III

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     Fernanda trabalhava em uma cafeteria. Na verdade, funcionava mais como uma padaria, mas vendia diversos tipos de café e alguns lanches, então ela gostava de chamar de cafeteria, mesmo a placa em cima da loja dizendo outra coisa. Lá para as dez, onze horas da manhã, o lugar ficava bem vazio. E Fernanda não tinha tanto a fazer. Era o horário que elas costumavam marcar para conversar algo, quando esse algo era importante.

Letícia sabia todo o caminho. Caminhou às pressas, o celular de Hugo no bolso, para caso ele ligasse. Ela usava o cartão dele de passagem para usar os transportes, e se culpava por isso. Pensava que, quando tudo voltasse ao normal, ela iria pagar de volta. Viu, depois de muitos minutos, a padaria na esquina. Seu telefone começou a tocar nesse momento. Pegou e olhou. Número desconhecido. Atendeu.

— Letícia? — Chamou a voz, do outro lado. Era Fernanda.

— Eu. — Falou, mais por força do hábito. A voz que respondeu, porém, era grave, e nada tinha a ver com a sua.

— Sabia. — Afirmou Fernanda. — Me encontra na cafeteria.

— Eu estou em frente já.

— Então vem.

E Letícia foi. Encontrou a melhor amiga na padaria já vazia. As duas sentaram-se em uma mesa. Fernanda ofereceu uma xícara de café para Letícia. Ela aceitou, mas apenas se levasse leite e muito açúcar. Fernanda sorriu.

— É você mesma. Só você pra frisar bem o leite e o muito açúcar.

Quando ela trouxe, as duas se sentaram uma de frente para a outra. De fora, quem visse, talvez pudesse pensar que eram um casal de namorados. Ali dentro, na conversa, Letícia se preparava para contar o maior absurdo da sua vida. E o pior: Fernanda parecia preparada para aquilo.

— Vocês trocaram, não é? — Disse, finalmente.

— Trocamos?

— Sim, de corpo. É Letícia que está aí dentro, por mais que eu veja o corpo de um homem forte e musculoso. Eu nunca vi Hugo pessoalmente.

— Está vendo agora.

— Não. Eu vi Hugo hoje de manhã.

— O quê?

— Eu mandei uma mensagem hoje para o seu celular. Aí você respondeu dizendo: "ai, tinha esquecido, amiga" e depois falou que ia me encontrar. E veio direto para cá. Desconfiei logo que poderia ser ele porque esperava essa troca de antemão. Mas quando te vi aqui, imaginei que não tivesse acontecido. Sabe, não imaginava que ele soubesse o lugar.

— Eu já conversei com ele sobre você e sobre a cafeteria muitas vezes.

— Por isso. Ele deve conhecer. Ou ao menos sabe procurar no Google.

— Mas e aí? Prossegue.

— Quando ele sentou aqui e começou a falar do sexo com ele mesmo. Só pelos trejeitos eu soube que não era ele. Ele me pediu o café. Sem leite. Sem muito açúcar. Na hora eu soube que era Hugo, e não você. Vê-lo fingir que era você, porém, me deixou com um pé atrás. Por que ele fingiria assim? Nunca vi ninguém fingir. Já vi gente surpresa, desnorteada, confusa, assustada. E gente calma, sabendo que isso ia acontecer, e sabendo como resolver. Mas ele estava aqui tentando imitar seu jeito. Letícia, eu conheço você tem quase dez anos. Ele não me enganaria nem se eu estivesse bêbada.

— Você fala como se entendesse o que está acontecendo.

— Mas eu entendo.

— Então que porra está acontecendo?

— Todas as pessoas, quando fazem sexo, trocam de corpos.

— O quê?! Isso não faz sentido nenhum.

— Pode não fazer, mas é o que acontece.

— E por que eu não sei disso? Por que nunca ouvi falar? Por que nas aulas de sexologia que tinha na escola ninguém nunca falou sobre isso?

— Como não sabia? Todo mundo sabe. É óbvio. Todos os poetas do mundo falam disso.

— Eu não estou entendendo mais nada.

— Quando eles falam de "se entregar para o outro", de "ser como um", é isso que significa. É a troca de corpos.

— Por que eles não são claros? Por que você nunca me disse?

— Eu falei para você tomar cuidado.

— Não sabia que era esse tipo de cuidado.

— Está vendo? Você não prestou muita atenção em mim.

Letícia se calou, olhando para seu café. Os dedos que seguravam a xícara eram bem maiores que os dela. Não estava acostumada com aquela mãozorra. Sentiu seus olhos se encherem de lágrimas. Onde estava Hugo com seu corpo?

— Olha, trocar de corpo é um processo normal no sexo. Acontece. Por isso boa parte das pessoas só transam com aquelas que realmente confiam. Por isso a Igreja preza pelo puritanismo. Por isso casais costumam transar duas vezes ou mais. Esse é o segredo, na verdade. Transar sempre em números pares, para aí sim você sempre ter seu corpo de volta.

— E as pessoas que não transam assim?

— Vivem, não sei, a vida toda em outro corpo? Certa vez eu transei com um cara que na verdade era uma mulher. Ela tinha transado com um cara antes, o dono do corpo que usava, e ele foi e morreu com o corpo dela. Atropelamento. Desde então ela vivia no corpo desse cara. Já tinha alguns anos. Acontece muito, sabe, mesmo o pessoal não gostando muito da ideia. Existem centenas de milhares de pessoas vivendo em corpos alheios por um bom tempo. Essas coisas acontecem. Ninguém gosta, mas acontece.

— Eu vou viver pra sempre nesse corpo?

— Só se transar de novo com Hugo. Tentou falar com ele.

— Eu liguei para ele. Ele não me atendeu.

— Eu posso tentar ligar. Espera.

Fernanda passou para trás do balcão e pegou seu celular. Discou um número rapidamente, enquanto voltava. No momento em que ela saiu, Letícia percebia que as pernas de Hugo não paravam de bater. Era ansiedade. Nervosismo. Medo. Tudo junto.

— Está dando desligado.

— Será que ele voltou para minha casa com meu corpo?

— Não sei. Quando eu sair da cafeteria, eu posso ir lá ver.

— Faz isso, já que eu não posso. Eu vou voltar para a casa dele. Vai que resolve voltar. Para buscar algo. Não sei.

— Sim. Acho melhor.

Letícia se levantou e caminhou, desengonçada, incomodada com o corpo que vestia como uma jaqueta pequena, de volta para a casa do seu namorado. Não, não namorado. O homem que tirou sua virgindade. Apenas isso.

Não se deveria confiar em ninguém hoje em dia, mesmo. 

O Sexo Dos OutrosWhere stories live. Discover now