A luz da escuridão I

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I

"Verdadeiramente, é na escuridão que se encontra a luz."

- Meister Eckhart

A sensação de calor por seu braço quase o fez suspirar de prazer, todo o seu corpo estava frio e doendo de forma que jamais imaginou que fosse capaz de doer. Tentou se mover, se aproximar da fonte de calor, apenas para se arrepender imediatamente, a pontadas de dor o assolaram, sangue e hidromel secos tornava qualquer movimento mínimo, apenas mais difícil e doloroso.

Outra passagem de calor. Ronn abriu lentamente os olhos, identificara a sensação, era uma lambida.

Pelagem vermelha apareceu diante de si, vislumbrou um focinho fino e brilhantes olhos marrons, uma raposa, sua mente confusa de alguma forma registrou, a maior raposa que já vira na vida, era quase do tamanho de um urso adulto.

Outra lambida, Ronn estremeceu, sua pele queimou e ele ofegou de dor, a raposa virou seu focinho para ele, seus espertos olhos o avaliando, aproximou-se de seu rosto, sua boca poderia facilmente engolir sua cabeça inteira. Estava delirando, certamente.

A raposa gigante tocou seu nariz com a ponta do focinho, soltando uma baforada de ar quente em seu rosto. Algo em sua mente estalou, como se um muro estivesse rachando e desmoronando, foi uma sensação avassaladora, mas quando algo finalmente pareceu ceder, seus olhos nublaram e uma sensação tranquilizante de paz se apoderou dele.

Toda a sua vida passou por sua mente, lembrou-se de coisas que viu e ouviu quando mal havia acabado de nascer, vislumbrou de forma errática o rosto de sua mãe, aqueles intensos olhos verdes e a pele beijada pelo sol, não parecia em nada com sua mãe, salvo os olhos, viu-a chorando profusamente enquanto o amamentava.

Viu o rosto de seu pai pela primeira vez, o choque seguido pel horror, seguido de fúria, de descobrir que gerara um bastardo, ele o teria lançado prazerosamente aos lobos, se sua mãe não o tivesse convencido de que Ronn lhe seria útil quando crescesse.

Dor atravessou seu peito. Sentiu as pontadas de dor por seu corpo, pelos movimentos bruscos que Gwendoline dispersava a ele enquanto grosseiramente lhe cuidava na tenra idade de dezoito anos, quando mal havia acabado de casar-se e já teve que cuidar de uma criança, não a dela, mas de seu marido com uma prostituta.

Tão logo completara cinco anos, tivera que fazer tudo por si.

Viu a primeira vez que roubou um alimento da cozinha da taberna, um mero pedaço de pão velho e duro, havia corrido para o estábulo e comeu atrás de um dos cavalos, ao lado do esterco. Viu tudo o que o fez miserável, mas também viu tudo o que o fez feliz, todas as pequenas coisas que o impediram de desistir de sua miserável vida.

Tinha doze anos, quando viu o vislumbre de sua irmã pela primeira vez, uma coisinha mínima. Ronn a odiou a princípio, ela o lembrava de tudo o que não teve e tudo o que jamais teria. Mas quando ela tinha dois anos, virou a cabeça para ele e lhe estendeu os braços com inocência e afeto, dirigidos apenas para ele, que jamais havia experimentado isso em sua vida. Desde então, passou a querê-la bem.

Depois de todas as lembranças, Ronn viu a si mesmo, deitado e atado no chão, em um buraco, apenas a lembrança de algo que já foi humano.

Abriu os olhos, confuso, viu o focinho da raposa pelo olho direito e viu a si próprio em vários tons de cinza, piscou e olhou ao redor, ainda via apenas escuridão com o olho direito, mas com o esquerdo distinguiu o que parecia ser uma caverna grande, em tonalidades cinza.

Havia pequenos ossos a sua volta, no meio de alguns grandes, reconheceu crânios humanos, vários fios verde e azuis brilhantes dançavam no ar, cada um ligado a um crânio.

O Despertar da SombraOnde histórias criam vida. Descubra agora