5 | A Tragédia do 'Gloria Scott'

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"TENHO ALGUNS PAPÉIS AQUI", disse meu amigo Sherlock Holmes numa noite de inverno, cada um de nós sentado de um lado da lareira, "em que realmente me parece que valeria a pena você dar uma espiada, Watson. Estes são os documentos relativos ao extraordinário caso do Gloria Scott, e esta, a mensagem cuja leitura matou de horror o juiz de paz Trevor."

Ele tirara de uma gaveta um pequeno cilindro embaçado e, destampando-o, entregou-me um curto bilhete rabiscado na metade de uma folha de papel cor de ardósia.


A temporada de caça ainda não terminou. O guarda Hudson, nós acreditamos, contou os animais; tudo conferiu. Agora corra lá depressa e se puder salve as raposas; sua venda em vida é lucrativa.


Quando levantei os olhos, após ler esta enigmática mensagem, Holmes estava dando uma risadinha da cara que eu fazia.

"Você parece um pouquinho aturdido", disse.

"Não consigo entender como esta mensagem pôde inspirar horror. Parece-me mais absurda que qualquer outra coisa."

"É muito provável. Mas o fato é que o leitor, um velho robusto e sacudido, caiu morto quando a leu, como se tivesse levado uma coronhada."

"Você atiça minha curiosidade", disse eu. "Mas por que falou há pouco que havia razões muito particulares para que eu estudasse esse caso?"

"Porque foi o primeiro com que me envolvi."

Eu tentara muitas vezes arrancar de meu companheiro os primeiros estímulos que o haviam levado à investigação criminal, mas nunca o pegara antes num estado de ânimo comunicativo. Dessa vez ele se debruçou em sua poltrona e espalhou os documentos sobre os joelhos. Depois acendeu seu cachimbo e ficou algum tempo fumando e revirando-os.

"Nunca me ouviu falar de Victor Trevor?" perguntou. "Foi o único amigo que fiz durante os dois anos que passei na faculdade. Nunca fui um sujeito muito sociável, Watson, sempre gostando de ficar sossegado nos meus aposentos, desenvolvendo meus próprios metodozinhos de pensamento, de modo que jamais convivi muito com meus colegas. Como, afora a esgrima e o boxe, eu não era um grande apreciador de esportes e como minha linha de estudos era bem diferente da dos outros rapazes, não tinha nenhum ponto de contato com eles. Trevor foi o único com quem travei relações, e isso graças a um acidente: o bull-terrier dele abocanhou-me o tornozelo uma manhã quando eu ia para a capela.

"Foi uma maneira prosaica de formar uma amizade, mas eficaz. Fiquei dez dias de molho e Trevor costumava aparecer e pedir notícias minhas. No início era só um minuto de conversa, mas logo suas visitas se alongaram, e antes do fim do período já éramos grandes amigos. Ele era um sujeito franco, vigoroso, cheio de entusiasmo e energia, o exato oposto de mim na maioria dos aspectos; mas tínhamos alguns interesses em comum e quando descobri que, como eu, não tinha amigos, isso nos uniu. Finalmente, ele me convidou para ir à casa do seu pai em Donnithorpe, em Norfolk, e aceitei sua hospitalidade durante um mês nas férias longas.

"O velho Trevor, claramente um homem de certa fortuna e consideração, era juiz de paz e proprietário de terras. Donnithorpe é um vilarejo logo ao norte de Langmere, no condado dos Broads. A casa era uma construção em estilo antigo, espalhada, com vigas de carvalho; uma bela alameda ladeada por limeiras conduzia à entrada. Os pântanos propiciavam uma excelente caça ao pato, havia ótimos locais para pescaria, uma biblioteca pequena mas seleta, deixada, pelo que entendi, por um ex-morador, e um cozinheiro tolerável, de modo que só um homem muito rabugento não teria passado um mês agradavelmente ali.

"Trevor pai era viúvo, e meu amigo, seu único filho.

"Houvera uma filha, fiquei sabendo, mas morrera de difteria durante uma visita a Birmingham. O pai me interessou ao extremo. Era um homem de pouca cultura, mas cheio de uma energia rude, tanto física quanto mentalmente. Não lera praticamente livro algum, mas viajara muito, vira muito do mundo e se lembrava de tudo que aprendera. Na aparência, era um homem atarracado e robusto, com basta cabeleira grisalha e um olhar intenso nas raias da ferocidade. Era conhecido, no entanto, pela bondade e caridade na região e destacava-se pela brandura das sentenças que emitia no tribunal.

As Memórias de Sherlock Holmes (1894)Onde histórias criam vida. Descubra agora