Memórias mortas

12 1 0
                                    

-

Julho, 2006.

O cheiro da terra recém molhada invadia minhas narinas, causando uma estranha sensação de prazer ao passar entre as enormes trepadeiras de uvas. Eu conseguia sentir o gosto da fruta apenas reconhecendo seu aroma tão característico, uma pequena explosão de sabores quando rompia a fina casca com a língua.

Nossa casa ficava no alto de uma pequena colina cercada por plantações diversificadas e por esse motivo, minha irmã descia escorregando na grama.

- Cuidado, Nina ! - Falo rindo um pouco alto, observando a criança de apenas sete anos  que corria na minha direção. O cabelo flutuava como um tapete espesso cor de chocolate.

- Você viu como eu desci, irmã ? - Sua voz ofegante não era capaz de esconder a agitação tão comum nessa idade.

- Vi sim, meu amor. Você é tão corajosa. - Digo baixo, beijando sua testa com carinho.

Esboço um sorriso sincero, mordendo meu lábio com força enquanto limpava sua testa suja de terra. A expressão de seu rosto angelical mudou, aparecendo as rugas entre as sobrancelhas quando ficava confusa. Seus enormes olhos azuis me fitavam um tanto preocupados.

- O que aconteceu ? - perguntou.

Sua mão sempre tão quente acariciou meu rosto, retirando de mim as lágrimas que tanto segurava.
Já sentiu isso ? Essa dor antecipada de que tudo um dia iria acabar. Um sentimento de impotência por saber que não adiantaria nada, a morte chegaria para todos.

- Só tive uma sensação ruim, nada demais.- afirmei.

Nina arregalou os olhos, como se a solução de todos os problemas tivessem aparecido na sua cabeça de criança, onde nada é impossível.
Eu queria que ela continuasse inocente por toda a eternidade, para nunca ter que conhecer a maldade desse mundo.

Seus bracinhos abraçaram meu pescoço com força, parecendo que queria juntar nossos corpos até formar um só.
E foi nesse momento que tive a maior certeza da minha vida : Ela sempre seria a minha salvação.

- Eu amo você -sussurrou pausadamente, depositando um beijo molhado na minha bochecha . - Não queria que outra pessoa fosse minha irmã, apenas você.

- Eu também te amo, sempre vou amar. - digo juntando nossas testas, uma olhando dentro dos olhos da outra.

Éramos tão distintas. Tanto fisicamente quanto na personalidade. Nina tinha a pele bronzeada naturalmente, cabelos tão cacheados e cheios que ela sempre usava como um travesseiro particular, atitude que eu sempre admirei.

- Seus olhos são como a noite - disse baixinho, passando as mãozinhas nos fios lisos do meu cabelo.- Seu cabelo é tão branco quanto a neve.

Rio fraco junto com ela. Sempre fazíamos isso quando uma estava triste, dizíamos elogios ou algo relacionado a uma lembrança.

- Seus olhos são como o céu das férias de verão. - sussurrei, observando suas pupilas dilatando para se acostumar com a claridade ou a ausência dela.- Seu cabelo é como o outono, me dá uma sensação de estar em casa sempre que os vejo.

E eu implorava para que essa sensação durasse para todo o sempre.

[...]

- Não sei por qual motivo a mamãe insiste em continuar com isso - disse Nina enquanto limpava o sangue que escorria do meu nariz .

- Ela disse que é para o meu bem - digo com uma certa dificuldade causada pelos gemidos baixos de dor que escapavam dos meus lábios.

Nina suspirou de uma forma que eu não pude decifrar o que sentia.

- Então por que ela não faz isso comigo ? Ou o papai não me ensina atirar como faz com você ?

As vezes eu duvidava que minha irmã tinha apenas sete anos. Sua fala e atitudes pareciam de uma pessoa mais madura em algumas ocasiões.

- Eu não sei, Nina. Talvez eles pensem que eu preciso disso ou fazem isso para que eu proteja você.

Ela parecia lutar consigo mesma para manter algo escondido.

- Ei, não fique assim. Eu sempre vou te proteger. - afirmei com convicção.

Nina apenas esboçou um sorriso triste antes assentir e me abraçar com força. As vezes eu tinha a famigerada sensação que de todos estavam escondendo alguma coisa de mim.
E eu iria descobrir o que poderia ser.

- Vamos, não quero me atrasar para a aula de artes hoje. - Disse animada. As mudanças repentinas de humor dela me assustavam. - A professora disse que eu sou a mais criativa da classe !

- Você é muito inteligente, meu amor.- Digo salpicando beijos estalados pelo seu rosto, ocasionando risos na minha irmã.

Nina saiu correndo do banheiro, me deixando totalmente abandonada e com uma pequena bagunça para limpar.

- Você é patética - falo sozinha, me olhando no espelho. - Treze anos de pura inutilidade.

Se eu descobrisse o que meus pais estavam escondendo de mim, tudo o que estão fazendo até agora faria sentido. Se.

[.. ]

- Obrigada, Senhora Matarazzo. - Pego minha mochila do chão, olhando para a senhora com um sorriso nos lábios uma última vez.

- Mande um beijo para sua irmãzinha.- A senhora ainda se manteve na porta da pequena escola por alguns minutos, observando os alunos indo para suas casas em segurança.

A escola era perto de casa, por esse motivo sempre voltava caminhando após as aulas de reforços de noite. Até certo ponto eu tinha a companhia de alguns companheiros de classe, mas no final, eu ficava completamente sozinha.

Não tinha medo, mas também não negaria que sempre sentia como se estivesse sendo seguida. Fecho meus olhos, respirando fundo para me acalmar e não deixar transparecer meu medo.

- É só minha imaginação. - afirmei sussurrando.

Abro meus olhos novamente, vendo que um senhor totalmente de preto me olhava fixamente do outro da rua. Engulo seco, sentindo a adrenalina percorrer pelas minhas veias com rapidez, acelerando meus batimentos cardíacos e minha respiração.

Mantenho minha cabeça erguida, evitando olhar para os lados. Não sabia se conhecia aquele homem, mas meu instinto dizia que deveria sair desse lugar o mais rápido possível. Sem pensar duas vezes, comecei a correr o mais depressa que conseguia, sem olhar para trás ou para pedir desculpas nas pessoas que tinha esbarrado.

O caminho nunca pareceu tão longo. Sentia como se minhas pernas fossem feitas do material mais pesado do mundo.
Atravesso uma rua, cortando caminho por uma viela totalmente iluminada e foi nesse momento que finalmente consegui respirar, deixando o medo sair do meu corpo enquanto eu apoiava minhas mãos nos joelhos, mantendo a cabeça baixa.

Mas o que me fez temer meus próximos passos fora uma sensação muito ruim que percorria minha nuca, me forçando a olhar para viela que agora tinha apenas uma luz iluminando a entidade que me seguia fielmente.
Eu tentei gritar, mas o pânico tirou minha voz no momento mais inoportuno e para piorar, eu não tinha como fugir.

Era o fim da linha para mim.

Ele andava em passos lentos, como se estivesse me dando a chance de fugir, mas o medo paralisa e como em um piscar de olhos sua mão apertava meu pescoço, tirando completamente o ar dos meus pulmões.

- " Seu tempo está acabando " - O sussurro macabro preenchia meus ouvidos, me deixando desnorteada.

Sangue saia do meu nariz ainda ferido até a minha boca, me fazendo engasgar por não conseguir cuspir.

Os gemidos de dor que escapavam da minha garganta eram quase inaudíveis. Minha visão começava a ficar turva assim como a falta de ar me causava reações de tentar tirar suas mãos do meu pescoço.

Era o meu último suspiro.

Abro minha boca em uma tentativa de sussurrar, mas apenas o que consegui foi mover meus lábios. Estava morrendo afogada no meu próprio sangue quando finalmente consegui respirar.






O problema de Morgan.Onde histórias criam vida. Descubra agora