que você aprenda sua lição. – Adicionei. Ele continuava me olhando, vazio. Suspirei e usei meus poderes para diminuir a espada, a estendendo para que ele pegasse. - Porque eu não ando com idiotas.
Não sei o que eu estava pensando. Eu deveria ter gasto minha energia tratando meu machucado imediatamente, ou ao menos diminuído minha perda de sangue e a sensação de dor, mas usei parte quando já estava exausta para colocar uma espada nas mãos de um ser humano.
Só que quando aquelas pequeninas mãos calejadas apertaram o cabo da espada, cheias de determinação, e ele assentiu pra mim, segurando um sorriso para parecer sério mesmo que seus olhos estivessem claramente brilhando, eu soube.
Ele não pertencia aqui. Ele pertencia ao meu lado.
E de qualquer forma, eu nunca disse que estar do meu lado era uma coisa boa, então ele não podia reclamar depois.

Eu avisei que não sabia cuidar de criançaOnde histórias criam vida. Descubra agora