PASSANDO OS OLHOS na série um tanto incoerente de casos com que procurei ilustrar algumas das peculiaridades mentais de meu amigo Sherlock Holmes, impressionou-me a dificuldade que tive em escolher exemplos que atendessem a meu propósito sob todos os aspectos. Pois naqueles casos em que Holmes realizou algum tour de force de raciocínio analítico e demonstrou o valor de seus métodos peculiares de investigação, os próprios fatos foram muitas vezes tão insignificantes ou banais que não pude me sentir justificado em expô-los perante o público. Por outro lado, aconteceu muitas vezes de ele ter se envolvido em alguma investigação em que os fatos foram do mais extraordinário e dramático caráter, mas sua própria participação na determinação de suas causas foi menos marcante do que eu, como seu biógrafo, poderia desejar. O pequeno problema que narrei sob o título Um estudo em vermelho e aquele posterior relacionado à perda do Gloria Scott podem servir de exemplos desse Cila e Caribdes que ameaçam incessantemente seu historiador. Pode ser que, no caso sobre o qual estou agora prestes a escrever, o papel desempenhado por meu amigo não seja suficientemente considerável; apesar disso, todo o encadeamento das circunstâncias é tão extraordinário que não posso me forçar a omiti-lo desta série.
Não posso ter certeza da data precisa, pois algumas de minhas anotações sobre o assunto se perderam, mas deve ter sido perto do final do primeiro ano em que Holmes e eu partilhamos aposentos em Baker Street. Fazia um tempo tempestuoso de outubro e nós dois havíamos passado o dia todo em casa. Eu porque temia expor minha saúde combalida ao vento cortante do outono, ao passo que ele estava mergulhado em alguma daquelas abstrusas investigações químicas que o absorviam por completo enquanto se dedicava a elas. Quando caía a noite, porém, a quebra de um tubo de ensaio encerrou prematuramente sua pesquisa e ele saltou de sua cadeira com uma exclamação de impaciência e a fronte anuviada.
"O trabalho de um dia inteiro arruinado, Watson", disse, indo até a janela. "Ah! O céu está estrelado e o vento amainou. Que tal dar uma volta por Londres?"
Enfarado de nossa pequena sala de estar, concordei com prazer e agasalhei-me até a altura do nariz contra o ar penetrante da noite. Durante três horas perambulamos juntos, observando o caleidoscópio sempre cambiante da vida em seus fluxos e refluxos por Fleet Street e o Strand. Holmes se livrara de seu mau humor temporário, e sua conversa característica, com sua arguta observação de detalhes e a sutil capacidade de inferência, manteve-me distraído e encantado. Às dez horas já estávamos de volta a Baker Street. Um brougham esperava à nossa porta.
"Hum! De médico... de um clínico geral, pelo que vejo", disse Holmes. "Não faz muito tempo que está clinicando, mas tem bastante trabalho. Veio nos consultar, imagino! Que sorte termos voltado!"
Eu estava suficientemente familiarizado com os métodos de Holmes para ser capaz de acompanhar seu raciocínio e ver que a natureza e o estado dos vários instrumentos médicos na cesta de vime que pendia da lanterna no interior do brougham lhe haviam fornecido os dados para essa rápida dedução. A luz em nossa janela lá em cima mostrava que essa visita tardia era de fato para nós. Com alguma curiosidade quanto ao que nos poderia ter enviado um colega médico a uma hora daquelas, segui Holmes rumo ao nosso santuário.
Um homem pálido, de rosto fino e costeletas ruivas, levantou-se de uma cadeira junto ao fogo quando entramos. Não devia ter mais de trinta e três ou trinta e quatro anos, mas sua expressão abatida e cor enfermiça falavam de uma vida que lhe havia minado a força e roubado a juventude. Suas maneiras eram nervosas e tímidas, como as de um cavalheiro sensível, e a mão magra e branca que pousou no consolo da lareira ao se levantar era a de um artista, não a de um cirurgião. Seus trajes eram discretos e escuros, uma sobrecasaca preta, calça escura e um toque de cor na gravata.
"Boa noite, doutor", disse Holmes, alegremente. "Estou satisfeito por ver que só esperou uns poucos minutos."
"Falou com meu cocheiro, então?"
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As Memórias de Sherlock Holmes (1894)
Misterio / SuspensoObra do inglês Sir Arthur Conan Doyle.